PAGNI, Pedro Angelo. Educação: ciência ou arte? Educação. Rio de Janeiro, v.32, n.101, abr./jun. 2000. p.18-22.
EDUCAÇÃO: CIÊNCIA OU ARTE?
A ATUALIDADE DE QUESTÃO POSTA POR
ANÍSIO TEIXEIRA A FERNANDO DE AZEVEDOPedro Angelo Pagni
Recordar essa discussão ocorrida no passado parece ser oportuno não apenas por ela ter sido esquecida, como também em razão das confusões ainda existentes sobre os problemas ou o objeto da pesquisa em educação no presente. Com este artigo, retorno os questionamentos de Anísio Teixeira a Fernando de Azevedo, pois neles é possível encontrar uma alternativa ao tratamento dado à educação como objeto da ciência pelas pesquisas em educação desenvolvidas desde os anos 1950, com o intuito de legitimar a Ciência da Educação no meio acadêmico brasileiro. Mesmo reconhecendo os limites desses questionamentos ao contexto específico em que foi formulado, a sua explicitação nos auxilia a reabrir um veio profícuo de discussão sobre as pesquisas em educação no Brasil.
A necessidade de mais filosofia do que de ciência
As divergências entre esses dois Pioneiros da Educação Nova começaram a se definir melhor a partir do livro Educação Progressiva de Anísio Teixeira, publicado em 1934, se desenvolvendo nas conferências de Fernando de Azevedo sobre a política de educação, proferidas entre 1934 e 1940, e em seu livro Sociologia Educacional, publicado em 1940. Mas é numa carta (20/04/1940) endereçada a Fernando de Azevedo, onde o Sociologia Educacional é apreciado por Anísio Teixeira, que essas divergências foram explicitadas. Nessa carta, selecionada e encontrada em O'Neil (1972, p.130-1), Anísio Teixeira escreve o seguinte:
Pode-se discordar em detalhes da sua obra, mas nas suas grandes linhas a Sociologia educacional é uma lúcida e vigorosa formulação do estágio presente da ciência da educação. Dentro do livro agita-se a eterna questão, a questão fundamental do determinismo ou do indeterminismo das diretrizes educacionais. É a educação toda ela um resultado de forças sociais, ou, em parte, pelo menos pode sofrer a direção voluntária do homem? Bem sei a sua resposta e a de Durkheim. Se houver uma ciência da educação, isto apenas nos aumentará o poder de modificar a educação. Transformamos o mundo material depois que Ihe descobrimos as leis fundamentais. Perfeitamente. Mas a transformação, o senticto da transformação obedeceu ao arbítrio humano. Ora, a educação é um sentido. E este sentido é arbitrário ou imposto pelas instituições? Toda a dificuldade está aí. Creio que em educação sempre haverá mais necessidade de filosofia do que de ciência. Estou em que a educação é, sobretudo, urna arte que progride como progride a música. Progride em técnica, em instrumental e em gênios criadores. 0 seu livro fascinou-me mais pelo que tem de filosófico do que de científico. Não me convenci do seu ponto de vista sobre a sociologia educacional. Acho que o filósofo da educação precisa trabalhar cada vez mais sobre uma ciência do fenômeno social e uma ciência do fenômeno psíquico e uma, talvez, psico-social. É com elementos, é destes elementos que se faz a arte da educação, como a Medicina e mesmo a da engenharia se fazem com elementos das ciências biológicas e das matemáticas. São, porém, meu caro Fernando, grandes questões das ciências da educação que não se podem debater por carta. (grifos meus).
As três questões levantadas por Anísio Teixeira nessa carta referem-se: ao "problema fundamental do determinismo ou do indeterminismo das diretrizes da eclucação" - ou, em outras palavras, se seria dirigicla pelas "forças sociais" ou pela vontade humana -; ao modo de conceber a relação entre filosofia e ciência ou filosofia e sociologia; e à questão de saber se o fenômeno educacional deve ser tratado enquanto objeto da ciência da Educação ou simplesmente como arte.
Anísio Teixeira sugere que Fernando de Azevedo segue à risca a recomendação de Durkheim (1967) segundo a qual as finalidades da educação deveriam ser definidas pela sociologia enquanto que a psicologia seria responsável pela definição dos meios da educação. Embora seja discutível essa sugestão, o que importa é que Anísio Teixeira questiona a possibilidade de a sociologia e de a psicologia formarem as bases da Ciência da Educação nos termos postulados por Durkheim e assumido por Fernando de Azevedo (1951) no livro Sociologia Educacional. Ao contrário de Fernando de Azevedo, que restringe o papel da filosofia à definição dos fins da educação - sobretudo dos valores humanos e morais imutáveis -, com o apoio de uma sociologia que conhece a realidade e a "evolução social" onde a educação ocorre, Anísio Teixeira considera haver indissociabilidade entre os fins e os meios da educação, atribuindo à filosofia compreender esse processo e recorrer à ciência para dirigí-lo e coordená-lo. Esta pode ser a razão de Anísio Teixeira afirmar que a educação precisaria mais de filosofia do que de ciência na carta supra citada.
Precisando melhor essa questão, Anísio Teixeira vai dizer que filosofia e ciência são dois pólos do conhecimento humano, a primeira representando o "mais alto grau de conhecimento geral" e a segunda tendendo ao conhecimento especializado. Entre ambas deveria existir um intercâmbio permanente, "a ciência se revendo à luz dos pressupostos e conceitos generalizadores da filosofia" e, por sua vez, esta nutrindo-se permanentemente daquela, forçando-se a "combinações e sínteses mais fundadas". Entretanto, no seu entender não se trata de a filosofia estabelecer os fins e a ciência, os meios, mas sim que ambas devem atuar criticando, reelaborando e refinando fins e meios. Não era isso que se via em relação à ciência da Educação:
A não-existência dessa cooperação ou interação, entre a ciência e a filosofia, levou a chamada "ciência da educação" a não ter filosofia, o que corresponde realmente a aceitar a filosofia do status quo e a trabalhar no sentido da tradição escolar, a que efetivamente obedeceu, agravando em muitos casos, com a eficiência nova que lhes veio trazer, os aspectos quantitativos e mecânicos da escola, que Ihe teriam de aparecer - et pour cause - os mais científicos aspectos da escola. (Teixeira, 1969, p. 54)
Anísio Teixeira parece considerar arriscado tratar a educação ou o fenômeno educacional como um objeto da ciência e, particularmente, da "Ciência da Educação", como faz Fernando de Azevedo. Isso implicaria, segundo ele, em conhecer a prática educativa pela ciência e depois aplicar esse conhecimento à prática pedagógica, reiterando a dissociação entre teoria e prática, e não compreendendo-as como um processo contínuo, característico da arte de educar. Essa arte "consiste em modos de fazer" que implicariam em conhecimentos da matéria com a qual se está lidando, métodos de operação e de um estilo.
Não se trata, pois, de criar propriamente uma "ciência da educação", que, no sentido restrito do termo, como ciência autônoma, não existe nem poderia existir; mas de dar condições científicas à atividade educacional, nos seus três aspectos fundamentais - de seleção de material para o currículo, de métodos de ensino e disciplina, e de organização e administração das escolas. Por outras palavras: tratava-se de levar a educação para o campo das grandes artes já científicas - como a engenharia e a medicina - e dar aos seus métodos, processos e materiais a segurança inteligente, a eficácia controlada e a capacidade de progresso já asseguradas às suas predecessoras relativamente menos complexas. (Teixeira, 1969, p.46)
Só há ciência autônoma quando há, segundo ele, "um corpo sistemático de conhecimentos, baseados em princípios e leis gerais, que Ihe dêem coerência e eficácia". Pelo fato de a educação ser uma prática, as ciências não poderiam dar "regras de arte", mas apenas "conhecimentos intelectuais para rever e reconstruir, com mais inteligência e maior segurança, as nossas atuais regras de arte, criar, se possível, outras e progredir em nossas práticas educacionais". Por sua própria natureza.
Tudo, na realidade, entra nessa prática. A nossa filosofia, concebida como o conjunto de valores e aspirações, as ciências biológicas, psicológicas e sociais, todas as demais ciências como do conteúdo do ensino, enfim, a cultura, a civilização e todo pensamento humano em seus métodos e resultados. Prática desta natureza e desta amplitude não vai buscar suas regras em nenhuma ciência isolada, seja mesmo a psicologia, a antropologia ou a sociologia; mas em todo saber humano e, por isto mesmo, será sempre uma arte em todas as aplicações técnicas terão de ser transformadas, imaginativa e criadoramente, em algo de plástico e de sensível suscetível de ser considerado antes sabedoria do que saber - oposto tais termos um ao outro no sentido de que sabedoria é, antes de tudo, subordinação do saber ao interesse humano e não ao próprio interesse do saber pelo saber (ciência) e muito menos a interesses parciais de certos grupos humanos. (Teixeira, 1969, p. 46)
Assim, Anísio Teixeira amplia as possibilidades de investigação da prática educativa, assim como reitera que esta deveria ser desenvolvida com o propósito de reorientar essa mesma prática, solucionando os problemas delas decorrentes e reformando-a no sentido de propiciar as crianças e aos jovens uma maior consciência dos problemas postos pela civilização atual e os instrumentos necessários para refleti-los e para buscar o aprimoramento da vida humana (não meramente individual).
Arte de educar: limites contextuais e possibilidades atuais
Anísio Teixeira percebia, dentro de seus limites, o papel desempenhado pela máquina e pela ciência sobre os homens, porém, pensava que a educação e a filosofia poderia compensá-los:
Não que acreditemos que o homem volte atrás. O homem vive não tanto para ser feliz, como pelo seu próprio instinto de viver. O dia presente o ocupa e o absorve, e a expectativa de amanhã é sempre, por força de sua natureza, a de um dia melhor. Mas se essa expectativa não se for confirmando não se há de azedume que se há de encher a vida, e sim de um pouco mais de reflexão e de filosofia. Urge que aproveitemos esse pouco de reflexão e de filosofia. A civilização material tornou um mundo de coisas possível e fácil. Por outro, o método experimental franqueou às inteligências novos recursos, para resolver os problemas mais intrincados... (Teixeira, 1950, p.112-3 - grifos meus)
Anísio Teixeira condiciona o progresso ao desenvolvimento da ciência e o aprimoramento da humanidade à implantação de uma escola que fosse "instrumento de renovação social", alimentando assim uma fé cega nesses veículos pelos quais acredita ver "transformada a realidade". O que Anísio Teixeira não pondera é que boa parte dos problemas e dos efeitos decorrentes da ciência e da industrialização são produtos da própria sociedade moderna. Mesmo nas democracias liberais - como a pensada por ele e pressuposta para esse processo de escolarização -, há traços autoritários e uma atitude política de preservação da ordem social existente. Anísio Teixeira acaba reiterando, assim, os aspectos conservadores de uma mentalidade que deposita uma fé cega no progresso e na escola como veículo de transformação da realidade. Em suas palavras: "Só assim a escola cumprirá as suas funções. E só assim, a escola poderá fazer, ela, a Revolução, antes que a façam na rua." (Teixeira, 1950, p. 113-4).
Sob esse aspecto, a escola teria uma função política para Anísio Teixeira: evitar que a Revolução ocorresse na rua, inserindo-se na expectativa dos intelectuais de sua geração em promover reformas sociais dentro da ordem capitalista e em consubstanciá-las por intermédio da educação. Entretanto, também procura conferir a essa instituição um outro papel, diferente daquele até então representado.
Para ele, a escola teria que resolver uma série de questões para propiciar o aprimoramento da humanidade: a cultura complexa e difícil de ser aprendida, sem contar a dificuldade de estender a todos o acesso à educação. A escola caberia, ainda, cumprir seu antigo dever de conduzir os homens à participação na cultura e na civilização, assim como cumprir um novo dever: o de preparar os homens para guiar sua renovação. Para tanto, seria fundamental uma "ampla formação científica e social" para as novas gerações, além de uma formação dos professores que os tornasse capaz de compreender essa cultura e essa civilização atuais, refletindo mais claramente os seus problemas e as suas tendências. Somente assim os professores acompanhariam a "evolução humana", formando as novas gerações pela cultura e pela ciência, assim como informando-as dos problemas ainda por se resolver.
Contudo, antes de formar bacharés, seria necessário formar "pequeninos Sócrates", isto é, crianças e jovens que não apenas fossem talhados para o trabalho profissional, como também tivessem aguçada sua inteligência para que compreendessem as "incertezas do mundo complexo e mutável", desenvolvessem a tolerância e contribuissem para o enriquecimento e o "progresso da existência humana" (Teixeira, 1950, p.115).
Para tanto, Anísio Teixeira concebeu a escola como um meio de aproveitar o tempo da infância e da juventude para a reflexão e para a filosofia, preparando não apenas para o trabalho, mas para enfrentar os problemas não resolvidos pela civilização e, principalmente, para a democracia. Por essa razão, a sua utopia era formar "pequeninos Sócrates". Esta seria a função da arte de educar, que depende mais da filosofia do que da ciência: desenvolver o pensamento das crianças e dos jovens mais do que transmitir o conhecimento pronto. Função esta que tentou redimensionar o significado atribuído à filosofia pela Ciência da Educação e o seu papel enquanto componente da prática educativa.
Nesse sentido, a sua retomada aqui têm o intuito de recolocá-la na ordem do dia, não como uma saída aos problemas pedagógicos e filosóficos educacionais contemporâneos, mas como uma possibilidade que foi esquecida e cuja ponderação pode representar uma resistência ao modo como estas foram e são compreendidas ainda hoje no Brasil.
Referências Bibliográficas:
AZEVEDO, F. A educação e seus problemas. 4.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1948. Tomo 1.
. Sociologia educacional. 4.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1951.
DURKHEIM, E. Educação e sociologia. 7.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967.
ONEIL, C. Documentos de uma geração: cartas de Anísio Teixeira à Fernando de Azevedo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. (São Paulo), v. 13,1972.
TEIXEIRA, A. Ciência e Arte de educar. Educação e mundo moderno. São Paulo: Ed. Nacional, 1969.
. Educação progressiva (introdução à filosofia da educação). São Paulo: Ed, Nacional, 1950.
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