MARINHO, Josaphat. Anísio e a educação para democracia. Palestra proferida na Fundação Anísio Teixeira. Salvador, 21 jul. 1998.

ANÍSIO TEIXEIRA E A EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA

Refletir sobre Anísio Teixeira e a educação para a democracia ou na democracia, mesmo brevemente como exige o ritual desta sessão, pressupõe um esclarecimento essencial. Que é ou será educação na democracia ou para a democracia?

Para um liberal puro, será o preparo destinado ao exercício da liberdade, ou das liberdades fundamentais. O socialista considerará a forma de instruir para a vida, em regime de igualdade. O neoliberal conceberá como o método de ensinar a viver no mundo globalizado. Em ensaio sociológico, jurídico e de filosofia política, Laun escreveu que "entre todos os regimes, é o democrático aquele em que o menor número de indivíduos é sacrificado, e o é o menos possível, a fins e juízos de valores de outros indivíduos". Admite assim que uma parcela de pessoas possa ser prejudicada, excluída dos bens da civilização, o que faz presumir que também a educação não a amparará. Todas essas interpretações conduzem a ver a educação para a democracia sob ângulos isolados, por matizes de concepções diversas. Segundo esses critérios parcializados, a educação servirá a indivíduos, a pessoas; não servirá ao indivíduo, à pessoa humana, no conjunto de seus atributos de integrante da sociedade.

Não era esta a idéia de Anísio Teixeira, o Educador. Para ele, a educação devia beneficiar e desenvolver todos os indivíduos. Na exposição que fez à Assembléia Constituinte da Bahia, em 1947, acentuou, com clareza exemplar: "Há educação e educação. Há educação que é treino, que é domesticação. E há educação que é formação do homem livre e sadio. Há educação para alguns, há educação para muitos e há educação para todos. A democracia é o regime da mais difícil das educações, a educação pela qual o homem, todos os homens e todas as mulheres aprendem a ser livres, bons e capazes" . E prosseguiu, esclarecendo: "A educação faz-nos livres pelo conhecimento e pelo saber e iguais pela capacidade de desenvolver ao máximo os nossos poderes inatos. A justiça social, por excelência, da democracia consiste nessa conquista da igualdade de oportunidades pela educação".

Essa igualdade de oportunidade não é, porém, no juízo do educador esclarecido, abstratamente considerada, nem geradora de similitudes absurdas. A igualdade de oportunidades é para proporcionar ao indivíduo a afirmação de sua personalidade, consoante os valores que a integram. Não é o suporte genérico de liberdade, de igualdade, de convivência sem fronteiras, que basta para caracterizar a educação na democracia, ou a ela dirigida. O que lhe dá perspectiva é situar o indivíduo em lugar próprio, no meio social, segundo suas qualidades ou aptidões. Por isso mesmo, já em 1933, em entrevista ao jornal A Nação, Anísio Teixeira observava que a educação visa a "dar a cada indivíduo o lugar na sociedade a que o destinem os seus méritos e a sua capacidade", e "sem qualquer restrição de ordem social, econômica ou de nascimento".

Situando assim o indivíduo na sociedade, a educação o prepara para a democracia. Cada qual utilizando seus méritos e sua capacidade, universaliza-se a força dos indivíduos, impedindo ou reduzindo privilégios e desigualdades artificiais. Como o homem carrega interesses, se pratica excesso, a correção se faz pela censura moral ou pela sanção organizada da sociedade.

Logo, em 1947, na Assembléia baiana, forrado de mais conhecimentos e de mais experiência, Anísio Teixeira confirmava a tese ou a observação de 1933, e demonstrava que unia a teoria à prática, para desdobrar o processo educacional com racionalidade e objetividade. Toda sua vida de educador reflete, aliás, essa conjugação de valores: as idéias e sua experimentação segura. Ao realçar-lhe a luta que travou pela escola pública, Florestan Fernandes salientou que "Anísio tinha a compreensão teórica e prática dos problemas educacionais brasileiros, projetando esses problemas dentro de nossa realidade". E disso citou exemplo expressivo. "Vejamos bem, -apontou- na fundação da Escola-Parque, Anísio Teixeira pensava em defender a qualidade do ensino, concretamente. No que mais ele pensava? Em ampliar as oportunidades educacionais, isto é, tornar a educação democrática".

Por ser livre e coerente em pensamento e ação, a serviço da educação democrática, foi suspeitado de comunista, perseguido e excluído das atividades de ensino, por longos anos de poder ditatorial. Não mudou. Trabalhou, enriqueceu o pensamento com o estudo e as lições da vida, e manteve o imenso poder de confrontar idéias, por meio delas criando a fraternidade dos contrários. Com humildade, convocava o interlocutor ao debate, se não era contestado. Não se tratava de exibição, mas do empenho de apurar a verdade, para pensar e fazer o certo. Nutria profunda certeza de que onde não vigora a livre crítica a educação não é democrática, nem prepara para a democracia. E provava essa certeza respeitando o julgamento adverso.

Restituído o país à democracia, ocupava ele cargo de direção no Ministério da Educação. Encontrou-se, então, com um jornalista - que se tornaria seu amigo e devoto de sua capacidade criadora - e lhe perguntou se era o autor de críticas feitas, num órgão comunista, ao discurso com que inaugurara, nesta Capital, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, quando Secretário de Educação no governo Otávio Mangabeira. Como o jornalista buscasse explicar o erro que cometera, Anísio Teixeira o interrompeu para declarar-lhe que foi uma das poucas contestações a sua fala, e rematou: "e eu tenho por norma estimar os rebeldes". Nessa manifestação de espontâneo respeito à liberdade de divergência e de crítica, retratava-se, na plenitude da expressão, o educador na democracia.

Submetia-se ao que ensinava e recomendava, para transmitir o exemplo de correção. Argüía suas próprias idéias, na ânsia de torná-las mais objetivas e exatas. Observou-se, assim, a propósito de sua obra Educação para a Democracia, ao reeditá-la, que poderia não ser um "livro, para os amantes do completo, do harmonioso e do perfeito", e talvez não o publicar, se "quisesse refletir muito sobre ele".

O espírito indagativo, que aplicava na educação para estimular a liberdade de exame e formar homens livres, incidia também em suas convicções, a fim de depurá-las convenientemente. O diálogo constituía forma natural de seu processo de convencimento.

Era o educador puro: transmitia, e ao mesmo tempo praticava o que dizia, como reclama a ética democrática. Acreditando nas idéias, não se restringia a enunciá-las. Dava-lhes projeção real. Salientava que "ser livre importa em seguir a idéias até onde ela nos levar". Como as idéias variam de dimensão em contato com a realidade, os riscos para o homem são ilimitados e constantes. Nem por isso titubeou diante do perigo. Serena e firmemente asseverou que "a liberdade é uma conquista que está sempre por fazer". Eqüivale a afirmar: é um processo, como a educação.

Não reduzia ao livre pensar, porém, a experiência democrática, alicerçada na educação. Para que essa experiência se desenvolva adequadamente, é indispensável que o indivíduo se revista do poder de investigação, que pressupõe saber suficiente. Daí haver assinalado que "a experiência democrática só terá sido feita... quando, além do sistema de educação, se tiverem organizado o sistema de pesquisa e o sistema de difusão dos conhecimentos. Os três existem, em germe, em nossas democracias ocidentais, mas não se pode dizer que estejam funcionando em condições verdadeiramente democráticas".

Ainda assim funcionam hoje, deploravelmente, em muitos países, inclusive no Brasil, o que comprova a visão de Anísio Teixeira de descortinar o futuro pela educação. E o fazia sempre com clareza convincente.

Informa Artur da Távola que "esse atleta da inteligência, paixão de racionalidade e lucidez, tinha medo do escuro, o único medo" que lhe vislumbrou "em muitos anos de convivência íntima". Não surpreende o depoimento fiel. Anísio teixeira detestava a escuridão porque viveu, pensou e agiu como uma claridade radiante, nas incertezas da vida brasileira.

A modesta e zelosa homenagem desta hora, promovida pela Fundação que lhe guarda o nome e a memória, há de ser o vaticínio das grandes demonstrações de justiça e respeito, que lhe serão dedicadas, dentro de dois anos, no centenário de seu nascimento. Ocorrerá em 12 de julho do ano 2.000. Se pudesse participar da comemoração, Anísio Teixeira, decerto, não perderia tempo em agradecimento formal. Vibrando com o início de novo século, convidaria os presentes ao ato de recomeço do processo de estudo, discussão e execução das idéias, como sempre o fez, com inquieta vontade de realizar Salvador-Ba., julho, 1998

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