BENATHAR, Roberto Levy. Lugar e posição de Anísio Spínola Teixeira na pedagogia brasileira. Ciência e Cultura. Rio de Janeiro, v.33, n.12, dez. 1981. p.1662-1665.

LUGAR E POSIÇÃO DE ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA NA PEDAGOGIA BRASILEIRA 1

     Anísio Spínola Teixeira representa o mais importante momento da intelligentsia brasileira neste século, comparável apenas e tão-somente a Oswaldo Cruz. Dominando completamente a teoria pedagógica de e até seu tempo, Anísio penetrou com as luzes do seu pensamento, em 40 anos de fecunão trabalho, todos os graus, ramos e níveis da educação brasileira. Condições históricas a ele se aliaram - arguto pesquisador e extraordinário observador que era - para aglutinar em duas etapas a única geração que a ciência pedagógica conheceu no Brasil até aqui. País imenso e profundamente resistente ao novo - os antropólogos estão a pesquisar as condicionantes sócio-plásticas dessa resistência - assistiu o Brasil raro fenômeno. Aquela geração esfacelada com a ditadura do Estado Novo em 1937, volta a se aglutinar em 1946, danão corpo a todas as instituições que se constituíam em "idéias daqueles visionários" no ocaso da República Velha.

     Anísio Teixeira nasceu em 1900 na Cidade Baiana de Caitité, em 1924, homem de formação jesuitica, é chamado por Otávio Mangabeira para dirigir a Educação na Bahia. Naquela ocasião apenas 9% das crianças em idade escolar - segunão relato de então - freqüentavam escola. A Semana de Arte Moderna ainda fervilhava, mas Anísio entre 24 e 28 estivera preso aos grilhões da retrógrada formação jesuítica e, como ele próprio costumava assinalar - tomanão seu próprio corpo como extensão do intelecto -, voltava a frente para a Europa e as costas para o Brasil. No entanto, o gênio organizador já lançava seus primeiros alvores aglutinando homens e idéias na Reforma Baiana de 24-28.

     Em 1928, parte Anísio Teixeira para a América do Norte e se torna no Master of Arts aluno de John Dewey e de William Kilpatrick.Este estreito e prolongado contato incide não sobre as teorias experimentalistas do on-going activity2, herdado dos fisiologistas no primeiro quarto deste século, ou sobre os estudos das funções mentais notadamente a inteligência, e que tanto interessavam a Dewey, mas incide sobretudo na organização da cultura, para daí retirar os subsídios indispensáveis à construção da pedagogia entre nós no Brasil. É a função permanentemente social da educação que ele partilhou com aquela pléiade de educadores americanos, função social esta com que Anísio abre caminho para a longa marcha que o aguardaria e que tanto beneficiou nosso país.

     Em 1930 a Revolução traz Anísio Teixeira para o Distrito Federal. O ocaso da República Velha enche brasileiros de esperanças democráticas. Com elas a função social da escola consequentemente se amplia. A escola primária pública, comum e obrigatória mobiliza a elite intelectual de então. O povo bate às portas da escola média e luta com consciência mais larga pelo seu acesso à escola. A experiência na América levou Anísio ao encontro com a cultura brasileira. O conformismo da população face ao absurdo de ter apenas 9% das crianças freqüentanão escola - e que ele encontrara na Bahia 5 anos antes - parecia agora passado longínquo. O povo queria escola. Anísio Teixeira parte com redobrados esforços para a Reforma do Distrito Federal. Nesta fase é que nasce, para nós brasileiros, a ciência pedagógica; e, por assim dizer, pedagogicamente, entre nós, o alvorecer do século XX. Sobrevém o Manifesto da Escola Nova de 1932 e aglutina-se à volta de Anísio Teixeira a única geração pedagógica que o Brasil conheceu, a qual nos referimos atrás. Este grupo ensaiava as primeiras idéias que resultariam posteriormente, como veremos adiante, em praticamente todas as realizações da pedagogia no Brasil. Este grupo, esta pléiade extraordinária sob comanão de Anísio, nós poderemos dividir filosoficamente, tal como os pedagogos do começo deste século, em naturalistas e reformistas. Recordemos o alvorecer do século XX. Ali iremos localizar dois tipos de filósofos que lançaram luzes no terreno da educação. Os que se dedicavam aos estudos da neu rologia, da fisiologia humana e animal, da ecologia, da pediatria, e que, observanão a natureza humana, codificanão-lhe os processos, acabavam por desembocar nas questões relevantes da pedagogia que em última analise são as questões do homem ao olhar para dentro de si mesmo e ver como se dirigir. Era esse grupo o dos filósofos naturalistas. Aqui poderemos situar, entre outros, Clapatéde, Montessori, Gesell. Outro grupo daqueles filósofos se dedicava à sociologia, psicologia, antropologia, geografia, e no desejo de modificar o social desembocava igualmente nas questões relevantes da pedagogia. Era esse o grupo dos filósofos reformadores. Aqui poderemos situar Dewey, Kilpatrick, Karl e Charlotte Buhler entre outros. Não sem motivo já se disse que a pedagogia é a humildade científica. Assim ocorreu entre nós no longínquo 1932. Filósofos naturalistas, filósofos reformadores e também grandes artistas se uniram sob a liderança de Anísio e iniciaram a reconstrução da pedagogia brasileira:

  1. Lourenço Filho e Heloisa Marinho, com os Laboratórios de Psicologia Genética para o estudo do desenvolvimento infantil, no Instituto de Educação do então Distrito Federal. Com esses laboratórios promovia-se a educação pré-escolar e a integração criança normal-criança especial nas classes elementares.
  2. Oscar Clark, Helena Antipoff, com as crianças deficientes e especiais.
  3. Paulo Duarte, Paulo Sawava, José Reis, Maurício Rocha e Silva e tantos outros em São Paulo, com a organização da ciência no Brasil.
  4. Augusto Rodrigues, com os estudos sobre o mito, seu interesse folclórico e psiquiátrico e suas aplicações no processo educacional.
  5. Arthur Ramos com a ortofrenia alicerçada no aguçado estudo da etnologia.

     A modificação institucional, sem a qual, bem assinala Malinowski, nenhuma invenção, nenhuma revolução nem modificação social ou intelectual jamais ocorrerá, esteve a cargo de Mário de Andrade, em São Paulo, e de Anísio Teixeira, no Distrito Federal. Mário buscava as fontes antropológicas da cultura brasileira codificanão-as e organizanão-as em profunão e sistemático estudo formanão acervo incalculável. Anísio revolucionava os métodos de organização do sistema educacional e das atividades intra-escolares. Fiel ao postulado de que a educação é um tripé indissociável escola-biblioteca-museu, procurou criar na escola o ambiente que existe na própria vida social. Ambos, Mário e Anísio cultores daquilo para o qual chama atenção o físico japonês Taketani, a ciência é, até o fim uma cultura, tem como alicerce a técnica científica do país e as raízes dessa técnica científica estão na cultura. A modificação institucional a que nos referimos era, no início da década de 30, o anteprojeto do embrião da Universidade do Distrito Federal e do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos,que por aquela época existiam apenas na cabeça dos grandes visionários.

     A noite obscurantista do golpe de 1937 tem em 1935 o seu "ovo da serpente"; aquela geração extraordinária esfacela-se. Afastam-se e tomam rumos diversos.

     Em 1946, com a vitória das forças democráticas, Anísio Teixeira volta ao cenário brasileiro, novamente na Bahia. Amadurecido nas lides sociais e históricas, já ali estudioso profunão de nossa cultura e de suas resistências, a Bahia vai encontrar um Anísio efetivamente reformador, carente de modelos por onde pudessem professores e especialistas observar os "passos" da mudança, tal como fizeram os países europeus quanão o movimento da escola nova ensaiava seus primeiros passos. Sobreveio a Escola Parque da Bahia, considerada pela ONU das maiores experiências de ensino primário neste século. A par dessa realização é um Anísio conferencista, pregador, que reaparece, fiel ao seu postulado de que a educação não é apenas um fenômeno escolar, mas um fenômeno social que se está a processar permanentemente em toda a sociedade. Para tanto, tomou como ponto de partida o anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases em tramitação no Congresso Nacional. Dissecava-o e levava-o a todos os centros do país, promovendo amplo debate entre especialistas e a população em geral.

     Mas o milagre cultural que conheceu o Brasil deste século estava por vir. A história nos ensina que ela própria dificilmente concede oportunidades iguais às mesmas pessoas em diferentes épocas. Entre nós isto se reforça pelo tamanho do Brasil, pelas condicionantes centralizadoras e muito resistentes à mudança que cercam a nossa formação cultural. No entanto, aquela geração do início da década de 30, esfacelada pela ditadura de 1937, se reaglutinaria, convergindo na direção das realizações que se esboçavam ainda em 1932, firmando um marco histórico num único ano, quase como algo que houvesse sido combinado, previamente marcado. É o ano de 1948. Nele aconteceram conquistas que consolidam aquele lastro institucional a que nos referimos:

  1. Escolinha de Arte do Brasil.
  2. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
  3. Sociedade Pestallozi do Brasil.
  4. Escola Parque da Bahia.
  5. Fazenda do Rosário.
  6. Universidade do Distrito Federal.

     Consideramos este momento histórico mais fecundo como história do que a Semana de Arte Moderna de 22, porque aqui se trata da convergência de uma geração que se esfacelara e que tinha tudo para desaparecer, mas que se reaglutinaria e nessa convergência adianta o processo histórico, recuperando 15 anos de isolamento e procedendo como se não houvessem interrompido o que estavam preparando.

     As décadas de 50 e 60 vão encontrar um Anísio planejador, possivelmente pela influência dos receios de que se tornou possuidora a elite intelectual do mundo para com um retorno aos horrores da 2' Guerra Mundial. Mas, seu postulado social impregnava, marcava o planejador: era preciso municipalizar o ensino, uma de suas teses mais brilhantes. Era necessário entregar às comunidades os destinos da educação de seus habitantes. Era preciso regionalizar a ciência pedagógica, regionalizar a escola e o currículo escolar, preparando o povo para as tarefas de cuidar de seu destino. Anísio Teixeira participou do Conselho Federal de Educação, e o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) é criado com seus Centros Regionais de Pesquisa Pedagógica em diferentes Estados da Federação. Cada centro movimentou-se numa direção científica, tal era o zelo de Anísio pela descentralização e conseqüente determinação local no trato com problemas educaciona.is. O Centro de Minas Gerais realizou-se mais na educação pré-escolar, na pesquisa da linguagem e das dificuldades especiais de leitura e escrita; o de São Paulo agregou-se à Universidade de São Paulo, servindo de centro experimental, sob a orientação da Faculdade de Educação. Dedicou-se ao estudo do rendimento na solução de problemas aritméticos na escola primária, e a muitas outras pesquisas no inieresse dos projetos da Faculdade de Educação. O de Pernambuco associou-se ao Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e passou a estudar questões culturais e regionais da Região Nordeste e de Pernambuco, em particular, bem como desenvolveu pesquisas sobre o desenvolvimento social da criança. O do Rio Grande do Sul desenvolveu-se na direção de amplos estudos regionals, especificamente investigando o Mapa Educacional dos Municipios Gaúchos, notadamente quanto à educação pré-primária e primária. O da Bahia realizou convênio com a Universidade de Columbia, visando ao estudo de várias comunidades baianas com subculturas distintas e com a finalidade, no entender de Anthony Leeds, de identificar empiricamente as características sócio-culturais do Brasil tradicional e do Brasil em mudança, para serem utilizadas como base para programas de desenvolvimento de educação e saúde.

     No INEP nasceu a ciência pedagógica no Brasil, pois, bem lembra José Reis, em nosso país como na história em geral, a ciência começou fora das universidades, não porém em academias, mas em institutos criados pela visão de grandes governantes. O INEP, sob a liderança e o comando de Anísio Teixeira, foi convertido em verdadeiro centro de pesquisas avançadas de educação, digno das mais notáveis instituições europélas no gênero. Para tanto, o Instituto ficou dotado de quatro grandes divisões: de Estudo e Pesquisas Educacionais, de Estudos e Pesquisas Sociais, de Aperfeiçoamento do Magistério, de Informação, Documentação e Bibliografla Pedagógica. O Instituto fez editar as publicações Revista brasileira de estudos pedagógicos e Educação e ciências sociais, com a colaboração de intelectuais, pedagogos e cientistas brasileiros e estrangeiros, aglutinando poderosos cérebros que possibilitaram, sem dúvida, o pensar a renovação universitária brasileira. A par disso, o Instituto, por esforço e perseverança personalíssimos de Anísio Teixeira, organizou a maior biblioteca pedagógica do país, atingindo mais de cem mil títulos na década de 60, além de periódicos e revistas especializados obtidos em permuta com os maiores centros de Pedagogia do mundo.

     Ainda nestas duas décadas, seus esforços se voltam para a universalização da escolaridade primária, o treinamento e aperfeiçoamento de professores, a educação pré-escolar, o ginásio único e pluricurricular (fusão do ginásio "acadêmico", para "elite", e do ginásio de "ofício", para a "massa"); a organização da universidade e os cursos de pós-graduação. Nestes últimos, organiza o Centro de Estudos Avançados de Educação da Fundação Getúlio Vargas.

     De 1964 a 1971, Anísio Teixeira procura voltar às origens de sua formação, mas já agora preocupado em pesquisar as raízes do próprio pensamento ocidental contemporâneo, com grande repercussão no fenômeno educacional dos povos modernos e do Brasil, em particular.

     Dirigindo a coletânea Cultura, Sociedade, Educação, da Editora Nacional, faz editar 20 monografias de grandes cientistas e pensadores europeus, americanos e brasileiros, senão os de língua estrangeira traduzidos por ele próprio. Volta às origens logo ele que mobilizou, como vimos, com as suas luzes, todos os graus , ramos e níveis da educação brasileira:

  1. Implantou pioneiramente a educação pré-escolar com a "Reforma do Distrito Federal" de 1931.
  2. Criou as universidades do Distrito Federal e de Brasília.
  3. Apoiou o movimento intelectual de sua época e que nortearam a criação da universidade de São Paulo, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, da Escolinha de Arte do Brasil, da Sociedade Pestalozzi do Brasil, da Fazenda do Rosário, os dois últimos voltados para a criança carenciada.
  4. Reuniu as escolas primária e média e promoveua criação do ginásio único e pluricurricular.
  5. Implantou a pós-graduação para consolidar a função docente em alto nível.

     Em 1967, entristecido com muitas injustiças que sofreu, se despede da educação brasileira em discurso proferido na mesma Salvador que o viu iniciar, durante a III Conferência Nacional de Educação.

     Em 1971, trágica morte no poço de um elevador no Rio de Janeiro apaga para sempre a luz fulgurante de Anísio Teixeira.

     Para Anísio Teixeira se podem dizer as mesmas palavras com que ele prefaciara o livro de Arthur Ramos A criança problema, produto de trabalho realizado no Serviço de Ortofrenia do Distrito Federal no início da década de 30 e que se constitui na obra mais importante sobre psicologia do desenvolvimento escrita em Língua Portuguesa: quando o estudioso de 2050 desejar conhecer o que se realizou nas décadas de 1930, 1940, terá que se debruçar sobre Anísio Teixeira e sua geração extraordinária.

     Até lá, os coqueluches e alquimistas pedagógicos de agora terão sido completamente comidos pela poeira do tempo. Quando se escrever a história da cultura do século XX, sem dúvida um lugar estará reservado a Anísio Spínola Teixeira.

Roberto Levy Benathar

REFERÊNCIA

     Estudo detalhado com indicações de fontes para pesquisa da obra de Anísio Teixeira se encontra em: Benathar, R. L. 1979. A regionalização da ciência no Brasil e suas implicações na educação, na saúde pública e na medicina preventiva. In: Binsztok, J. et al, Regionalização e urbanização. Rio de Janeiro, Ed Civilização Brasileira.

     1. Artigo especialmente escrito para Ciência e Cultura em homenagem ao 10º aniversário de morte do professor Anísio Teixeira.
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     2. Na teoria da aprendizagem de Dewey representa o estar em constante atividade. A atividade gera o problema e este cria o projeto. (N. do autor).
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