MADUREIRA DE PINHO, Demosthenes. Anísio Teixeira, um homem livre. Arte & Educação. Rio de Janeiro, 1971. p.16.

ANÍSIO TEIXEIRA, um homem livre

DEMOSTHENES MADUREIRA DE PINHO

As circunstâncias que rodeiam o desaparecimento trágico e imprevisto de Anísio Teixeira são bem o espelho do mar de incompreensão que envolveu e cercou a vida do grande brasileiro, dos raros pensadores com que contou êste país.

É que o perfil intelectual e moral de Anísio Teixeira se assemelha a essas ilhas rochosas e inabaláveis, perdidas no oceano da incompreensão e da ignorância e sôbre as quais batem sempre ondas de violência, de desentendimento e de sectarismo.

Anísio, como todos sabem, foi um homem de formação religiosa, disposto a viver para a sua fé, enfrentando impávido e indiferente a incompreensão e a incredulidade.

Não perdeu pròpriamente a fé. Libertou-se, apenas, de dogmas, de formas exteriores, de ritos e de liturgia, conservando na essência de sua personalidade a capacidade de crer e de confiar em idéias, em princípios, em pessoas.

Certa vez, disse-lhe eu, conversando sôbre o seu propalado ateísmo, que êle estaria, no fundo, pregando uma peça a todos quantos convencesse da inexistência de Deus e da falácia das religiões. Porque no íntimo, tinha eu a certeza de que não haveria divindade alguma, qualquer que fôsse ela, capaz de condenar um homem puro, que teve a coragem de crer e a bravura de confessar a sua descrença com a mesma e invariável sinceridade de um extremo ao outro.

Raros terão sido os homens cuja vida tenha seguido uma tamanha coerência, em linha tão imperturbável de pensamento, como Anísio Teixeira. Não que êle tivesse permanecido sempre com as mesmas convicções, mas porque, nas que teve e sustentou, empenhou tal grau de sinceridade, de franqueza, de coragem mora, de desassombro, de tolerância e compreensão, que faziam do seu gênio, um exemplo a imitar, espécie de farol que orienta e dirige os navegantes no mar alto do pensamento, permitindo-lhes fazer o ponto de navegação e retificar as suas rotas freqüentemente desviadas.

As circunstâncias terríveis do seu desaparecimento inesperado criaram e desenvolveram uma série de hipóteses, as mais diversas e contraditórias, com relação à sua morte. Quase tôdas monstruosas e repugnantes. Isso foi apenas uma confirmação de um velho provérbio de nossa terra comum, em que se diz que a morte tem a côr da vida.

Anísio Teixeira viveu cercado pela incompreensão dos seus contemporâneos que o acusaram de idéias opostas e contraditórias, por não entenderem a possibilidade, cada vez menos compreensível, de um homem ser livre e independente, sem nenhuma subordinação de pensamento a seitas ou dogmas de qualquer espécie.

Assim, teria que ser, por destino, a sua morte. Discutida, romanceada, destorcida, como em vida foi o seu pensamento, entretanto, claro, lúcido e transparente para os que tiveram a ventura de privar com êle e de penetrar naquele mundo encantado que era o seu gênio, o seu talento e a extraordinária agudeza do seu espírito.

Anísio Teixeira guardou de sua formação digamos sacerdotal e missionária, a bondade, a simplicidade franciscana de uma vida de asceta, a humildade cristã de um homem que tudo procurou compreender e a convicção inabalável em idéias e princípios a que serviu com firmeza, sem arrogância, com fidelidade incorrupta e com a modéstia de quem se sente a serviço da verdade.

Poucas terão sido as pessoas que realizaram no curso da vida aquêle pensamento de Goethe: "Pensar é fácil, agir é difícil, mas agir segundo o seu pensamento é o que há de mais difícil no mundo". Anísio agiu sempre segundo o seu próprio pensamento.

Na política, Anísio Teixeira não poderia prosperar porque nela a mediocridade leva sempre a melhor sôbre o gênio porque àquela se dobra ao acontecimento, enquanto êsse pretende criá-lo. Além do mais, a completa e inteira independência intelectual de Anísio Teixeira o fazia suspeito a tôdas as facções: os extremistas o achavam muito liberal e os liberais muito extremista.

Fui seu amigo durante mais de 40 anos. Os nossos caminhos nem sempre foram os mesmos, às vêzes percorreram até trilhas que pareciam opostas.

De minha parte, porém, nunca deixei de considerá-lo um ponto de referência, uma espécie de pedra de toque em que se afere o verdadeiro quilate do metal precioso do pensamento e da idéia.

O seu ateísmo me pareceu sempre, como disse, ser uma libertação das fórmulas exteriores e visíveis da fé, mas não a perda de uma consciência íntima e da existência de um ser supremo que rege os movimentos do mundo e o destino dos homens.

Acredito mesmo que em suas horas de meditação e silêncio lhe tenha ocorrido, como ao grande Renan, sentir no fundo do coração a cidade submersa de DIs que, segundo a lenda bretã, nos dias de tempestade mostra, no cavalo das ondas, a ponta das flechas de suas catedrais e nos dias de calmaria ouve-se subir, do abismo o som dos campanários, modulando o hino do dia, chamando obstinadamente aos ofícios sagrados os fiéis que deixaram de escutá-lo.

Ao aproximar-se da velhice, sobretudo, confessou Ernest Renan o prazer que experimentava em recolher os ruídos longínquos dessa Atlantida desaparecida.

Assim teria sido com Anísio Teixeira. Nêle morre um justo e desaparece um homem livre.

(Transcrito do "Jornal do Brasil", de 17-3-71).

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