TEIXEIRA, José Antonio. Anísio Teixeira: 100 anos de pensamento vivo. Educação. Rio de Janeiro, v.32, n.101, abr./jul. 2000. p.5-11.

ANÍSIO TEIXEIRA: 100 ANOS DE PENSAMENTO VIVO

A face do homem com
sua família e amigos.
Momentos especiais
na vida de Anísio.

Era uma daquelas lindas manhãs de outono, onde a natureza do Rio de Janeiro se mostra plena e serena em seu viço. Pela orla, um sudoeste fraco e uma temperatura amena ajudavam a contrastar as praias de mar batido com um céu limpo e de fulgurante azul. Só faltava ser domingo. E era. Na agenda do encontro, estava a edição comemorativa de um livro que marcasse a especial lembrança de um homem e de uma obra que superaram o seu tempo. Ao lado, a tentativa de obter a entrevista que ela sempre negou aos veículos impressos. Depois de alguns meses de tímidos e cautelosos diálogos por telefone, fui recebido por Babi, filha de Anísio Teixeira.

A negativa vinha acompanhada de uma justa preocupação. De alguém que sabe a responsabilidade da obra e da imagem que Ihe coube gerir. Um bem, a seu juízo, que é de toda sociedade. Anna Christina Teixeira Monteiro de Barros, carinhosamente chamada de Babi pela família e pelos amigos, é graduada em Física e uma muIher dedicada ao mundo das pesquisas. Sabe o que quer e onde chegar. Aceita uma conversa amiga a fim de ilustrar esta reportagern para a Revista Educação. É concedida uma rara e calculada exceção. Vamos falar do homem Anísio e de passagens na sua vida.

A Associação Brasileira de Educação, ABE, tem sido desde sempre uma outra casa de Anísio Teixeira. No acervo há um zelo todo especial com os documentos, cartas, fotos e obras de Anísio. Afinal, ali nasceu a conspiração e a inspiração para a elaboração, no início dos anos 30, do "Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova". E a coragem e o inconformismo para a edição, mais de um quarto de século depois, de outra peça histórica da educação brasileira: o manifesto "Mais Uma Vez Convocados". Ambos com premissas que superam o seu tempo.

Seguindo o tom de uma troca de idéias e sem a pretensão de se fazer um balanço ou uma revisão histórica, esta matéria pode ser concluída1. É o Anísio Teixeira homem, pai e avô - e seus amigos - que a reportagem quer retratar. Com a simplicidade que é o clima de uma diáfana manhã de outono, num domingo de Ipanema, ajuda a estabelecer. Nosso tema é um amado e ilustre brasileiro nascido em 12 de julho de 1900, na pequena Caetité, no interior da Bahia: Anísio Spínola Teixeira, o maior expoente da educação nacional.

Um homem simples, reservado, terno e romântico

A personalidade simples e reservada de Anísio, não deixava que a vaidade o dominasse. Babi sabe que ele não se sentiria nada à vontade com tanta festa. "As comemorações ao ensejo do centenário de nascimento, certamente fariam meu pai ficar emocionado, mas ao mesmo tempo ele tentaria disfarçar esse sentimento, chamando todos à reflexão sobre os grandes temas educacionais em discussão até hoje; ele era assim", afirma Babi.

Anísio sempre foi discreto e reservado na expressão dos seus sentimentos. Mas nunca escondeu seu lado terno e afetuoso. Também nunca se deu luxo, vaidades ou prazeres materiais. Seu objeto era o estudo, a leitura, a descoberta. E, de certa forma, vivia em torno desse fim.

Anísio Teixeira sempre foi visto, até por seus oponentes intelectuais, como um homem gentil e afável que não cultivava nenhum tipo de espírito belicoso. Nem quando estava aborrecido, se mostrava agressivo ou incontinente em gestos ou palavras. Modesto e simples, certamente nunca se julgou tão importante quanto verdadeiramente foi e continua sendo para a educação brasileira. Condição que hoje é uma certeza na comunidade educacional.

De certa forma, é possível atribuir à formação jesuítica que ele teve em Caetité e Salvador, um certo jeitão introspectivo, que sua postura séria e comedida inspiravam. A filha não tem dúvidas: "ele absorveu essa coisa de fazer sempre o melhor e era inuito exigente consigo mesmo. Só revelava seus sentimentos íntimos quando se no abrigo da família, ao lado dos filhos e dos netos. As lindas cartas dele para a minha mãe, revelam um lado romântico que nem eu conhecia."

O lado romântico do homem Anísio só foi descoberto pela filha anos depois da morte do pai, nas cartas carinhosas e ternas à sua esposa Emilinha. Foram localizadas no arquivo pessoal dele, doado pela famflia ao CPDOC2, da Fundação Getúlio Vargas, durante as pesquisas para a construção na Internet da Biblioteca Virtual Anísio Teixeira: www. prossiga.br/anisioteixeira.

Itaipava: ponto de referência para a família

Abordar o lado terno de Anísio Teixeira no seio da família, traz à tona a casa de campo na bucólica Itaipava, um agradável distrito da cidade de Petrópolis, a cerca de 100 quilômetros do Centro do Rio de Janeiro. A casa, adquirida no início de 1963, vem do tempo que ainda havia a estação da linha férrea do Rio para Juiz de Fora. O trem ainda era concorrente da primeira rodovia interestadual do Brasil: a histórica e charmosa Estrada União Indústria. Itaipava foi ponto de encontro da família. Um local, no entender de Babi, onde ele conseguia produzir intensamente.

Cerca de duas semanas antes do filho José Maurício morrer num acidente, Anísio tinha ido com ele ver a casa. Anísio não dirigia e foi o filho quem o levou e de tão encantado que ficou, estimulou decididamente o pai. Foi depois daquele terrível momento de dor que Anísio fez a compra. Tanto para atender o ânimo do filho que se foi, quanto para oferecer à esposa um recanto de repouso e recuperação. A filha recorda: "nós iamos em dezembro, perto do Natal e só em março, quando começavam as aulas, voltávamos para o Rio. "Era a época em que começavam a chegar os netos e, desde então, os filhos e netos passaram a subir no verão e ficar em Itaipava quase três meses seguidos.

Na serra, a leitura e a produção

O convívio de Anísio Teixeira com os netos, além do encantamento e da paixão, era também uma espécie de continuação permanente para os seus estudos. Ele ficava horas a fio buscando observar sob a ética das crianças, os pontos de curiosidade e interesse delas. A sua relação com as crianças era especialmente interessante.

Babi diz que o irmão Carlos Antônio gosta de contar: "sempre que ele via uma criança seguir para um canto da casa, ou um lugar específico do terreno, ia atrás para observar o que estava fazendo; se a criança ia olhar uma formiga, uma ave ou mesmo um brinquedo, ia atrás ver o que despertava aquele interesse". Era algo assim como se ele buscasse, na curiosidade da criança, associar o interesse delas com a pesquisa e a descoberta.

A vida dele em Itaipava girava em torno da casa, dos livros, da família e dos netos. Ele chegou a conviver com os cinco primeiros netos homens e as duas primeiras netas. Dos dez netos, ele não conheceu apenas os três mais novos. Uma das importantes características pessoais de Anísio era a capacidade de concentração. Quando estava absorvido por um trabalho, era capaz de produzir até mesmo com a bagunça, o burburinho e o movimento das crianças correndo à sua volta.

Sob inspiração da serenidade da serra, ele deixava fluir horas sem fim com a leitura, reflexão e produção acadêmica. Para ele, sem sombra de dúvida, a Biblioteca era o lugar mais importante do sítio. A filha confirma esta particular preferência: "meu pai praticamente não saia de casa; se alguém perguntasse se ele conhecia Itaipava, ele certamente diria que não; adorava ficar na sua biblioteca particular, passando dia e noite no meio de suas estantes de livros." Entre livros e manuscritos, ali morava uma parcela muito importante da vida de Anísio Teixeira. Atualmente, é a filha Marta e seu marido, que reúnem a família em Itaipava nas datas importantes, como Natal, Páscoa, aniversários ou dia das mães. A casa continua até hoje como ponto de referência para toda a família.

Como a educação desperta num homem de ação

O chamado da educação veio pelas mãos do governador baiano [1924-1928] Góes Calmon. E de forma inesperada. O pai de Anísio Teixeira foi um influente político no interior do estado e teve papel decisivo para a eleição do governador. Queria que o filho ocupasse algum alto cargo na administração pública. Quando Anísio volta para a Bahia, com apenas 24 anos e formado em Direito na Capital federal, seu pensamento era ingressar na vida religiosa. O pai provoca um encontro do filho com o governador. Calmon se entusiasma tanto com aquele jovem, que resolve convidá-lo imediatamente para ser o Inspetor Geral do Ensino da Bahia, equivalente na época ao atual cargo de Secretário de Educação.

Babi afirma: "o meu pai diz que não, que a formação dele era jurídica e o governador manda ele estudar, dizendo: "pois pegue uns livros aí e vá estudar educação". A família diz que meu pai levou tão a sério, que se enterrou por li, preso aos estudos sete meses seguidos". Pouco depois, vai para os Estados Unidos [1928] fazer o mestrado no Teacher's College da Columbia University em Nova lorque. A partir daí, motivado pelo filósofo norte-americano John Dewey, de quem foi aluno, busca construir o pensamento de um modelo educacional para o Brasil, que significasse diminução das diferenças sociais e uma relação democrática entre educação e sociedade.

O grande amigo, o comércio e o desprendimento

A relação com Monteiro Lobato vem desse tempo. Eles se conheceram em Nova Iorque, quando Anísio estava fazendo seu mestrado em Colúmbia. A filha Babi destaca: "as cartas entre os dois são lindas; em particular porque revelam aquele lado terno e afetuoso do meu pai; eles se tratam com "meu querido Lobato", "seu, seu ... íssimo" ou então "meu querido Anísio". Acho muito interessante isso, a maneira carinhosa como eles se correspondiam.

Um episódio, quando Anísio volta ao Brasil, mostra o especial respeito e carinho mútuo. É uma já famosa carta de Lobato para Fernando de Azevedo, apresentando Anísio:

"Ao receberes esta, pára! Bota para fora qualquer senador que te esteja aporrinhando. Solta o pessoal da sala e atende o apresentado, pois ele é o nosso grande Anísio Teixeira, a inteligência mais brilhante e o maior coração que encontrei nestes últimos anos de minha vida ... estou escrevendo a galope, a bordo do navio que vai levando uma grande coisa para o Brasil: o Anísio lapidado pela América". 3 Foi, sem dúvida, uma forte e gratificante amizade na primeira meia vida do grande educador brasileiro.

De 1937 a 1945 Anísio vai para o sertão da Bahia, dedica-se a traduções de livros estrangeiros e trabalha de forma bem sucedida com o comércio e a exportação de minério. Surge então o convite de Julien Huxley, Primeiro Secretário Executivo da UNESC04, para que ele assuma o cargo de Conselheiro de Ensino Superior naquele organismo internacional. Ele condiciona sua permanência a um período experimental, deixa os negócios e assume as funções em Londres, retornando no ano seguinte.

O lado materialmente desprendido do pai, também é confirmada por Babi. Ele nunca se seduziu pelo mundo dos negócios, mas teve competência quando precisou. Naqueles períodos em que esteve afastado da causa pública pela educação, durante o Estado Novo, foi um minerador de manganês respeitado e comerciante de automóveis. Ela acha inusitado este lado do pai e exclama com orgulho: "...sabe que foi bem no comércio, que teve sucesso..."

Desta época, vem outro episódio típico da renúncia em nome da educação. Os donos das principais minas de manganês no Amapá eram estrangeiros. Durante os dez anos em que Anísio trabalhou com minas de cal e manganês, granjeou confiança e respeito entre eles. Num dado momento, os donos das minas resolveram confiar a concessão diretamente para ele. Não era ao Brasil, nem a uma entidade governamental, era a ele, pessoa física. Acontece quando Anísio é convidado pelo governador Otávio Mangabeira para ser Secretário de Educação e Saúde da Bahia. A Educação fala mais forte. Ele larga tudo para assumir a função.

Academia: reconhecimento e honra incompletos

A candidatura de Anísio Teixeira à Academia Brasileira de Letras foi formalizada em janeiro de 1971, pouco antes de sua morte, em março. Sua personalidade discreta e reservada fez com que ele recusasse várias vezes o pedido de acadêmicos amigos para se candidatar. Até que, com a retirada da candidatura do fraterno amigo Paulo Carneiro, foi convencido e assumiu a candidatura à cadeira de Clementino Fraga. A decisão aconteceu em Itaipava. Certo dia chegaram os que mais insistiam: Afrânio Coutinho, José Honório Rodrigues e Hermes Lima.

Depois de uma conversa longa e leve na biblioteca, Babi recorda que foi levar café para o grupo e o pai disse: minha filha, você vai ficar chateada comigo, eu acabei de aceitar o convite para a Academia. Anísio sabia que a fiIha era relutante, pois julgava que o temperamento do pai era de certa forma avesso às formalidades. Hoje Babi vê de outra forma: "foi uma maneira de meu pai ser reconhecido, depois de tão injustiçado e combatido."

Ele aceita e em março, morre quando vai fazer uma visita a Aurélio Buarque de Holanda, em função da Academia. Paulo Carneiro retomou a candidatura e foi eleito. Anísio não tinha que ser acadêmico. As circunstâncias da morte são contraditórias e até hoje há uma série de fatos não explicados. Ninguém tem e possivelmente nunca terá a certeza de que foi um acidente. Por outro lado, não há como provar que possa ter sido provocada pelas forças da repressão.

O corpo inerte do mais importante educador brasileiro foi encontrado no poço de elevador do prédio onde morava. Segundo certas fontes, o elevador teria apresentado antes um defeito pelo qual a porta abria, sem a cabine estar no andar. O corpo foi retirado pela polícia muito depois e nunca houve perícia. Era a pior época da ditadura e apenas vinte dias antes, tinha sido preso e morto Rubens Paiva.

Hoje, há a retomada de muitos processos mal explicados, mas no caso de Anísio, a família não quer reabrir a dor e trabaIhar nessa direção. De certa forma, todos preferem deixar a questão para que algum dia, alguém se ocupe em enfrentar a face obscura da tragédia e consiga descobrir algo concreto. Aparentemente ninguém aceitou por completo a versão de acidente, mas para a familia, lembra Babi, o mais importante foi a vida dele. "Nossa preocupação é divulgar o pensamento dele, a obra, a memória histórica e tudo mais de bonito que ele produziu. E acrescenta: eu prefiro trabalhar com a vida de meu pai."

Centenário: tempo de celebração e redescoberta

A presença de Anísio vem da segunda metade da déada de vinte e sua projeção começa quando Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal, o chama para o Rio de Janeiro. Após o Estado Novo, atende a convocação de Otávio Mangabeira na Bahia, já com certa projeção nacional e internacional. Seu ingresso nos quadros do Governo Federal deixou marcas indeléveis para o INEP5, para a Universidade do Brasil, raiz da UFRJ, para o Conselho Federal de Educação e no projeto pedagógico da Universidade de Brasília.

O centenário despertou a memória nacional depois de anos de esquecimento e a pressão de duas ditaduras. A do Estado Novo, da qual ele volta com nova força e vai para a esfera federal. No INEP ele foi mantido por sete ou oito ministros. Era ele quem coordenava a política do Ministério. Foi lembrado para ministro várias vezes, mas nunca buscou nenhum tipo de apoio político de base partidária. Acreditava que funções ténicas cabiam aos especialistas e não às forças políticas. Depois, vem o regime de 64, que o afasta para sempre. Seu mandato no primeiro colegiado do antigo Conselho Federal de Educação foi concluído, mas Anísio não é reconduzido. Foi a sua última função na vida pública.

Na esteira das comemorações do centenário, a memória nacional foi provocada à ativação. E de forma quase unânime em todo país: congressos, seminários, fóruns e um sem número de eventos e de teses acadêmicas de pós-graduação. Babi fala com vigor e confiança. "O centenário está servindo, no caso dele, para reacender a memória nacional. Os inúmeros trabalhos de jovens nos cursos de mestrado e doutorado, representam a retomada do pensamento dele e quem sabe até da conduta. Não basta só elogiá-lo. O que ele ia querer era provocar a todos para um novo debate e uma renovada reflexão sobre a educação." Estimular os jovens à pesquisa sobre o educador, reeditar suas obras, a Fundação Anísio Teixeira, a Casa Anísio Teixeira, que abriga uma biblioteca pública, e dar vida ao Centro Cultural inaugurado em Caetité, são os principais objetivos da família.

A atualidade e a presença viva de Anísio Teixeira

A oportunidade do centenário configura o momento de retomada do processo de discussão das idéias de Anísio Teixeira. Ele se caracterizou como um homem de diálogo e do debate de base intelectual. Talvez, se fosse vivo, julgasse estar recebendo homenagens demais, porém a divulgação entre os jovens e aqueles que não conheceram seu pensamento, seria festejada. Já são duas ou três as gerações que não conheceram Anísio Teixeira e seu trabalho.

Para toda a família, o principal benefício das comemorações do centenário, é a colocação do nome do educador a serviço dos jovens, que não permitem que se apaguem importantes questões ainda abertas no cenário educacional brasileiro.

A filha Babi reitera: "o que todo mundo diz e você mesmo disse é que os educadores têm que discutir muito as questões que ele levantou e ainda não estão resolvidas. Seja a questão universitária, a da formação do professor, a valorização do magistério ou a questão da escola pública, que ainda não foi superada.

O importante disso tudo é aprofundar os estudos, fazer uma releitura dos trabalhos dele e se debruçar sobre esses textos para retomar a discussão de tantas questões.

Isso é o mais importante."

Notas:

(*) José Antonio Teixeira é professor e jornalista; ocupa atulmente a 1ª Vice-Presidência da A.B.E. e-mail: jatxrio@ibm.net

1. Com a colaboração da Dra. Ana Maria de Castro

2. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

3.prossiga.br/anisioteixeira/correspondencia.html

4.United Nations Educacional & Cultural Organization

5. Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

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