NOGUEIRA, Rubem. Depoimento sobre Anísio Teixeira. Revista da Fundação Pedro Calmon. Salvador, v.4, n.4, 1999. p.55-59.

Depoimento sobre Anísio Teixeira

Rubem Nogueira

   1. Guardo de Anísio Teixeira simpática lembrança que vem de uma tarde de junho de 1947, quando o conheci pessoalmente e pude apreciar talvez a essência do seu pensamento.
   Estávamos em sessão especial da Assembléia Constituinte, marcada para ouví-lo acerca do Capítulo da Educação e Cultura do Projeto de que resultaria a Constituição baiana de 2 de agosto de 1947.
   Como Secretário de Educação e Saúde do governo Otávio Mangabeira, fora o inspirador desse Capítulo que instituía, segundo denominação sua, o governo autônomo para a educação. Em tal governo paralelo, o exercício da função educativa e do ensino mudava de timoneiro, passando a caber, não mais à Secretaria, sujeita aos vaivéns da política partidária, mas a um conjunto de órgãos de natureza autárquica.
   Primeiro, era o "Conselho Estadual de Educação e Cultura", sob a presidência do Secretário, seu membro nato, e com funções deliberativas e decisórias. Compunham-no seis membros, com mandato por tempo certo, renovável trienalmente pelo terço e - o que o fortalecia efetivamente - com autonomia administrativa e financeira assegurada por um Fundo bem nutrido, o Fundo de Educação.
   Depois, os membros indemissíveis do Conselho, nomeados após aprovação pela Assembléia Legislativa, escolheriam, por maioria absoluta, entre pessoas de "notável saber" (subentende-se: de notável saber no campo da educação e do ensino, evidentemente), o "Diretor do Ensino e Cultura", com mandato de quatro anos, e a competência, a ser definida em lei, de executar e cumprir. Conselho de Educação e Cultura e Diretor de Educação e Ensino como que representavam a chave do sistema ideado, de "autonomia sem ditatorialismo, eficiência sem extremismo".
Todavia, a mobilidade do novo organismo ficava dependente de uma futura lei orgânica. Esta é que lhe fixaria e desenvolveria os princípios, cuja execução tinha de observar os regulamentos e instruções a serem baixados pelo Conselho. A lei orgânica deveria também fixar a percentagem sobre a receita orçamentária destinada a alimentar o "Fundo de Educação", responsável pela liberdade e segurança da ação autônoma do órgão incumbido de realizar a grande reforma.
   A Constituição de 1947 foi, por fim, promulgada, contendo a estrutura educacional delineada por Anísio Teixeira, mas a Assembléia Legislativa, que se seguiu à Constituinte, chegou ao termo da legislatura sem votar a lei orgânica, assim deixando o Secretário de Educação e Saúde sem os instrumentos normativos infraconstitucionais imprescindíveis à instauração do seu "governo da educação".
   Precedido de rara nomeada, veio Anísio Teixeira integrar o governo de Otávio Mangabeira como um dos dois ou três expoentes nacionais na esfera da Educação, para sua segunda experiência administrativa na Bahia, depois de ter criado a Universidade do Distrito Federal e pouco antes trabalhado quae um ano na Organização das Nações Unidas para a educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
   Na sessão de 17 de junho da Assembléia Constituinte, sentou-se entre os deputados, no Plenário, e, sem consultar sequer anotações, discorreu, por cerca de duas horas, especialmente sobre a educação e o ensino e o seu processo na multissecular experiência brasileira.
Para mim foi um regalo ouvi-lo. Comecei, então, a admirá-lo, até porque, seja-me permitido declarar, ao longo da exposição de Anísio Teixeira senti-me identificado com a substância política de suas idéias, sobretudo daquelas referentes ao problema das promessas, dos frutos, das dificuldades e do alto do regime social e político da democracia. A liberdade - ponderou didaticamente - não é ausência de restrições, mas autodireção, disciplina compreendida e consentida; a igualdade não é fácil nivelamento, mas oportunidade igual de conquistar o poder, o saber e o mérito; a fraternidade é mais que tudo isoo, mais que virtude, mais que saber: é sabedoria, é possuir o conceito profundo de nossa identidade de destino e de nossa identidade de origem. Democracia é, assim, um regime de saber e virtude. E saber e virtude não chegam conosco no berço, mas são aquisições lentas e penosas por processos voluntários e organizados.
   Reconfortava ouvi-lo afirmar que a solução do problema da educação é o preço da democracia, enaltecer a educação universal e livre, que faz "homens livres, sábios e virtuosos", não robôs de ideologias totalitárias, a educação, enfim, serviço fundamental da República.
   Fluente, sóbrio de gestos, com simplicidade, o expositor aparentava inteiro domínio do assunto. Denunciou verdades cruéis, como estas: A escola sempre foi, entre nós, um dos deveres mais relegados e menos sérios do Poder Público; a polícia, a cadeia, foram sempre mais importantes do que a escola pública (...). Gasta-se mais com as forças de terra do que com todo o professorado primário, secundário e normal!
   O seu plano de governo autônomo para a educação dava prioridade à escola primária, cujo nível lhe parecia igual ao da escola secundária e da universidade. A escola primária - acentuou - tem de ser a mais importante escola do Brasil, depois a escola média, depois a escola superior. Grande plataforma.
   Lembrei-me então de minha mãe, Professora estadual durante os melhores tempos de sua vida, quase três décadas - dos dezoito anos aos quarenta e cinco anos de idade, apesar dos onze filhos que criou e educou - teve a consciência disso. Ela conferiu à sua escola uma alta dignidade, a começar da instalação, sempre sem ônus para o tesouro público, na maior e melhor sala de sua casa residencial, que por isso mesmo não mais perdeu a denominação de "sala da escola". Também por isso me emocionei ao ouvir a pública exaltação de Anísio Teixeira à escola primária. Escola, segundo ele, destinada a formar homens sábios, livres e virtuosos. Homens assim, penso eu, jamais se conformariam em ser peças da máquina estatal, nem endeusadores da autoridade pública onipotente, ou tomados como um nada, a saber, aquela multidão de um milhão dividida por um milhão, a que se refere o amargo romance de Arthur Koestler, O Zero e o Infinito.
   Dir-se-á que por volta de 1927, como recordou em entrevista de 1952 a Odorico Tavares, Anísio Teixeira sentiu haver superado "certas mortais contradições", reconciliando-se com a filosofia que primeiro o influenciara, a do espírito naturalista e científico de que o afastara o ultramontanismo católico dos jesuítas.
   Anísio Teixeira, no entanto, como ressalta seu amigo Darci Ribeiro, tinha a única coerência admirável num pensador: a da fidelidade na busca da verdade. Não terá sido talvez por outra razão que em artigo de outubro de 1961, em A Tarde, intitulado Uma Grande Figura da Igreja, em louvor a um dos seus grandes amigos, o Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil, Dom Augusto Álvaro da Silva, aproveitou o ensejo para fazer esta vigorosa declaração:

   Vimos de Deus e vamos para Deus, no sentido de que emergimos da humanidade pelo nascimento e voltamos à humanidade pela morte. No intervalo somos portadores de Deus, carregamos Deus, como na bela legenda de São Cristovão. Nosso dever é levá-lo vivo até a outra margem. Ajudamos a manter vivo Deus. Esta carga suprema de viver. Uns, como São Francisco de Assis, realizam a farefa extrema com suave alegria. Outros, como São Cristovão, morrendo sob o peso da carga implacável e infinita. Dom Augusto é antes São Cristovão do que São Francisco de Assis. Mas na casa do Senhor há várias mansões e não sabemos qual dos seus habitantes são maiores.
   Conservo minha formação religiosa. Perdi as crenças formais. Mas continuo a reconhecer nos homens uma missão suprema: a de aumentar na vida a presença de Deus servindo ao espírito e aceitando o encargo de transportá-lo durante o fugaz período da existência, a fim de conduzi-lo, se possível enriquecido, à margem do outro nascimento.

   Para Anísio Teixeira - vê-se bem - a personalidade humana exprimia um valor soberano a quem o Estado nunca deverá sobrepor-se, senão, ao contrário, servir.
   Necessariamente, portanto, tinha de rejeitar, como rejeitou, a filosofia marxista, a luta de classes e a ditadura do proletariado como etapa inevitável da libertação social, segundo reconhece seu meio-irmão Hermes Lima.
   A Assembléia Legislativa de 1947-1951 desgraçadamente não deu a Anísio Teixeira o apoio de que ele precisou para iniciar o governo da educação. Mesmo assim ele pôde legar-nos o Centro Regional Carneiro Ribeiro, sua maior realização naquele período, inspirada associação da escola classe com a escola parque, de cuja excelência usufruíram mais tarde, em Brasília, quatro filhas minhas.

2. No segundo semestre de 1948 tive com o Secretário da Educação e Saúde, pela primeira vez, contato direto e pessoal. Solidário embora com o seu plano de reconstrução global do sistema educativo baiano (e disto poderia dar agora prova irretorquível, não fora a necessidade de observar o tempo que me foi assinado), achava-me então empenhado na aprovação de um projeto de lei criador dos primeiros ginásios estaduais gratuitos do interior da Bahia, sonho de minha juventude.
Cordial, Anísio Teixeira recebeu-me de forma a me deixar à vontade. Estava a par de minha iniciativa parlamentar, mas fazia objeções aos ginásios públicos. Dava preferência aos subvencionados ou mantidos por cooperativas. Longamente conversamos sobre isso. Inexistindo, nas cidades pelo meu projeto selecionadas, estabelecimentos particulares de ensino médio, a idéia de subvenção parecia-me excluída. Por outro lado, o grau de espírito associativo no interior da Bahia era pequeníssimo e, em se tratando de cooperativismo não-econômico, de ordem cultural, quem sabe até inatingível. Eu precisava conquistar ao menos a neutralidade daquele Secretário poderoso, menina-dos-olhos do Governador Otávio Mangabeira, para continuar contando com a maioria interpartidária da Assembléia Legislativa, atingir o termo final de aprovação do meu projeto e vê-lo naquele mesmo ano convertido em lei. Mantivemos um colóquio fértil, do qual saí convicto de que o Dr. Anísio Teixeira não usaria sua influência parlamentar contra a idéia de dotar o interior da Bahia de ginásios gratuitos. E ao cabo vi-me cumulado com uma inesperada cortesia: o admirado titular levantou-se para me acompanhar até a porta de saída de seu gabinete, percurso no qual, tomando-me pelo braço assim me falou: Dr. Rubem, nós precisamos no Brasil é de uma revolução, no homem, de dentro para fora, ao que lhe respondi: Como está nos Evangelhos, não é, Dr. Anísio?
   Por fim, um adendo. Foi com fundamento na Lei nº 130, de dezembro de 1948, de minha iniciativa, que o Dr. Anísio Teixeira, mediante o Decreto nº 14.307, de 4 de março de 1049, promoveu medida do maior alcance social, a saber: a descentralização do ensino secundário nesta Capital, antes concentrado no Ginásio de Bahia, instalando os ginásios de bairros, em Itapagipe, Nazaré e Liberdade.
   Eis o despretensioso e breve depoimento que posso hoje aqui dar sobre Anísio Teixeira, luminosa figura da História contemporânea do Brasil

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