FREITAS, Marcos Cezar de. As metáforas de Anísio Teixeira. Veredas. Rio de Janeiro, v.5, n.56, ago. 2000. p.26-28.
As metáforas de Anísio Teixeira
Marcos Cezar de Freitas
Para descrever o século 20, é necessário compor uma narrativa na qual a tragédia ocupe lugar de destaque. Olhando mais de perto, porém, será possível perceber que, sem a evocação da esperança ou pelo menos da expectativa de uma nova ordem planetária, não terá ocorrido uma remomeração fidedigna do século que está acabando.
Anísio Teixeira surgiu juntamente com o século 20. Tornou-se, no transcorrer das sete décadas que viveu, uma personagem histórica singular, uma expressão brasileira do encanto que seduziu muitos intelectuais à tarefa de reorganizar o mundo e fazê-lo transitar da barbárie para a civilização, do obscurantismo para a luminosidade.
Anísio habitualmente é relacionado ao movimento da Escola Nova, à influência do educador norte-americano John Dewey, à defesa da escola pública, à criação de instituições de pesquisa e a projetos ousados abreviados pelas conjunturas políticas sempre desfavoráveis. Todavia, ainda que corretas, essas correlações não apanham "todo o" Anísio.
Estamos diante de uma personagem tão complexa quanto o século que o recebeu. Também estamos diante de uma personagem perplexa. Anísio não aceitava passivamente as "permanências", as "sobrevivências" do passado num momento no qual julgava estar construindo o futuro. Por que restava ainda um país "medieval" à sombra de um país que queria ser industrializado e cosmopolita? Por que era possível retratar o brasileiro ora como se um Manuel Bandeira fosse a expressão de sua alma, ora como se Riobaldo Tatarana fosse a síntese de sua personalidade? Por que a permanente ambigüidade, a contínua dualidade?
Olhando para fora do Brasil, considerava que desde a Grécia antiga a razão vinha caminhando em passo cada vez mais acelerado. Embora essa trajetória da razão tivesse sido "desacelerada" na Idade Média, uma nova aceleração do tempo teria sido reiniciada com o iluminismo. Esse "tempo solto", rápido e realizador, seria o tempo das instituições universais: a escola, a democracia e as várias faces da esfera pública. Seria também o tempo da ciência, da cultura laica e dos compromissos públicos firmados nas questões de Estado. A soma de todos esses itens corresponde ao entendimento anisiano sobre o que é a razão.
Olhando para dentro do Brasil, incomodava-se com a obra que a colonização portuguesa realizou no país. Em relação às origens da identidade do país, a cultura brasileira poderia ser metaforicamente comparada a um largo rio. Imaginemos um leito caudaloso que, ao mesmo tempo, une e separa duas margens. Numa margem, contemplando as peculiaridades da colonização portuguesa, podemos encontrar intelectuais como Francisco Adolfo Varnhagen e Gilberto Freyre. Em tal "lugar interpretativo" repousa uma compreensão da sociedade, diante da qual um certo elogio do passado enaltece a vitória do homem sobre o meio.
Na outra margem, na mesma "via historiográfica", podemos encontrar Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Anísio Teixeira. Nessa margem, no encontro imaginário entre tais tradições interpretativas, podemos observar uma forte rejeição às instituições legadas por esse passado.
Anísio reproduziu no âmbito do debate educacional a leitura buarquiana com que rejeitou tanto a transplantação de idéias quanto a disseminação de uma cultura privatista, através da qual apagava-se a fronteira entre os domínios públicos e os privados. Há um extraordinário encontro de imagens nessa margem. Tais imagens retratam um Brasil em conflito com as próprias raízes.
Em nossas raízes estariam depositadas tendências imobilistas. O homem forjado nesse processo de colonização estaria adaptado a um ritmo temporal imutável, permanente, no qual confundia sua família com o Estado. A nação terminava sempre logo ali, na divisa de seu quintal.
O predomínio da cultura jesuítica na estruturação da educação escolar brasileira era visto como sinal de um movimento que, permanentemente, restaurava o passado e mantinha uma Idade Média imaginária a oferecer-se como parâmetro de conduta.
Quando escrevia metáforas sobre a aceleração do tempo descrevia a história do país sendo movimentada no sentido de desvencilhar-se de suas fundações: a família patriarcal, a escravidão e o latifúndio, responsáveis pela imobilidade, pela limitação de oportunidades e pela supremacia da ordem privada. A leitura do livro Educação no Brasil oferecerá ao leitor exemplos à farta desse raciocínio anisiano/buarquiano que, de certa forma, reverberou também em Florestan Fernandes.
De 30 a 60: um intelectual múltiplo
Esse passado com feição medieval, no entender do educador baiano, permanecia sob múltiplas formas ainda no Brasil do século 20. A Revolução de 1930, interrompida pelo Estado Novo, não completara o plano de reconstrução nacional a que se propusera. De certa forma, considerava que o país ainda se deixava refletir no espelho de Euclides da Cunha, ou seja, com um sertão de costas para o litoral, com a cidade apartada do mundo rural e com uma mentalidade ruralista a bloquear a disseminação da ciência, da formação individual e da democracia.
O múltiplo Anísio pode ser localizado, na memória da intelectualidade brasileira, também ao lado de muitos antropólogos e sociólogos que, nos anos 50 e 60, receberam dele a incumbência de realizar um mapa cultural do Brasil e conhecer, mediante o estudo de caso, a forma social das permanências de mentalidades "não modernas". Nesse outro "álbum de família", o educador pode ser visto entre Emílio Willens, Charles Wagley, Oracy Nogueira, Luiz de Aguiar Costa Pinto e muitos outros.
Tratar de Anísio Teixeira significa deixar-se levar pelo ritmo das metáforas, que ele manuseava tão bem. Acelerar o tempo, ultrapassar as próprias raízes, espalhar uma cultura pública, refazer a civilizaçào pela escola primária, pública e laica são algumas expressões de um homem que, como dissemos no início, foi uma das mais impressionantes personagens a equilibrar-se no fio frágil que separou a tragédia da esperança nesse século.
De certa forma, todo o século 20 foi projetado nas páginas de Thomas Mann, quando retratou em A montanha mágica e embate entre um mundo que acabava e outro que se anunciava. Pelas palavras de Setembrini foi expressa a confiança num futuro iluminado pela razão e pela liberdade, acompanhado pelo poder emancipador da ciência e da cultura. Pelas palavras do jesuíta Nafta, por sua vez, mostrou-se o apego ao passado, o temor violento em relação às promessas da liberdade, consideradas vãs e inconvenientes. O duelo travado entre ambos no romance pode ser considerado uma prévia do século que chegava.
Enquanto duelavam futuro e passado, liberdade e autoridade, ciência e fé nas páginas de Thomas Mann, no Brasil, na Bahia, Anísio Teixeira era um adolescente. De certa forma, em escala microscópica, ele encarnava o embate entre a fé e a ciência. Quis ser jesuíta antes de descobrir a "missão" de educador.
Contudo, se a trajetória de Anísio por vezes sugere a fabulação de A montanha mágica, no mais das vezes parece uma aventura partilhada. Ora com os educadores profissionais, ora com historiadores, ora com antropólogos. Na sua órbita gravitaram expressivas opiniões, que compreenderam o grau de comprometimento público necessário para que algumas "raízes do Brasil" fossem superadas.
Uma ordem pública repleta da escola pública como compromisso e questão de Estado. Anísio era um iluminista. Pensando bem, não poderia ser uma personagem de A montanha mágica. Apesar de tudo, não consideraria apropriado permitir que a esperança e a tragédia se enfrentassem em duelo mortal. Advogaria a liberdade e a construção de um novo mundo na escola pública. O tempo, nessas condições colocaria o passado no seu devido lugar.
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