NASCIMENTO, Angelina Bulcão. O educador Anísio Teixeira. In: I Congresso Nacional de Arte e Educação, Salvador, 14 a 18 nov. 1983. Salvador: CEPAMBRA, 1983. p.13-18.

A Entrevista de Dr. Anísio Teixeira foi cedida e montada por Angelina Bulcão Nascimento, psicóloga-jornalista e teve como entrevistadores

Dr. Carlos Teixeira - médico psiquiatra

Dr. Paulo Duarte - médico clínico

O EDUCADOR ANÍSlO TEIXEIRA

Angelina Bulcão Nascimento

A fala de ANÍSIO TEIXEIRA pregou a educação popular como estrutura fundamental de um regime democrático, insistiu na valorização do professorado primário, questionou a escola tradicional.

Sua proposta de educação integral, suas idéias renovadoras para o ensino continuam atuais num país onde a escola é inatingível para grande parte da população, e não se adequa às necessidades dos que a ela têm acesso.

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Se os que trabalharam com Anísio Teixeira testemunharam sua constante preocupação com o problema educacional que culminou, entre outras realizações, na reforma do ensino e na criação da Escola Parque, os que com ele conviveram ressaltam uma figura fascinante - a pessoa aberta às coisas novas, o pai liberal numa época repressiva, o homem de hábitos e gostos simples.

Esse personagem, bem menos conhecido do que o homem público, essas características que não constam nas enciclopédias, nos foram apresentadas por um filho e um grande amigo.

"MENTAL-APPEAL"

"Mental-appeal, é o que Anísio Teixeira possuia - afirma dr. Paulo Duarte, que, apesar de ser 15 anos, mais moço, foi seu amigo, médico e confidente. - Assim como muitas mulheres têm sexy-appeal, ele tinha o que eu chamo de "mental-appeal". Todos que se aproximavam de Anísio, ficavam atraídos por seu fascínio intelectual. Minha irmã, que era sua cunhada, dizia: junto dele a gente se sente mais inteligente.

"Anísio me conquistou inteiramente, desde o dia em que o conheci, em 1938. Ele acabava de sofrer uma perseguição política tão grande, que o fez viver escondido durante algum tempo, e nem pôde testemunhar o nascimento de sua primeira filha. Minha mãe, que era comadre da mãe dele, insistiu para que eu fosse visitá-lo, já que eu morava em São Paulo, onde ele se encontrava."

INCOMPREENDIDO POR SER LIBERAL

"Naquele tempo, como até hoje - lembra dr. Paulo Duarte - qualquer pessoa libertária, qualquer pessoa de pensamento amplo, de pensamento livre, era olhada com suspeita. Anísio não foi o primeiro, nem será o último a ser envolvido numa perseguição ideológica, por ser liberal." O psiquiatra Carlos Teixeira, filho de Anísio confirma: "Embora pudesse ser identificado nitidamente, como pessoa de esquerda, meu pai não era militante. Não tinha aliás, nenhuma disciplina para a militância. Era apenas liberal."

Segundo dr. Paulo Duarte, "Anísio costumava dizer: Eu não tenho compromisso com idéia nenhuma, só tenho compromisso com o esclarecimento, e desde que eu seja esclarecido por um fato novo, imediatamente mudo de idéia. Isso nem sempre foi compreendido, sobretudo pela mediocridade." Por isso Anísio foi envolvido numa perseguição injusta, que o fez interromper seu trabalho como Secretário de Educação no Rio de Janeiro, no governo Pedro Ernesto.

DESPREZO À BUROCRACIA

Não foi esta a única vez que Anísio Teixeira foi mal interpretado e perseguido. O movimento de 64 também o afastou de suas atividades, com o fechamento da Universidade de Brasília, da qual era Reitor.

Seu filho se refere a esta fase de vida, quando, entre outras acusações ele respondeu um IPM, por ter desviado para aquela Universidade, verba do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - do qual era diretor.

"Meu pai era muito desrespeitador das normas burocráticas, até mesmo em relação a si próprio. Como havia acumulado o cargo de Reitor da Universidade de Brasília e Diretor do INEP, não admitiu receber dois salários, o que criou uma dificuldade brutal na contabilidade, porque o dinheiro depositado para ele não era sacado."

IRONIA E DOÇURA

Não apenas a burocracia, mas também o formalismo, Anísio Teixeira desprezava, segundo Paulo Duarte.

"Eu o ouvi muito comparar certas pessoas a túmulos caiados de branco."

"Anísio era muito acerbo em suas críticas, sobretudo com os homens que exerciam cargos de maior responsabilidade. Mas isso não implicava na afetividade que ele tinha às pessoas a quem criticava. Tanto, que eu dizia: você tem uma contradição na sua fisionomia - Você tem um olhar muito doce, mas tem um ritus na boca, que contradiz essa doçura."

"Referindo-se uma vez a uma pessoa que tinha uma certa notoriedade na Bahia, eu o ouvi dizer: é um homem que se esvaziou para criar uma certa compostura".

"Papai era muito crítico - confirma Carlos Teixeira - Ele não costumava se exaltar, mas era muito irônico. Muitas pessoas diziam que preferiam exaltação àquela ironia fina. Eu nunca o vi perder a calma, nem dizer palavrões, e quando nós dizíamos, ele falava que precisávamos sujar a boca para limpar o coração..."

TÃO GRANDE QUE NÃO ESMAGAVA NINGUÉM

"Essa ironia, porém, não se endereçava nunca aos humildes, com quem era humilde também. Papai tinha um respeito muito grande para com os empregados, era incapaz de pedir um favor. Se faltasse água na mesa, ele mesmo ia buscar. Ficava constrangido até em se dirigir a um garçon num restaurante".

"Anísio era tão grande que a gente nunca se dava conta que ele esmagasse alguém - afirma Paulo Duarte. Ele ficava do tamanho das pessoas com quem conversava, como naquele livro de Monteiro Lobato, "A Chave do Tamanho". Fossem as maiores sumidades do mundo, fosse comigo, fosse com o vendedor de cigarro, ele ficava do tamanho de cada um. A todos ele dava a mesma atenção, e gostava de bater papo." Carlos Teixeira concorda:

"Meu pai era um grande batedor de papo. A gente até brincava com ele: você não trabalha, você conversa. Conversar era talvez a maior atividade de meu pai".

RESPEITO A INTERESSE PELAS CRIANÇAS

"Seu respeito à criança era muito maior do que geralmente você encontra - lembra Carlos Teixeira - Ele não era de ficar com criança no colo, ficar agradando ou dando biscoito. Mas se ele via, por exemplo, um menino ir atrás de uma formiga, ele ia atrás também, e ficava observando ou puxando conversa para ver o que o menino estava achando daquilo".

"Papai achava fundamental introduzir a criança na descoberta do mundo, e por isso propunha o fim da linguagem importada, acadêmica, européia, que não permite conhecer como são as coisas em si".

"Meu pai achava completamente natural uma pessoa ser alfabetizada com três, quatro anos. Para ele, não havia nenhum trauma nisso. Considerava absurda a impessoalidade da educação escolar. Fundia sua cuca a avaliação impessoal. O vestibular para ele era uma grande excrecência, o concurso de professor no Brasil, um desafio hercúleo. Tinha o maior respeito pelo professor primário e investiu muito na sua valorização e qualificação".

EDUCAÇÃO: MEIO PARA A IGUALIZAÇÃO SOCIAL

"Anísio achava que a educação poderia ser pelo menos um começo de solução para a injustiça social, que o angustiava tanto. - prossegue Paulo Duarte - Um homem que teve a sua cultura e sua erudição não poderia deixar de se sensibilizar pela terrível situação brasileira. Basta olhar em volta para vermos uma imensa multidão de crianças que não sabem o que é a escola, não têm acesso a ela, vivem biscateando aqui e ali, não sabem nem quem são os pais. A educação para Anísio era uma solução, a saída do fundo deste poço".

A Escola Carneiro Ribeiro, mais conhecida como Escola Parque concretizou suas idéias.

ESCOLA-PARQUE: EDUCAÇÃO INTEGRAL

Com a expressão Escola-Parque, Anísio Teixeira traduziu o objetivo de que a escola não deve se limitar ao trabalho dentro de quatro paredes, mas no contato com a natureza. Ali, o aluno encontrava condições de desenvolver suas capacidades, e de aprendizagens de natureza ocupacional, destinadas a lhe dar emprego ou trabalho. O aluno entrava de manhã cedo, almoçava na própria escola, e não aprendia apenas a ler e escrever, mas a aproveitar todas as suas potencialidades.

O trabalho de sua irmã, dona Carmen Teixeira, foi de vital importância para este empreendimento.

INCOMPREENSÃ0 NÃO O DESESTIMULAVA

"Segundo seu filho, as incompreensões às suas idéias não desestimulavam Anísio Teixeira. "Ele estava mais preocupado em transformar os pequenos balões de ensaio, para ver se conseguia contaminar o restante. Todas as suas propostas em termos de administração e educação foram propostas em que esse balão de ensaio esteve presente".

"Eu costumava dizer - conta Paulo Duarte - que ele era como Cristo que não veio trazer a paz. Ele veio debater problemas, já que não aceitava o "status quo" e interpelava as pessoas, sobretudo do ponto de vista das idéias".

VISÃO DE 360º

Nada do que era humano era estranho, para Anísio Teixeira, nada o escandalizava, segundo Paulo Duarte. " Pois ele sempre via qualquer problema sob 360º, quando todo mundo se conformava em olhar num só aspecto. Conversamos muito sobre suicídio, homossexualismo, e nunca encontrei atitudes preconceituosas da parte de Anísio sobre nenhum assunto".

"Lembro-me da naturalidade de meu pai diante dos comentários sobre triângulos, quadriláteros amorosos, que naquela época eram mais condenados. Ele achava tudo aquilo curioso, ao invés de se escandalizar."

A sua falta de preconceitos, aliada a sua constante curiosidade, o levavam até a curtir televisão e novelas, já no final da vida - conta Carlos Teixeira.

PAI LIBERAL

Sua liberalidade se manifestava também no papel de pai. "Não havia nenhuma repressão lá em casa - admite seu filho - A postura de meu pai era sempre de "vamos esclarecer"?

"Era uma pessoa que delegava toda a responsabilidade de uma forma muito natural, não era homem de controlar boletim, qualquer projeto ou desejo nosso. Até em nível de opção profissional ele não interferiu. Isso desequilibrava os que viam nele aquela imagem de coisa consolidada, do educador com uma proposta muito objetiva e concreta, e na verdade, isso nunca ocorria".

"Quando saiu uma propaganda de um jovem percorrendo o país de lambreta, (uma das primeiras motos que saíram por aqui), papai achou aquilo uma coisa espetacular, e perguntou se não queríamos uma lambreta para conhecer o Brasil.

JESUÍTAS O QUERIAM PADRE

Somente uma grande inteligência explica um espírito tão aberto, e os que o conheceram não se cansam de se referir a ela.

"Ele raciocinava com uma ligeireza tão grande que eu dizia: você raciocina a 4000 rotações por segundo - admite Paulo Duarte - Não havia assunto que Anísio não conhecesse profundamente, e ainda tinha uma memória extraordinária."

"Nunca vi meu pai sem um livro na mão - diz Carlos Teixeira - O livro para ele era um companheiro. Mas ele não fazia da leitura aquela coisa chata de ficar fazendo referências toda hora..."

"Os jesuítas, que naquela época eram muito exigentes na capacidade intelectual de seu grupo, namoraram Anísio para ser padre também - prossegue Paulo Duarte - Talvez quisessem que ele fosse um segundo Leonel Franca. Mas ele perdeu a fé."

"Meu pai dizia que não era ateu, era agnóstico. E costumava contar que sua viagem à América e o convívio com Monteiro Lobato contribuíram para isso. Mas embora nunca tenha usado batina, nem freqüentado seminários, foi assessor de Dom Augusto, Cardeal da Bahia, e viajava constantemente com ele."

"Ele teve uma formação religiosa tão profunda que influenciou o seu pensamento. Muitas vezes recebi cartas de Anísio dizendo que "amar era amar todo mundo sem amar ninguém" - ressalta Paulo Duarte."

"Essa capacidade que ele tinha de se devotar aos problemas do mundo e de se sacrificar, me levaram a dizer que ele era a "matéria-prima de santo".

ASCETISMO NOS COSTUMES

Mas de Anísio Teixeira perdeu a fé, nunca perdeu a formação ascética dos jesuítas.

Embora nunca tenha visto meu pai sem paletó - conta Carlos Teixeira - ele era de usar camisas poídas, não por economia, mas porque achava que uma camisa não se deve jogar fora, se ainda puder ser usada. Ele achava um absurdo dispor de carro com motorista, era homem de pegar ônibus, de fazer fila, de tomar copo de leite em botequim e se alimentava frugalmente.

"Seu único vício era o cigarro. Meu pai se sentia burro e lento sem o cigarro. Tentou parar usando toda espécie de jogos, coisas cabalísticas: enquanto eu tiver um número ímpar de cigarros na carteira, só fumo um. Se eu tiver número par, não fumo hoje."

CRIOU ANJO AZUL PARA INTELECTUAIS

Quando Secretário de Educação na Bahia, Anísio Teixeira achou importante criar um ponto de encontro para intelectuais da noite, e montou a boate "Anjo Azul".

"0 "Anjo Azul" foi pago com o dinheiro do Estado, com o dinheiro da Secretaria de Educação - conta Carlos Teixeira - Meu pai chamou Carlos Bastos e o José Pedreira para decorar. Deu aos dois bolsas de estudo para o exterior. Convidou Caribé, que estava desempregado, para ser funcionário da Secretaria de Educação sem nenhuma atividade, só para pintar. Trouxe para cá o Arthur Rubinstein, pianista e músico, trouxe grandes concertos, entre eles a Sinfônica de Boston para o Instituto Normal que era o único teatro de Salvador.

Ele tinha deslumbramento por artistas. Carlos Bastos, Jenner, Mário Cravo, todo este grupo recebeu bolsas de estudos fora do Brasil. A Escola-Parque tem murais muito bonitos de todos eles. Pancetti, também foi contratado pela Secretaria só para pintar.

VOAVA NA ASA DE UMA IDÉIA

A abertura de Anísio Teixeira para tudo o que era humano, a sua curiosidade no sentido de compreender melhor, causavam algumas vezes incidentes pitorescos, como numa de suas viagens com a família. Carlos Teixeira conta, que uma vez em Nova York, passeavam ambos numa rua onde havia casas sofisticadas de prostituição e a atitude curiosa do pai, fez com que uma mulher o puxasse. "Ele ficou assustado com o fato e nós rimos muito". Porque ele era também muito distraído; a ponto de ir de encontro a uma porta de vidro e quebrar vidro e cortar a mão" - lembra Paulo Duarte.

A distração de Anísio Teixeira, aliada à simplicidade que o levavam a dispensar motorista e andar só, não serviram para explicar sua trágica morte num acidente de elevador, pois seus familiares ainda a questionam. Mas ela traduzia sua fixação nas idéias que o tomavam. Como ele próprio dizia: "quando monto na asa de um pensamento, de uma idéia, eu vôo nessa idéia, como se a idéia fosse uma ave, e tudo mais em volta se apaga ".

Incompreendidas por muitos, combatidas por tantos, mas seguidas por aqueles que vêem na educação uma forma de democratização, as idéias de Anísio Teixeira permanecem na sua obra, nos seus livros, impulsionando outras, que um dia, quem sabe? encontrarão espaço para vingar.

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