GHIRALDELLI JR., Paulo. A atualidade filosófica de Anísio Teixeira. Educação. Rio de Janeiro, v.32, n.101, abr./jul. 2000. p.23-27.

A ATUALIDADE FILOSÓFICA DE ANÍSIO TEIXEIRA

Paulo Ghiraldelli Jr.

Muitos foram desmotivados de acreditar em Anísio, então visto a partir de meados dos anos 70 como "escolanovista", "tecnicista", "ame ricanista" e, pior que tudo isso, "liberal" - todas essas palavras que passaram a participar de uma "semântica de tempos de guerra" nos programas de pós-graduação e depois, também, em aulas de graduação.

Por conta da luta da direita e da esquerda contra o pensamento dito liberal, todo movimento filosófico de John Dewey foi atacado, transformado por ambas em "tecnicismo". Assim, Anísio, o reconhecido discípulo brasileiro de Dewey, indiretamente, passou a ser fustigado quando então, já morto, não encontrou uma voz suficientemente forte para defendê-lo.

Agora, no centenário de nascimento de Anísio Teixeira, livres (ou já quase livres) daquela literatura que dominou os influentes programas de pós-graduação em filosofia da educação nos anos 70 e 80, talvez tenha chegado a hora de fazermos com Anísio o que a literatura filosófica norte-americana tem felto com Dewey nos últimos tempos: começar a lê-lo sem traumas ideológicos, sem patrões e sem (falsas) estrelas dominantes em programas de pós-graduação. Somos capazes disso? Somos capazes de dizer para a velha geração de preconceituosos: "Agora chega!"?

Anisio deve ser lido como filósofo social e redescrito como filósofo atual, vivo. É possível isso?

Ciência e técnica desligadas da filosofia

Na minha maneira de ler a história da filosofia dos últimos trinta anos, olhando para a "tradição continental" e tendo no peito o amor pela filosofia da educação, o ponto marcante, ou seja, o ponto de inflexão da filosofia no Ocidente poderia ser sinalizado por uma pequena brochura: A Condição Pós-rnoderna, de Jean François Lyotard. Em analogia, olhando a "tradição analítica" não tenho como não apontar o livro A Filosofia e o Espelho da Natureza, de Richard Rorty. Ambos os livros são de 1979, e ambos os livros são grandes sínteses de autores que, uma vez entrando na maturidade, puderam, hegelianamente falando, sobrevoar o que havia ocorrido no século XX, já que estávamos no entardecer. Em ambos os livros havia um anúncio especial e específico para a filosofia da educação. Vou lembrá-los apenas no que eles tinham de negativo, e não na proposta positiva que cada um deles trazia. Primeiro, A Condição Pós-moderna. Lyotard dizia: vivemos em uma época não mais moderna, vivemos em uma época pós-moderna, e isto porque ninguém mais acredita em metanarrativas, ninguém mais pode intelectualmente usar metanarrativas para sustentar suas narrativas ou seus discursos científicos, ou seja, vivemos em uma época em que discursos como os da ciência e da tecriologia se desligaram, no interior da consciência dos intelectuais, dos grandes discursos filosóficos que, na modernidade, eram tornados pelos intelectuais como sustentáculos necessários dos discursos com valor de verdade.

Segundo, A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rorty dizia: vivemos em uma época onde o que era o núcleo da filosofia moderna - a epistemologia, a teoria do conhecimento científico - não tem mais o valor de verdade fundamental que tinha na modernidade; ou seja, vivemos em uma época em que os intelectuais dedicados especificamente à filosofia começam a perceber que a metafísica moderna, ou seja, a epistemologia fundacionista, com seus sustentáculos na filosofia da mente e nas teorias da verdade de âmbito lógico e/ou epistemológico, não podem mais ter a pretensão de guias da cultura ou sustentáculos da cultura como pretendiam.

Quando Lyotard e Rorty disseram isto, a filosofia da educação, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, começou a se incomodar. Ela se sentia incomodada em dois terrenos.

A Pedagogia como variante da utopia

Primeiro. A filosofia da educação enquanto uma doutrina que acolhia uma metanarrativa, fosse ela qual fosse (qualquer das variantes do lluminismo), parecia não ter mais nenhuma função. Parecia que havia definitivamente chegado a hora e a vez de Durkheim, ou de um certo Durkheim: "basta de pedagogia" - dizia ele - "pois esta ainda é uma variante da filosofia da educação e, portanto, das utopias, e que viva então as ciências da educação!".

Segundo. A filosofia da educação enquanto uma investigação epistemológica e lógica sobre a verdade, que mantinha a legitimidade do discurso educacional, fosse este a própria teoria educacional - a didática - ou fosse este o discurso da ciência exposto didaticamente - os conteúdos -, perdia sua validade enquanto núcleo seguro do discurso educacional.

No centenário de nascimento de John Dewey, em 1959, Anísio Teixeira escreveu o que eu vejo como um dos mais simples e ao mesmo tempo mais interessantes artigos em filosofia da educação produzidos por um brasileiro, considerando aqui, obviamente, o tempo e o lugar. Vou citar o trecho, embora dividindo-o propositalmente em partes numeradas, para que leitor preste bastante atenção em cada ponto separadamente. Anísio disse:

I) De qualquer modo, porém, todo o grande problema contemporâneo continua a ser o da organização da sociedade democrática, com uma filosofia adequada, em face dos novos conhecimentos científicos, das novas teorias do conhecimento, da natureza, do homem e da própria sociedade democrática.

II) Essa filosofia, que irá determinar a educação adequada à nova sociedade democrática em processo de formação, já se acha esboçada na grande obra de John Dewey, que a traçou tendo em vista, mais especialmente, a sociedade americana, a qual, por um conjunto de circunstâncias, constitui a sociedade que, historicamente, mais se viu sob a influência direta do espírito oriundo dos movimentos pré-democráticos dos séculos XVI e XVIII e mais liberta das influências do feudalismo e da Idade Média.

III) Como as filosofias, em suas formulações teóricas, ocorrem sempre a posteriori, mais como explicações ou justificações da culturas existentes, ou predicações para sua reforma, revisão e reconstrução, não se consegue a sua implantação senão depois de longos esforços e lutas.

IV) A educação institucionalizada em escolas resiste, de todos os modos, à ação das novas idéias e novas teorias, e só lentamente se irá transformando, até chegar a constituir verdadeira aplicação da nova filosofia democrática da sociedade moderna. (Teixeira, Anísio. Filosofia e educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v. 32, n. 75, jul./set. 1959. p.14-27.: retirado da Biblioteca Virtual Anísio Teixeira, no Site do " Prossiga ". (www.prossiga.br/anisioteixeira/)

O trecho acima mostra toda a atualidade real de Anísio.

Primeiro: Anísio tinha claro que o problema era o da adequação entre a explicação filosófica - que ele, hegelianamente, sabia que se tratava de uma explicação a posteriori - e a forma de vida democrática. A forma de vida democrática, exatamente por ser oposta à estagnação da forma de vida feudal, participa do dinamismo do culto ao que é novo, e a América é exatamente onde o novo se apresenta quase que como um imperativo. Para mantermos a coerência intelectual, teríamos que participar de uma metanarrativa, de uma filosofia, que fosse capaz de ser tão dinâmica quanto as narrativas que ela vem justificar, as narrativas científicas etc.

Uma visão harmônica do cotidiano

Segundo: a Escola não pode ensinar algo sem justificativa, sem um solo que possa ser chamado de metadiscurso e que esteja garantindo o seu discurso, ou sem algo que possa ser chamado, por exemplo, de epistemologia, uma teoria do conhecimento - conhecimento este que é a base dos conteúdos escolares. Mas note: esse metadiscurso não vai fundar ou fundamentar o discurso em um sentido tradicionalmente metafísico ou mesmo epistemológico, mas ele precisaria existir no mínimo para termos uma visão harmônica a respeito do que fazemos cotidianamente, enquanto criadores e usuários das ciências e da tecnologia nos seus mais variados modo de aparecimento. Ou seja, o discurso filosófico da educação não tem de ser um discurso fundacionista, embora precise existir na medida em que nossa vida intelectual é, enquanto vida intelectual, coerente: enquanto professores, podemos abrir mão de garantirmos aos alunos que estamos falando a Verdade em nossa aula, mas não podemos abrir mão de garantirmos a verdade de nossa aula, ou seja, a consistência lógica e didática de nossa aula enquanto aquilo que nossos melhores pares chamam de conhecimento.

A filosofia da sociedade democrática

Terceiro: mas como fazer esta junção, capaz de nos armar com novas sínteses, se a escola resiste às novas idéias, se ela mesma resiste as novas sínteses filosóficas que tornariam o discurso educacional - tanto a didática quanto os conteúdos - um conjunto harmônico entre narrativas científicas e as novas justificativas, digamos, filosóficas? Em outras palavras: como ver na escola a sua prática, dentro de uma democracia - a forma de vida moderna adotada no Ocidente e exportada para o Oriente -, em harmonia com uma "filosofia da sociedade democrática"?

Um discurso moralmente correto

Ora, ao meu ver, se pudermos ler o trecho citado como expressões desses três pontos acima, não podemos duvidar que em 1959, no centenário de nascimento de Dewey, Anísio estava refletindo, em filosofia da educação, rnutatis rnutandis, nos mesmos termos que norte-americanos e europeus refletiram, vinte anos depois, quando da publicação de A Condição Pós-rnoderna e A Filosofia e o Espelho da Natureza. Minha avaliação, então, é que Anísio rondava o problema básico da "filosofia da educação de nosso tempo" como Dewey rondou este problema e, por isso, este último, teve condições de ser lido como um filósofo vivo por Rorty, nos Estados Unidos, e por Habermas, na Europa. Anísio podia estar para nós, quando lemos Lyotard, como Dewey esteve para Rorty quando este leu Lyotard.

Traduzindo tudo isto para a prática cotidiana do professor, e nos mantendo dentro da preocupação daquilo que estamos considerando filosofia da educação, o que se pode dizer?

Se sou professor, e entro na sala de aula, entro para dizer um discurso verdadeiro e moralmente correto. Ora, mas o que me garante que eu falo a verdade e que eu julgo e ensino a julgar corretamente? Se pudesse ter lido Lyotard ou Rorty, Anísio diria: eis aí a questão, eis aí a contradição: qual filosofia da educação adotar se a filosofia da educação é sempre Filosofia e, portanto, platonismo - a idéia de um mundo básico imutável, ideal, e portanto mais real, que subjaz a um mundo contingente, apenas empírico, e portanto menos real? Ou mais explicitamente: qual filosofia da educação adotar no interior de uma "civilização em constante e rápida mudança", se esta mudança atingiu até mesmo o que havia de mais estável: as metanarrativas e as bases do conhecimento, ou seja, a epistemologia (seja esta metafísica ou não)?

Anísio e Lyotard, dois espíritos inquietos

É claro que Anísio tinha uma resposta, diferente da de Lyotard - a idéia da ciência enquanto articulada à paralogia - e mais próxima da de Rorty - o ultrapassamento da discussão epistemológica e o aprofundamento da luta pela democracia e pelo seu aperfeiçoamento. Mas disso não decorre que Anísio Teixeira vivesse então como um homem tranqüilo (muito menos eu creio que Rorty viva tranqüilo ou que Lyotard tenha morrido tranqüilo). Anísio Teixeira, ou Lyotard, não foram como Sócrates ou como Epicuro. Estes, foram homens que acreditavam que podíamos e devíamos morrer tranqüilos. Eu ficaria decepcionado se soubesse que Anísio era tranqüilo, ou que Lyotard era tranqüilo. Penso neles como espíritos inquietos, até um pouco tristes. Assim Rorty também me parece.

Mais esperança do que conhecimento

A resposta de Anísio se enquadra não dentro da resposta do platonista, do padre ou do marxista, aqueles que sabem o que vai acontecer. A resposta de Anísio se enquadra no espírito de Lyotard e de Rorty: respostas taxativas, que se parecem com certezas mas, antes que tudo, são muito mais esperanças nebulosas do que quaisquer certezas. Ora, talvez esteja aí, então, a nova filosofia da educação: antes "esperança que conhecimento", como já escreveu Rorty. Ou ainda: "pessimismo quanto ao conhecimento e otimismo quanto a prática", como já escreveram Horkheimer e Gramsci.

* Paulo Ghiraldelli Jr leciona filosofia contemporânea e filosofia da educação. É professor visitante na Auckland University, na Nova Zelândia, e professor regular na Universiclade Estadual Paulista (Unesp), em Marília. E autor, entre outros livros, de Richard Rorty - a filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos (Vozes, 1999) e O que é Filosofia da Educação? (DP&A, 2000). Seu site, "Filosofia e Filosofia da Educação" está em www.filosofia.pro.br

| Scientific Production | Technical & Administrative Production | Literature about the Educator |

| Journal articles | Chapter of book | Pamphlets | Books |
Monograph and Dissertations | Conference papers |