PRESENÇA DE ANÍSlO

A minha aproximação com Anísio Spínola Teixeira data de fins de 1922 ou princípios de 1923, no Rio de Janeiro, quando fui a ele apresentado pelo malogrado irmão Oscar, viva inteligência, a quem o velho Deocleciano Pires Teixeira transmitira uma veia política acentuada, mesclada com um singular afeto pelo sertão sudoeste da Bahia, em que nascera.

Anísio já se distinguia entre os colegas do Colégio ou da Faculdade pelo misticismo filosófico, como um Tomás de Aquino leigo, forrado de uma precoce e invejada cultura humanística. Entre o paulista, recém-egresso dos Estados Unidos e o baiano de Caetité criou-se de pronto um elo de sólida amizade e mútua admiração que as emergências do destino só fariam crescer.

Data de 2.1.1926, quando me encontrava em missão do Estado de Sergipe, em Aracaju, e ele agitava a instrução pública da Bahia com o descortino de um administrador isento de preconceitos, a primeira mensagem de carinho pelo amigo que conquistara. Oferecia-me a direção da Escola Agrícola de São Bento das Lages, "por enquanto o único estabelecimento de ensino profissional que possuímos". Os vencimentos orçavam em "onze contos e tanto". "Mais tarde, ao serem criadas outras escolas profissionais, ser-lhe-á oferecida a direção de uma delas a superintendência sobre os demais estabelecimentos congêneres".

Em 1927, a 14 de abril, da América do Norte um postal: "Você conheceu Baltimore? Que linda cidade e que boa gente!"

Fixado em Nova lorque, a 29 de junho desse milésimo, escrevia-me: "A América me vai parecendo tão surpreendentemente aproveitável, a oportunidade de cursos aqui tão única e exclusiva, sobretudo em educação, que vou pensando com certa insistência em uma estada mais prolongada neste país. É um projeto que não tenho ainda a coragem de propor ao dr. Calmon. A idéia de não estar na Bahia, quando o seu governo concluir o período constitucional, é para mim de difícil aceitação. Afinal, não é delicado, depois de acompanhar, em um importante departamento, toda a atividade do atual governo, em condições de tão excepcionais privilégios, como V. sabe, não me achar aí por ocasião do encerramento desse ciclo tão significativo da administração baiana". Era um desejo que me confiava "à puridade", que talvez não levasse avante, "embora veja que só assim me seria possível uma formação apropriada na especialidade que as circunstâncias me levaram a escolher e que é hoje uma paixão quase exclusiva da minha inteligência".

"Quanto aos seus atuais cursos - um curso geral de educação; um curso de filosofia em educação e um em atuais métodos de ensino - devo-lhe dizer que os vou aproveitando o melhor que posso. Os cursos deverão ser aqui particularmente intensivos e francamente, para quem tem três meses de inglês, verdadeiramente difíceis de acompanhar.

Tenho estado sempre atrasado em minhas leituras e V. sabe como uma das particularidades do ensino americano é que o text-book ou o source-book precede a lição e a classe, enquanto entre nós o livro ilustra, amplia, completa a lição do professor. Entre nós o livro sucede à aula. De sorte que nem sempre me sendo possível preparar perfeitamente o trabalho de classe, sofro uma redução no meu aproveitamento. Não tenho em todo o caso motivos para me queixar e cada dia me alegro mais de ter vindo a este país para estudos".

O diretor geral da Instrução na Bahia adquirira nos Estados Unidos certo material escolar, que, pelo "Vilaflores", embarcaria para a cidade do Salvador. As carteiras embaladas em pequenas caixas, algumas somente com as armações de madeira, outras com as peças de ferro e outras com as ferragens miúdas. "Julgo que, apesar da aparente complexidade que pode parecer trazer essa divisão, não havia melhor modo de as acomodar, de sorte a facilitar o transporte para o interior do Estado". O número de caixas era superior a 1.600. No intuito de atender ao Colégio da Soledade, consentira que se incluísse na encomenda oficial o pedido desse Colégio. Os papéis eram suficientemente claros, "para não haver nenhuma dificuldade quanto ao caso", para o qual julgava dispensável recomendar estrita reserva, "pois não hão de faltar espíritos que julguem censurável esse pequeno favor a um instituto de educação".

Manifestava Anísio nessa carta todo o empenho em que a distribuição desse material fosse feita "debaixo de um inteligente critério de eficiência, de sorte a não ser esperdiçado uma migalha das vantagens que poderão advir ao nosso aparelho escolar dessa importante contribuição do governo para o seu conveniente equipamento". Pedia-me que solicitasse o auxílio de Jaime Junqueira Aires, Albino Fernandes Filho e Aristides de Oliveira Dias, estes dois últimos funcionários encarregados do Almoxarifado da DGI, e "ouvisse o dr. Calmon". Preocupava-o o pagamento do material. "É indispensável que sejamos pontuais. Lembre ao dr. Falcão (Dr. Teófilo Falcão, Secretário da Fazenda) a circunstância de ser o primeiro vultoso contrato que temos na América e como disso depende no meio comercial daqui o crédito de nosso Estado e de nosso governo, afora a vantagem material que nos advirá em futuras compras, a confiança que inspirarmos nesse primeiro negócio direto com a América. As minhas referências e as minhas palavras sobre o atual governo que tem a Bahia ficarão muito mal paradas se não conseguirmos a pontualidade que deseja".

Em agosto de 1927, diante da informação do seu substituto à frente da Diretoria Geral da lnstrução de cortes propostos no orçamento para 1928, mostrava-se profundamente inquieto. "O movimento pela instrução na Bahia apenas começou. Se a sua marcha não for progressiva e se, sobretudo, as generosidades orçamentárias não forem progressivas, que se poderá fazer? O que será de 1928 se apenas tivermos os recursos de 27. O nosso problema é essencialmente dinheiro, dinheiro".

A América do Norte imprimia-lhe no espírito atilado marcas cada vez mais evidentes. "Para quem esteve neste país durante a guerra ou pouco depois da guerra, creio que a América de hoje é um espetáculo tão novo quanto para quem nunca tenha estado por aqui. Efetivamente, eu creio que V. não tem poder para imaginar o que é a atual prosperidade americana. Os americanos me parece que são os primeiros que não sabem quanto são ricos. Quando eu vejo tudo que é luxo e exceção em todos os países do mundo ser aqui rigorosamente universal, eu tomo um pouco o pulso da riqueza americana. Agora, o mais importante é o uso que essa civilização vai dar a essa riqueza. A América é hoje a família, a casa de fartos recursos materiais e que pode olhar para os problemas que humanizam e refinam a vida. Acredito que, nessa segunda fase de sua civilização, a América revelará as mesmas qualidades assombrosas que revelou no firmar as bases de sua prosperidade material. Este povo não vive nem para o prazer, nem para o descanso, vive para fazer alguma cousa. E essa alguma cousa, a América está construindo com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e o mesmo espírito com que os pioneiros começaram a desbravar este país. E se quisermos um exemplo, não será bastante o desperdício de bravura com que os americanos estão tentando os últimos progressos em aviação. "Já se eleva hoje a mais de duas dezenas o número de aviadores que estão perdidos no oceano, sem notícia, como se perdiam os primeiros navegadores no início do século em que uma febre semelhante atirou os homens para a conquista do mar". E concluía: "As lições de idealismo que recebo na América são as maiores que tenho recebido em minha vida".

Em setembro desse ano de 1927 não sabia Anísio se continuaria com os cursos na Universidade, ou se iria visitar escolas pela América afora. Freqüentava aulas "admiráveis" para estudantes estrangeiros em torno da "Educação na América". Por outro lado, achava "pesados" os preços dos estudos. Esse, por exemplo, ficava-lhe em 40 a 50 dólares mensais. Os outros correlatos, que tomaria, elevariam as despesas para 110 a 120.

Queixava-se da falta de cartas da Bahia, até dos amigos mais íntimos. Estimava saber as condições de direção das Escolas Normais de Feira de Santana e de Caetité. Conhecera nos Estados Unidos um baiano, com prática e estudos em educação, professor por quatro anos em colégios americanos e que, ansioso por voltar para a Bahia, poderia ser bem aproveitado. (Tratava-se de Edmundo Belfort São Luís Saraiva de Magalhães, que, realmente, veio servir na antiga Diretoria Geral de instrução). Pedia-me que conversasse com Jaime Junqueira Aires sobre algumas traduções de Omer Buyse, que esperava receber desse seu grande amigo e confidente, tal como Oscar e Anísio Spínola Teixeira, prematuramente desaparecido.

Em 11.10.1928 "lutava" bravamente para dar conta de sete cursos diferentes. Ambicionava facilidades para trabalhar na Bahia. E continuava no propósito de escrever um text-book de educação e ainda, organizar um plano de ensino normal, adaptado às peculiaridades de sua amada terra natal. Juntava Anísio a essa carta o discurso de paraninfo do Educandário dos Perdões. Sugeria-me que o mostrasse à dedicada e culta irmã Carmita (Carmen Spínola Teixeira), que assistia à professora Anfrísia Santiago no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, porque conhecia ela os anseios das professorandas, bem como me autorizava a corrigir o que julgasse impertinente. É claro que nada mudei do seu texto que o "Diário Oficial" imprimiria na íntegra, antes precedendo a oração de períodos que indicavam o pleno assentimento aos conceitos e conselhos insertos. "Foi um esforço - confessava-me - para fazer um pouco de idealismo. Não sucedi (sic), porém. Em grande parte está utópico e pouco prático. Talvez, porém, outros o entendam melhor do que eu mesmo. Se não houver decidida insistência não o publique. Acho que só deve ser publicado o que comportar o teste da publicidade. Não creio que a minha arenga, como diria Martagão Gesteira, suporte esse teste". Não era ainda capaz de escrever à máquina e não encontrara tempo para extrair uma cópia do discurso, que me mandava às pressas, pelo "Vandicke".

 

 

O diretor geral da instrução interino escrevia sempre para Anísio Spínola Teixeira dando-lhe notícias minuciosas do departamento pelo qual velava de longe com muito interesse. Os problemas de ordem pessoal eram inevitáveis e aborrecidos naquele já longínquo 1928. Ele acusava as minhas cartas e comentava os entreveros com a sua lúcida compreensão dos conflitos humanos. "Imagino as dificuldades com que V. está a lutar. Quando reflito que o New York Times tem três mil empregados, apesar de toda a diferença de nossa atividade com a do formidável jornal, compreendo pelo menos um dos motivos da eficiência americana. Junte-se a isso o nosso espírito pessoal de competência em vez de cooperação e está explicado porque, além de deficiente, o trabalho em nosso meio é tão pródigo em nos dar desgostos. Muito de coração faço votos pelo seu sucesso na Diretoria..."

Censuravam alguns desafetos da situação que Anísio no estrangeiro continuasse a auferir vencimentos. "Já me estão pesando no bolso, tantas dificuldades me vêm trazendo. Receio que uma recusa formal em recebê-los seja mal interpretada pelo dr. Vital ou pelo dr. Prisco, V. mande-me dizer se isso é possível, ou como será recebida a idéia".

Não tinha a menor notícia das mensagens que endereçara ao Governador Vital Soares e ao Secretário Prisco Paraízo e isso o incomodava, tanto mais quanto deixara encaminhados junto a essas altas autoridades alguns casos concretos, entre os quais o do aproveitamento na Capital de Thales de Azevedo, então delegado escolar em Castro Alves. Diante das demoras e transtornos imaginava como levar avante um serviço "que inevitavelmente aumenta as despesas de algumas dezenas de contos de réis".

Não elaborara como prometera uma tese sobre Escolas Normais. "Estando a Bahia com idéias de reorganização (assim m’o afirmara o Secretário Prisco Paraízo) um trabalho com a minha assinatura seria por assim dizer oficial. Desta sorte, tinha que fazer cousa ponderada, o que não me era possível no curto tempo que possuo. Estou aqui a preparar um grande trabalho, sim, sobre Escolas Normais, em que darei toda a formação de professores na América, alguma cousa da Alemanha e da França, terminando por um plano de reorganização para a Bahia.

Os seus estudos na Universidade de Colúmbia iam "regularmente". "Já estou vencendo a primeira impressão de desarvoramento e já me sinto mais senhor do campo para o meu trabalho. A Universidade de Colúmbia, com os seus milhares de estudantes, com a falta de contato entre mestres e discípulos, é particularmente difícil para o estudante estrangeiro".

Achara em Nova lorque a "Didática Magna" de Comenius, encomendada pelo dr. Prisco Paraízo, traduzida para o inglês. Aguardava a prometida colaboração de Joaquim Inácio Tosta Filho para encaminhá-la à "National Education Association", de Washington. E concluía uma longa missiva: "Tive aqui outro dia uma conversa com alguns patrícios nossos sobre o futuro da siderurgia nacional, que, a ser realizada, valerá pela prosperidade do Brasil. Trata-se de uma invenção prodiosa de um americano, que permite reduzir o ferro sem auxílio do coque. Leia "O Jornal" de 9 de setembro que traz uma conferência de Calógeras a respeito". (Anísio deixara-se por certo influenciar por Monteiro Lobato, então nosso adido comercial junto à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos, e um entusiasta do processo Smith, que, ao que me parece, não vingou em parte alguma). O intemerato patriota, que era Anísio Spínola Teixeira, assim se manifestava, na ânsia de encontrar uma solução para um dos magnos problemas econômicos da Nação.

Distante do Brasil, isolado no torvelinho da Colúmbia, em Nova lorque, Anísio escrevia cartas sobre cartas para contar aos solícitos amigos da Bahia o que observava, lia ou conversava. E eram eles Jaime Junqueira Aires, Nestor Duarte, Herbert Parentes Fortes, Joaquim Faria Góis Filho, eu o irmão Nelson. Com o seu substituto eventual no departamento que orientava com a sua sabedoria, desabafava-se a 7.11.1928, a respeito dos "propósitos de economia" do governo: "Para que termos Diretoria de Instrução, se a menor consideração de eficiência de serviço não vale para um de seus gastos, contanto que se poupem alguns mil-réis?". Usando e abusando de malabarismos contábeis o prestimoso Albino Fernandes Filho e o diretor interino haviam montado uma pequena oficina de consertos de mesas e carteiras escolares numa das escolas públicas da Capital, ao Garcia... pela "verba da porta". Não fora fácil o acerto das despesas com o Tesouro e muito menos com o Tribunal de Contas do Estado, onde, aliás, pontificavam algumas das mais veneradas figuras da magistratura baiana. Foi sem dúvida difícil convencê-los da "legalidade" dos atos da Diretoria Geral da Instrução... ainda que evidente a sensível vantagem financeira para o Estado dessa iniciativa do saudoso jovem que prestava sua prestimosa colaboração ao Almoxarifado da DGI. Em vez de louvores, censuras!

Anísio Spínola Teixeira que, embora longe, sabia de tudo, insurgia-se contra "a concepção excessivamente estática da vida e das instituições, em dias de hoje"... "Talvez V. possa demonstrar que os empregos pagos pela "verba da porta " não são extraordinários. Enfim, Deus o ajude a suportar essas altas decisões governamentais e a fazer com que elas prejudiquem o menos possível a nossa deficitária instrução"... "Parece que o desejo é que tudo parasse de uma vez".

Deixando de lado essas sutilezas ou mesquinharias administrativas, Anísio continua: "Foi eleito ontem o presidente dos Estados Unidos, Herbert Hoover, com espantosa maioria. Os eleitores andaram por perto de 40 milhões. Um record. Smith foi batido de um modo verdadeiramente lastimável depois de uma campanha hercúlea, que parecia a muita gente capaz de operar o milagre de o eleger. Prevaleceu porém a velha solidez "republicana" e talvez não pouco os prejuízos (sic) contra o catolicismo e o wetismo (sic) de Smith. O próprio Sul, pela primeira vez quebrou-se (sic) em grande parte para Hoover"... (Evidentemente, "prejuízos" em lugar de preconceitos; "wetismo", enigma que não consegui decifrar; "quebrou-se"... a denotarem a influência da língua inglesa no linguajar familiar do estudante brasileiro da Colúmbia...) "Desnecessário dizer que nunca houve pleito tão debatido. O rádio foi o grande instrumento. Os dois candidatos, que gastaram 10 milhões na campanha, calculam em 2 milhões o custo da utilização do rádio. Não houve eleitor nos Estados Unidos que não pudesse ouvir diretamente os dois candidatos e a suposição é que de fato os ouviu. Resultado: a "proibição" está de pé mais do que nunca neste país, a "nobre experiência", conforme Hoover a rebatizou; e os Estados Unidos vão ser governados por um engenheiro; "engenheiro social" chamam-no agora, e vão continuar a sua marcha para uma progressiva eficiência".

Espalhara-se na Bahia o boato de que Anísio Spínola Teixeira, de formação aparentemente de profunda religiosidade, trocara nos Estados Unidos as vestes profanas pelas sacerdotais. Ele refuta essa insinuação... "A história da minha ordenação apenas mostra que a Bahia custa a esquecer a legenda que uma vez lhe ensinaram. Creio que hei de ser sempre, na Bahia, uma vocação que falhou. Isso seria simplesmente cômico se não houvesse a pequenina tragédia ou cousa que o valha no fato de realmente mais do que essa pretensa vocação estar eu a reconstituir toda a minha filosofia, dirigindo-a para caminhos que me afastarão muito provavelmente até do próprio catolicismo. O trabalho por que vem passando a minha inteligência, desde a minha primeira viagem à América e o seu primeiro contato com o pragmatismo, ainda não está terminado. E, sinceramente, não sei até se me levará no sentido do abandono de algumas e outras aquisições de outras concepções sobre a vida. Quem sabe se não encontrarei motivos para uma reorganização mental conservando as verdades que me apareciam absolutas? Estou com a minha filosofia em franco período reconstrutivo. Escrevo-lhe esta e não será necessário insistir que é assunto que não desejo ver discutido na Bahia. Estou a estudar, estou a aprender, estou a renovar alguns juízos, mas é desagradável a gente se ver discutido nesses assuntos. Sirva-lhe tudo apenas para lhe autorizar a continuar a desmentir o boato".

 

 

Naquele 1928, a 20 de dezembro, Anísio Spínola Teixeira, preocupado com um ligeiro incidente na Diretoria Geral de Instrução entre dois altos funcionários, o que ocasionaria a abertura de um inquérito, lamentava-o... "Cada vez parece-me mais difícil que nos seja dado fazer alguma cousa neste período - estudos, inquéritos, planos, burocracia, aspectos jurídicos e legais do ensino... e daí V. há de ver não se passará. Graças ao seu espírito, a mecânica do ensino progredirá, em ordem, em sistematização, em eficiência. Mas, na Bahia, precisamos, sobretudo, de visão, de coragem por parte do governo. O sistema de ensino não poderá se expandir só com o nosso esforço. E se o quiserem transformar em uma burocracia, então o nosso esforço será de todo perdido. O princípio fundamental de toda a burocracia é o de negar que a razão das cousas está nos seus resultados, para o buscar nas próprias coisas. Pouco importam os resultados; o que importa é que as máquinas funcionem sem incidentes, sem "casos", dentro dos regulamentos. Surgindo um incidente, não se resolve o caso. Põe-se uma nova máquina, o "inquérito", a funcionar. Não se dá com isto uma solução, nem ninguém procura solução: - procura-se é que um novo instrumento legal funcione"... Ele supunha, longe, o que, aliás, não seria precisamente exato, que era propósito do Governo burocratizar, definitivamente, todo um maquinismo que ele revolucionara. "Nesse dia se poderá dizer que a finalidade do sistema de educação na Bahia é o de se gastar as verbas orçamentárias, cumprindo-se, assim, a lei. Tenha Deus compaixão de V., meu caro Archimedes, e lhe dê paciência para se esforçar e trabalhar nesse vácuo que a burocracia tende a criar em toda a parte onde ela se instale. Está claro que tudo isto é estritamente confidencial. Depois, ainda é possível que eu esteja enganado".

A Bahia dos fins de 1928 parece a Anísio "um dos lugares mais atrasados que presentemente existem na face da Terra. Esse atraso exprime-se, sobretudo, por uma tendência para o statu quo, que torna, praticamente, impossível qualquer progresso digno de consideração. Dr. Calmon (Francisco Marques de Góis Calmon) fez alguma cousa, mas V. já pode ver como a tendência contrária é mais forte e já se vai instalando definitivamente... Outro dia, soube que o Artur Neiva tem exatamente essa mesma idéia sobre nosso Estado. Tudo na Bahia está perfeitamente anquilosado. Aí ideais não circulam. Os moços não triunfam. As oportunidades não existem. Os consagrados proliferam. Os institutos históricos florescem. Em uma sociedade nesse grau adiantado de paralisia geral só há um conselho a dar a essa gente moça: arribar. V. há de estar espantado dessas minhas idéias. Eu também me espantei a princípio com elas. Depois vi que são absolutamente objetivas. Góis (Joaquim Faria Góis Filho), Jaime (Jaime Junqueira Aires), Nestor (Nestor Duarte), Hermes (Hermes Lima), eu - todos somos documentos de que o meio é absolutamente refratário a novos sucessos... A Bahia está ocupada por alguns e não só esses alguns não deixam os lugares, como não há possibilidade de novos lugares. Isto é evidente na vida comercial, na vida política, na vida intelectual (há vinte anos que a Bahia não publica um livro), na vida profissional - médica, jurídica, de engenheiros, em todos os aspectos". E concluía a sua terrível perspectiva com esta afirmação: "Hoje, aqui entre nós, eu encararia qualquer oportunidade fora da Bahia com particular interesse".

A 7.1.1929, avisava-me o diretor geral da instrução que estava viajando para a Bahia o material adquirido para o Grupo Escolar Catarino, "bancos-mesas de madeira ordinária e aço", tal como a Alfândega classificaria as carteiras para as crianças.

A 11 deste mês e ano mostrava-se Anísio Spínola Teixeira agastado comigo porque transpirara o conteúdo confidencial de suas cartas. "E eu que estava a pensar que três anos de América haviam curado o meu caro amigo dessa psicologia bem brasileira - esse gosto nacional pelo gossip - de discutir e comentar os outros em matérias pessoais". As mensagens que me endereçava eram "superiormente francas". Acusava-me de as ter feito "circular", levando até o conhecimento do dr. Calmon "a notação que elas levavam de uma possível transformação espiritual". "Creio que V. ainda não me conhece bastante para saber até que extremo eu levo o meu horror por essa cousa atroz que é ser comentado, criticado, discutido ou elogiado em cousas estritamente pessoais". O que me escrevia, acrescentava, era "matéria nitidamente para o seu conhecimento íntimo, pela distinção entre o que é privado e público, no sentido inglês. É que se sentia uma "vítima", na Bahia, de uma imprudente discussão pública em torno da minha pessoa". As cartas para mim, acentuava, eram "para V. só".

Para o Secretário Francisco Prisco de Souza Paraízo preparara "algumas considerações essenciais para qualquer reforma eficiente de nosso ensino, condições que, se não forem aceitas, pelo menos dificultarão qualquer iniciativa inteligente e sincera a esse respeito". Queria novidades de Jaime Junqueira Aires, de Nestor Duarte, de Joaquim Inácio Tosta Filho, que não lhe escreviam, e do Dr. Alfredo Ferreira de Magalhães - que então dirigia a Escola Normal. "Que é feito de Herbert (Herbert Parentes Fortes), que ainda não teve tempo de me mandar uma linha? Às voltas com a "Era Nova" e com a ilusão de curar os homens com palavreado? Diga-me se o dr. Calmon comentou uma possível ausência de cartas minhas. Tenho cada vez mais medo de escrever, de tal modo sei que as minhas cartas são aí interpretadas, comentando-se o que escrevo e o que não escrevo. O delicioso horror de Herbert é uma prova disso".

Adquirira Anísio nos Estados Unidos; "uma multidão de pequenas cousas, todas elas em uso generalizado aqui, para servir pelo menos de modelo para as nossas escolas... A minha idéia é que se faça a réplica baiana de todos esses aparelhos destinados a facilitar o ensino", bem como outros para as aulas de ginástica. Dentro dos limites orçamentários à sua disposição, tivera que se contentar com amostras. "Essa a filosofia de toda a compra. Desde que não temos nada, devemos começar enviando um exemplar de cada cousa para experiência". Vellvé e Cia dava o desconto de 10% para as encomendas do Estado da Bahia.

Um editorial do "Diário da Bahia" não o surpreendera. "Em uma terra onde não se age, o exemplo de Bernardino de Souza toma ares de milagre. Fica sagrado. O lugar é dele. O medo é absolutamente impermeável a valores novos. Só uma revolução pode retirar os consagrados dos seus lugares na Bahia... Se quisermos ficar na Bahia temos que nos especar (sic) nos medalhões, sejam eles inúteis ou úteis, como no caso de Bernardino de Souza devemos reconhecer". Vale acrescentar que entre os dois inolvidáveis baianos existia uma admiração recíproca e sincera.

No princípio de 1929, a 18 de janeiro, informava-me Anísio que as Universidades estavam a substituir os velhos cursos em Lógica por estudos de "How to think", isto é, por uma introdução filosófica à ciência contemporânea. Pelo índice, dizia o estudante da Columbia, o livro é muito bom, apresentando uma sinópse de todas as grandes doutrinas e generalizações que fundamentam o conhecimento científico moderno. Presenteava-me, então, com um exemplar de "An lntroduction to thinking".

O dr. Prisco Paraízo escrevera a Anísio Spínola Teixeira dando-lhe conhecimento dos seus planos de administração das cousas do ensino. Nenhum problema, comentava em carta ao amigo, a 7.3.1929, assumia, a seu ver, importância maior do que a do pessoal. "Reforma do departamento, reforma da Escola Normal, reforma do ensino primário - tudo será apenas para inglês ver, se não obtivermos homens capazes de realizá-las. Essa dificuldade me parece tão insuperável que praticamente não vejo possibilidade de reformas. À medida que entro mais nos detalhes da educação na América, mais profundamente sinto como o problema do serviço está essencialmente ligado ao problema de homens especialmente treinados para fazê-lo". Esbarrava, desconsolado, num grave entrave: "o professorado baiano".

Ultimamente estivera estudando com interesse a experiência do México, que criara uma escola rural rigorosamente adaptada ao estado social primitivo do seu povo. A escola, um centro de estudos de recreio, de toda a sorte de atividades. O professor um "trabalhador social". As casas, singelas. O trabalho escolar, o da vida da localidade. Livros só aparecem como auxiliares do progresso dos diferentes exercícios em que se empenham o professor e a criança. Na Universidade de Columbia, um grande apreço pelas soluções educativas do México. "Os meus professores insistem por minha visita a esse país". Estourara, porém, uma revolução ao sul do Rio Grande e a viagem de Anísio a esse país não se pudera concretizar.

 

 

De Nova lorque, onde se aninhara, no vergel olímpico da Columbia University., 4.4.1929, outra missiva de Anísio Spínola Teixeira. Pretendia, em períodos amáveis, reparar a "injustiça" que cometera para com o amigo distante, levando a sério a sua zanga. Nunca imaginara que ele não "metesse em troça" o que Jaime Junqueira Aires chamava - "as suas suscetibilidades". Tinha em mãos o relatório das atividades da Diretoria Geral da Instrução em 1928, onde o diretor interino afirmava, enfaticamente, encontrar-se o departamento, "em ordem e em dia". Comentaria Anísio: "Olhe que é uma cousa que não vinha acontecendo há muito tempo".

Elogiava o Curso de Férias, que originara uma política de reforma, a única que reputava efetiva: a obtenção do próprio corpo professoral de sugestões e a cooperação para melhorar o sistema. Notara, porém, com as suas prolongadas ausências, que as cousas do ensino eram, agora, no governo de Vital Soares, cada vez mais resolvidas "em Palácio", ao contrário do que acontecia no governo de Francisco Marques de Góis Calmon. "O movimento já estava começando quando deixei a Bahia. Apenas seguiu o seu curso normal". A estranheza de Anísio tinha sua razão de ser. É que ele, administrador, mas, também, delegado político de uma ponderável região do Estado, como porta-voz do seu venerando Pai, o dr. Deocleciano Pires Teixeira, de longe não podia acompanhar as malícias do partidarismo. E da atitude da política do eventual diretor da instrução, procuravam, embora, na maioria dos casos, em vão, valer-se os aproveitadores de todas as situações incertas.

A interinidade a que me levara a generosidade de Anísio Spínola Teixeira nunca fora "um presente", mas, "uma prebenda", como ambos a qualificáramos. Disso estava tão convencido que duvidava ter idêntica "paciência", ao regressar em definitivo do estrangeiro para reassumir as suas funções. Recebera, nesse princípio de exercício o "plano de economias" para as Escolas Normais de Feira de Santana e Caetité. Não era de "economias", comentaria, angustiado, que elas precisavam, para a sua eficiência. "Ou bem encararemos as condições em que elas podem servir ao ensino, ou bem as fechamos. Isso de as matar lentamente de inanição é um processo altamente censurável. Em vez disso, devemos instalar os internatos e pagar talvez o dobro aos professores para termos gente capaz e gente estável. É preciso considerar que dessas Escolas depende vitalmente o problema do ensino no interior. Economias nas escolas da Capital são muito razoáveis, onde já temos professores de sobra". Não discutia a reforma. Combatia, apenas, a idéia de simplificar economicamente "as pobres escolinhas do interior". Entre manter escolas ineficientes ou fechá-las, optava pela última hipótese.

Satisfizera-o uma carta do diretor do Ginásio da Bahia, Joaquim Inácio Tosta Filho, que lhe manifestara as suas simpatias pela atuação do diretor geral interino. O seu curso na Columbia University aproximava-se do término. Em julho seria agraciado com o diploma de "Master". "Da América levarei, sobretudo, a independência e liberdade de inteligência que os meus últimos estudos me deram. Mais do que a educação foi dessa viril e humana filosofia moderna que me ocupei nesses meses tão rápidos e tão intensos que aqui vou passando. A definitiva aceitação de uma atitude científica na explicação de todos os fenômenos da vida não só me deu uma rara tranqüilidade espiritual como ainda um programa de ação". Compreendia, agora, "a calma de espírito, a retidão e a humanidade do amigo", que lhe causavam "uma estranheza tão característica", quando julgava que "teologia e sobrenaturalismo tinham algum lugar essencial na explicação da vida e do mundo". E "compreendia, porque participo inteiramente, hoje, da sua atitude".

Generoso Anísio! - a atribuir a este pobre escriba a capacidade de influir, com o silêncio da palavra e a humanidade do comportamento, para transformar-lhe a mentalidade superior. Essa possível mudança só se lhe tornou vigorosa, na verdade, pela vivência com uma civilização "diferente" das primitivas tendências da sua razão, talvez influenciadas, e vivamente, pela sua formação humanística.

Há uma carta desse período da República Velha, até o momento extraviada, importantíssima para a confirmação da integridade moral de Anísio Spínola Teixeira. É aquela em que ele conta com minúcias o episódio da proposta de Vellvé e Cia de lhe transferir os 10% do desconto nas vendas das encomendas baianas, conforme o hábito generalizado - asseverava a firma norte-americana - no comércio com os países latino-americanos. Incontinente, Anísio pediu aos fornecedores que a vultosa importância em espécie, que lhe creditariam, se convertesse em novas carteiras escolares. Não sei, a esta altura dos tempos - passado meio século - quando o suborno ainda, de vez em quando, toma proporções de escândalo - se esse fato foi algum dia relatado. Posso afirmar, todavia, que essas outras carteiras escolares, por expressa determinação de Anísio Spínola Teixeira, ganhou-as na época o Educandário dos Perdões. Já, aliás, a Penitenciária, na administração de Madureira de Pinho, vinha atendendo satisfatoriamente às escolas públicas da Bahia.

Todos nós que ocupamos, algum dia, uma função governamental, sabemos que há subornos ou tentativas de suborno, da mais variegada natureza.

Há subornos diretos, ingênuos, como esse que quis denegrir Anísio Spínola Teixeira, ou como aquele outro, pobre coitado! - do funcionário que, para melhor se classificar em um concurso, me colocou nas mãos... uma prata de dois mil réis... Há subornos, ou simples tentativas, como as que presenciei, em trinta anos de vivência com a cousa pública, maliciosos, escorregadios, coleantes como uma serpente que se aproxima sem ruído... Poderia citar três ou quatro... os em que se envolveram, através de terceiras pessoas, amigos eminentes... o de uma concorrente a encher de mercadorias um dos almoxarifados do Estado... o da empresa que "precisava" de um resultado analítico a seu jeito... Subornos há em que o dinheiro não conta, mas, em que valem insinuações malévolas ou afastamentos graciosos, viagens desnecessárias, diárias forçadas, polpudas gratificações, hospedagens suspeitas, nomeações de familiares. Há subornos mesquinhos, como os há de estilo internacional. A Vellvé e Cia, ao propor a Anísio Spínola Teixeira, abertamente, 10% de comissão em seu favor nas vendas do material escolar, não fez mais do que seguir uma praxe universal.

A primeira República estava com os seus dias contados e Anísio seria fatalmente alcançado pelas derrubadas que se sucederiam como uma vaga violenta da maré vencedora. Perderia o "emprego" de diretor geral da instrução.

Ausente do país, a 24.10.1930, mal, desembarcara no Rio de Janeiro e já seguia, pela Central do Brasil, até Pirapora, para numa das carrancas do São Francisco chegar a Carinhanha, de onde rumaria para Caetité, ao abrigo do lar paterno. Findara a primeira e movimentada etapa da sua existência. Aguardaria, agora, o desenrolar dos acontecimentos, para decidir do futuro.

Por um desses designos insondáveis do Destino, o diretor geral da instrução interino, paulista de nascimento, sem qualquer compromisso de ordem política - a não ser o do mais rigoroso e profundo respeito aos seus superiores hierárquicos - o Governador do Estado e o Secretário do Interior - gozando também, da plena confiança do primeiro lnterventor Federal, o seu saudoso colega de Congregação, professor Leopoldo Afrânio Bastos do Amaral, recebera ordem para continuar à frente do departamento que Anísio Spínola Teixeira tanto ilustrara com o seu fulgurante talento, sua invulgar clarividência e extrema dedicação ao serviço da comunidade.

Começa aqui, agora, uma outra e longa estória.

 

 

Se, para o diretor geral da instrução que a Revolução de 1930 não substituira, fora um sacrifício a continuação à frente do órgão, pela soma de diatribes e aleivosias da chamada imprensa amarela - hoje dita de "alternativa" - até o fim das interventorias que precederam a do Sr. Juracy Magalhães, para o professorado primário e secundário, que bem conheciam a isenção de ânimo do chefe eventual, em sua quase totalidade, um alívio e uma esperança. Ao traçar pelas colunas de A TARDE, em duas oportunidades distintas, o perfil do inovidável colega Oscar Spínola Teixeira, dotado de invulgar espírito público, apresentar-se-me-ia a ocasião para pôr em relevo esses dias tormentosos da instrução na Bahia, livres, todavia, os abnegados professores das perseguições que com um outro diretor, "político", certamente se evidenciariam, tal como aconteceu em outras unidades da Federação. Atento aos acontecimentos, a 4-1-1931, Anísio Spínola Teixeira, que impusera à Diretoria um cunho de indisfarçável grandeza, desde o período do governo de Francisco Marques de Góes Calmon, de Caetité, onde se refugiara, e observava os novos rumos do país, enviava-me a primeira missiva dessa outra fase de sua existência, em resposta a que o diretor lhe endereçara, explicando a delicada situação em que se encontrara, logo após a posse dos "revolucionários" de 30 nos diversos departamentos do Estado, forçando-o a uma opção decisiva. Ele era "um exilado, em cuja casa, além da perseguição oficial, também entrou um grande e irremediável luto". É que lhe desaparecera o venerando genitor, Deocleciano Pires Teixeira, de respeitada memória nos fastos da primeira República na Bahia. Lera e relera a carta de seu amigo e considerava que, "dentro das circunstâncias", fora uma felicidade ter o seu substituto ficado na "coluna revolucionária", "para pôr no frenesi das reformas do governo uma dose de ordem, de justiça e de bom senso".

A instrução pública no município da Cidade do Salvador era uma colcha de retalhos de leis e vencimentos que urgia uniformizar. Da boa vontade e compreensão do lnterventor Leopoldo Amaral conseguiria o diretor, numa radiosa manhã, em sua própria e modesta residência, em Amaralina, um reajustamento que a todos satisfaria. E Anísio Spínola Teixeira, que opunha suas reservas ao lnterventor, moderaria o seu juízo, aplaudindo "o ato emancipador da terrível tutela política", o que considerava "uma vitória". E acrescentava: "A reforma da Escola Normal, mal grado seja eu o visado, e tornar-se, assim, suspeita a minha opinião, pareceu-me, como a V., totalmente condenável. Onde se estará com a cabeça para se fazerem reduções na modesta parte especializada que tem uma escola, que deveria ser toda ela especializada! Quanto às Escolas Normais do interior, o critério exclusivamente financeiro leva bem a ver o que será. Confio em V. para salvar o que for possível da parte técnica e da parte de justiça pessoal".

É oportuna a revelação de que o fechamento da Escola Normal de Caetité esteve a pique de realizar-se por um decreto-lei da lnterventoria, tal a pressão exercida pelos desafetos políticos dos Teixeiras e Rodrigues Lima, de Caetité e redondezas. Vale afirmar que no corpo docente da Escola Normal havia vários e ilustrados elementos dessas tradicionais famílias sertanejas. Não fora a energia do diretor geral e o bom senso não teria sido o vencedor, numa outra clara manhã, no Clube Euterpe, no Corredor da Vitória. Compreendia Anísio Spínola Teixeira os espinhos do posto e pedia ao seu sucessor "que não voltasse atrás", porque assim o exigia a administração do ensino na Bahia. Merecia-lhe cuidados especiais a escola primária profissional, que, a título de experiência, ambos instaláramos em Cachoeira, mas que precisava de uma total transformação para cobrir o objetivo de sua implantação.

A 5.2.1931, do Rio de Janeiro, num apressado bilhete, indagava o inesquecível educador: "Como vai V.? Muito devorado por essa gente antropófaga da Bahia? Um paulista é um prato delicado para ser comido por esses canibais. Li, outro dia, no "Diário da Bahia", uma qualquer dessas dentadas específicas dos índios que substituem aí os bons aimorés do tempo do bispo Fernandes Sardinha. Pelo menos, esses comiam apenas o corpo. Os de hoje, comem-nos a alma". Para esse órgão da imprensa, o diretor geral era um 'carcomido", "persona grata' (? ) do presidente Júlio Prestes de Albuquerque... De São Paulo, a 27.2.1931, comunicava Anísio Spínola Teixeira que fora convidado pelo Ministro da Educação para participar nos estudos da reorganização do ensino secundário do país. Não iria negar a sua colaboração ao governo, porque isso lhe ofereceria a oportunidade de se aproximar "dos líderes educacionais de hoje". Ao "grande" Bernardino de Souza, Secretário do Interior, solicitava que justificasse a sua ausência da cadeira de Filosofia da Educação da Escola Normal, ao Caquende. Iria, sem dúvida, regularizar a sua situação funcional, em face daquele convite do Ministério. Continuavam a "persegui-lo" os amigos políticos do dr. Deocleciano, fossem para pedidos em favor de vestibulandos às escolas superiores da Bahia, fossem de professoras que apelavam para o seu prestígio junto ao diretor geral, para uma remoção, ou para uma promoção.

A carta de 7.3.1931 é extremamente valiosa para uma revisão da crônica política desse milésimo, de uma segunda República, que balbuciava os primeiros entreveros. "Aqui no Rio, o ambiente é tranqüilo. O Presidente e o Chefe de Polícia nas águas. Não pode haver maior prova de tranqüilidade. Os jornais de anteontem anunciavam uma perturbação da ordem. Mas, choveram os desmentidos. A Legião de São Paulo botou um manifesto, que é um interessante documento de literatura verde-amarela. Com ele, a revolução se estreou na Literatura. E, assim, como em França tudo acaba em uma canção, no Brasil, tudo acaba em Literatura. A reforma do ensino sairá talvez para a semana. Vai-se guardando sobre ela um considerável sigilo. Em muita cousa será uma reforma de largo alcance e por isso mesmo capaz de contrariar muito conceito e muito interesse. Diga-me qualquer cousa sobre as coisas daí. O dr. Neiva começou, ontem, a sofrer ataques de 'O Globo' e do 'Diário Carioca', por ter ferido o tabu mais sagrado de nossa civilização de analfabetos falantes: o direito de dizer livremente asneiras. Fechar a boca do pirulito e do R... corresponde ao que correspondia entre os romanos agredir o 'tribuno da plebe'. Como vinte séculos podem degradar uma instituição! Para aqueles jornais, o dr. Neiva, ainda que salve a Bahia, é um criminoso e sem remissão, porque determinou que na Bahia o direito de trabalhar começa a ser mais importante do que o de falar".

A 11.3.1931 nova mensagem para o diretor geral. Insistiam os políticos de Caetité e vizinhanças em solicitar-lhe favores na área estadual, lembrando promessas antigas, "sem refletirem que o que se passou no país pôs por terra quaisquer compromissos que um homem de boa fé poderia ter assumido antes de outubro de 30. Vejo com satisfação que o ambiente da nossa Bahia se aclara cada vez mais, acabando por vir a ser a nossa terra a terra mais bem governada do Brasil. Oxalá!". E comunicava Anísio Spínola Teixeira o seu noivado com a suave criatura que, em breve, desposaria.

Achava Anísio Spínola Teixeira curiosa a informação que recebera de que se cogitava na Bahia de uma reforma de ensino "nos moldes da de São Paulo". "Será o caso de perguntar: Com que roupa vocês vão vestir essa reforma? Em todo o caso, desejo muito conhecer os planos". Estava ele bem a par do que Lourenço Filho realizara em São Paulo, e daí a sua curiosidade. Queixava-se, a 27.3.1931, de "abarbado de serviço". As suas responsabilidades cresciam. E o seu prestígio também, pois que conseguira até a indicação de um antigo colaborador na Diretoria Geral de Instrução, o bacharel Joaquim Faria Góes Filho, para uma junta de exame prévio de colégios no Estado.

A 29.3.1931, outra vez preocupado com a tal reforma "nos moldes da de São Paulo". "Eu, com franqueza, não entendo. O que São Paulo tem, acima de tudo, são 50 mil contos de orçamento escolar, é todo um serviço de escolas primárias, escolas secundárias, escolas profissionais. Nesse sistema, Lourenço Filho introduziu algumas reformas parciais, criou dois ou três órgãos que faltavam. Ao mais é a sua ação administrativa que está operando as transformações importantíssimas de programa e de método. Mas, na Bahia, onde o programa de ensino tem três pontos fundamentais: economia, economia, economia, para que se falar em reforma? Fale-se em poda, em restrição, em economia na administração. São Paulo tem um Instituto Pedagógico, com curso de aperfeiçoamento, Escola Normal de mestres e artífices, escola normal para professores de Educação Física, assistência técnica às escolas primárias. E como pode ter isso a Bahia? No mais não vejo em que a lei de 1924 (a do governo Góes Calmon) muito se separe da organização de ensino em São Paulo. A reforma operada nas escolas normais não é a que se deve fazer na Bahia, onde o problema é todo outro".

E a pretendida reforma, "nos moldes da de São Paulo" não se concretizou, ficando o campo livre para que, mais tarde, dedicados e destemidos Secretários da Educação, inclusive o próprio Anísio Teixeira, no governo de Otávio Mangabeira, cuidassem com desvelo do ensino na Bahia. (x)

 

No início do ano de 1931, Anísio Spínola Teixeira demonstrava, em sua correspondência, uma grande mágoa pelo desenrolar das cousas da instrução pública na Bahia, fosse pela virulenta campanha que se afirmara em certa imprensa contra o diretor geral, fosse pela demora do despacho do seu pedido de licença na cadeira de Filosofia da Educação da Escola Normal, da qual era titular. Parecia-lhe que o consideravam "indesejável" em sua terra natal. Colaborara na elaboração da lei Francisco de Campos, que reformara o ensino secundário e superior no país e dava a sua opinião, após os retoques finais por parte do governo: "Salvo a questão das taxas, que não acobertara os interesses dos estudantes pobres e inteligentes, a reforma foi a primeira em que se visou o ensino e não amparou conceitos pessoais de uma certa parte do professorado". Por isso considerava-a válida. A 5.7.31, desabafava-se. A Bahia seria "uma grande taba de índios. A taba no Rio de Janeiro é maior e os índios flecham menos, como diz o Afrânio Peixoto". O seu pessimismo iria atenuar-se com a perspectiva de prestar inestimáveis serviços à instrução, desde que aceitara o convite do dr. Pedro Ernesto para dirigir a Secretaria da Educação da antiga Capital da República. Era um líder com uma irresistível vocação para o bem público e "era então com os seus experimentados olhos que encarava a lua-de-mel dos primeiros dias de batalha".

Quatro anos depois, um levante de caráter nitidamente comunista lançaria o caos na Prefeitura do Distrito Federal. E a 1.12.1935, Anísio Spínola Teixeira demitir-se-ia, com a ressalva de que o seu gesto não envolveria "a confissão que se poderia supor implícita, de participação, por qualquer modo, nos últimos movimentos de insurreição ocorridos no país". Sempre fora adverso à violência, só acreditava na educação, "exatamente o modo adequado de se evitarem as revoluções". Defendia a obra que levara avante na Guanabara, como estritamente "republicana, constitucional, democrática e doutrinária".

Responder-lhe-ia à altura o dr. Pedro Ernesto, consagrando-o como "um cidadão probo e patriota, credor da benemerência do povo carioca".

"Aqui estive - escrevia-me a 22.1.1936 - nesta cidade de Santos, cerca de um mês, espichado na praia. Repouso e calor fizeram-me a obra de reparação. Quase não me lembro desse remotíssimo dezembro. Estou de novo, por esse tropismo da nossa geração, voltado para o amanhã. Pretendo entregar-me a uma obra de divulgação do pensamento científico contemporâneo. Não é possível que o Brasil continue a pensar que nada existe além do nariz. Não se pensa, cheira-se. Agora, cheira a comunismo. Com os olhos voltados para baixo, a grunhir nos "coxos" orçamentários, os seus surtos têm qualquer cousa da palermice míope dos suínos. Mas, é falta de cálcio. Infantilismo. Precisamos mostrar que há, nos países sãos do Ocidente, todo um forte e vigoroso pensamento, mais do que nunca construtor e otimista. Fascismo e comunismo são remédios, ou são castigos. Mas, fora deles, há saúde e vida normal... "Sabia-se "perseguido" e, então, silenciosamente, meteu-se num vagão de segunda classe da Central do Brasil e rumou para Pirapora. No Rio São Francisco, embarcou em uma "gaiola" e desceu a caudal até Carinhanha. Outra vez, com base em Caetité, o sertão baiano seria o seu esconderijo e a sua segurança. Em compridos dias, a cavalo, percorreria as extensas parágens do sudoeste da Bahia, de pouso em pouso, sem destino certo, ou melhor, conforme me contaria depois, para onde o levasse o instinto do animal que montava. Eram bons companheiros, a beber da mesma água dos córregos que transpunham.

Foi do "exílio de Caetité" que, em 1936, escreveu ele para o fiel amigo: "A todos nós que conhecemos a profunda verdade histórica de que o homem só pode ser tornado livre e feliz por educação e muita educação, os tempos de hoje de crença na violência e nos seus milagres só podem trazer tristeza e mágoa. E nessa atmosfera só a solidariedade dos que pensam do mesmo modo pode ser algum alívio. Felizmente, é maior ainda do que se pensa o número desses crentes nas possibilidades pacíficas, e só pacíficas, de adaptação do homem à vida comum, num regime de razoável respeito mútuo e razoável igualdade social. E felizmente, também, os que assim acreditam, sabem que isso não será feito só pela vontade de alguns, mas, pela generalização de uma mentalidade lúcida e crítica. Estou hoje persuadido de que, para tal generalização, nada mais imprescindível do que o conhecimento da História, não, porém, em suas monografias especializadas, mas, em suas linhas gerais, em suas lições fundamentais, em sua filosofia. E, por isso, humildemente, já me atirei à tradução do "Outline of History", de Wells: são 1200 páginas quase milagrosas de clareza".

Desse período fecundo, em que o intelecto de Anísio Spínola Teixeira, pelo imperativo da sobrevivência, se consumia todo em traduções sobre traduções para a Companhia Editora Nacional, é o livro, também de Wells, "A Construção do Mundo - O Trabalho, a Riqueza e a Felicidade do Mundo". No sertão baiano conseguiu ele transportar para o vernáculo os sete primeiros capítulos do primeiro volume. Mudando-se para a Cidade do Salvador, para entregar-se a outras atividades mais lucrativas, incumbiu-me da tradução do oitavo e nono capítulos desse volume e de todo o segundo volume, num total de 360 páginas.

Como procedeu a Companhia Editora Nacional, premida pelas circunstâncias políticas da época? A princípio, anunciou a tradução, atribuindo-a a Anísio Spínola Teixeira. Depois, em novas contracapas, substituiu o seu nome pelo do festejado Monteiro Lobato. Razões comerciais? Imposição militar, conforme se propalou no momento? Teria Lobato feito uma tradução paralela, que merecesse a preferência da empresa? Anísio Spínola Teixeira, a serviço dessa Editora, está agora em São Paulo, onde confessava existir um "clima, estranho clima, aliás, de ação, de vontade, de energia, tão diferente do "Museu do Norte". "É outro Brasil!" "E, por um paradoxo, era para esse "Museu do Norte" que desejava voltar!

Regressaria como minerador e industrial e nossas vidas encontrar-se-iam de novo, no seu escritório da Cidade Baixa, porque era da obrigação deste articulista, como funcionário de modesto laboratório da Bolsa de Mercadorias, fazer no cais das Docas a amostragem do seu manganês de Santo Antônio de Jesus e analisar-lhe os elementos que lhe permitiam a exportação.

Anísio Spínola Teixeira, durante quatro anos, ocuparia com o talento e a operosidade que lhe era proverbial, a Secretaria da Educação no governo do inolvidável Otávio Mangabeira, e ao término deste ainda uma vez o destino nos ligaria no afã de servirmos à Bahia. A 13.1.1961, confessar-me-ia no Rio de Janeiro, para onde outra vez transferira o domicílio, egresso do governo baiano, que "ainda não se conformara com a perda irreparável do nosso grande chefe". Meses depois, apelava para o velho amigo para que aceitasse a direção do Instituto Superior de Educação Rural nos arredores de Belo Horizonte.

A 19.7.65, de Santiago do Chile, sentia não estar presente à reunião semanal da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, entidade que ajudara a fundar e da qual fora até o presidente por um biênio. Era a SBPC, a seu ver, "realmente um movimento que conforta no Brasil, sobretudo, porque não é coisa de governo, mas, na melhor linha britânica, um movimento público, feito por pessoas privadas". "Tenho a esperança de ver a ciência organizar-se no Brasil, como se organizaram os esportes e as artes, sobretudo, a música". O governo seria a nota que desafina; num país, "cheio, por outro lado, de forças de crescimento e de expansão". lnteligências peregrinas como a de Anísio Spínola Teixeira não as produz senão de século em século um país que preze os seus nomes imortais. Quanto mais de par com excelsas virtudes se lhes rodeia a existência um acendrado e ininterrupto amor à educação de seus filhos. Caetité está a dever, sem dúvida, ao ilustre varão, que tanto nobilitou seus forais de cultura, um monumento de altíssima expressão!

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