RIBEIRO, Darcy. Dr. Anísio. Carta: falas, reflexões, memórias. Brasília, n.14, 1995. p.33-36.

DR. ANÍSIO
Darcy Ribeiro

Convivi com alguns homens admiráveis que já se foram. Entre eles meu herói, Rondon; meu estadista, Salvador Allende; meu santo, Frei Mateus Rocha; meu sábio, Hermes Lima; meu gênio, Glauber Rocha; meu filósofo da educação, Anísio Teixeira.

Anísio foi a inteligência mais brilhante que conheci. Inteligente e questionador, por isso filósofo. Era também um erudito, até demais. Só conseguiu entender meu interesse pelos índios, quando fiz comparar alguns deles com os atenienses e espartanos.

Tamanho e tão frondoso era o saber de Anísio, que ele, muitas vezes, parava, incapaz de optar entre as linhas de ação que se abriam à sua inteligência. Nessas ocasiões, eu, em minha afoiteza, optava por ele, que, malvado, dizia: - "Darcy tem a coragem de sua inciência".

Anísio foi essencialmente um educador. Quero dizer, um pensador e gestor das formas institucionais de transmissão da cultura, com plena capacidade de avaliar a extraordinária importância da educação escolar para integrar o Brasil na civilização letrada. Para ele, a escola pública de ensino comum é a maior das criações humanas e também a máquina com que se conta para produzir democracia. É, ainda, o mais significativo instrumento de ustiça social para corrigir as desigualdades provenientes da posição e da riqueza. Para funcionar eficazmente, porém, deve ser uma escola de tempo integral para os professores e para os alunos, como meus CIEPS.

Ainda habitado pelo saber jesuítico, em que fora conformado, Anísio foi Secretário de Instrução Pública da Bahia. Refêz-se a partir de uma viagem iluminada pela Europa e principalmente depois de uns anos estudando educação na Universidade de Columbia, onde se fêz deweyísta, apaixonado pela tradição democrática americana e por suas escolas comunitárias.

Foi já esse novo Anísio que revolucionou o ensino público do Rio de janeiro e criou nossa primeira universidade digna desse nome, a Universidade do Distrito Federal. Isso ocorreu naqueles anos de clarividência que. o Brasil viveu no começo da década de 30, dinamizada pelo sopro renovador da Revolução. Todo o Brasil se repensava e modernizava, inclusive a educação, chamada a dinamizar-se e a refazer-se pela veemência do Manifesto dos Pioneiros da Educação.

Sobrevem, então, a onda fascista que avassala o mundo. Reagindo contra ela, os comunistas se lançam, aqui, na loucura da Intentona de 1935, comprometendo seus aliados democráticos da Aliança Nacional Libertadora. Revira a situação política e cultural e recai a repressão mais injusta e severa sobre o prefeito Pedro Ernesto, e sobre os mais eminentes intelectuais brasileiros; Anísio, Castro Rebelo, Hermes Lima, Leonidas Rezende e muitos outros, perseguidos e presos pela polícia de Filinto Müller.

Ascende, com a onda fascista, uma liderança cultural direitista, encabeçado por Chico Campos, Gustavo Capanema, Santiago Dantas, que assume o poder na área da educação. São os anos trágicos do Estado Novo, da intolerância, da tortura e dos banimentos. Sob a regência deles é abandonado o plano de Anísio para o ensino primário que previa a construção de setenta e quatro grandes escolas. Deles ficaram até hoje, como testemunho do que teria sido a educação brasileira, algumas de suas escolas experimentais: Argentina, Estados Unidos, México e Guatemala. Foram desarticulados, também, a Biblioteca Central de Educação, o Instituto de Pesquisas e o Instituto de Educação, que Anísio implantou para formar o magistério primário em nível superior.

A Universidade do Distrito Federal, filha querida de Anísio, foi fechada e banidos seus professores, os mais brilhantes que o Brasil uma vez reunira: Afrânio Peixoto, Gilberto Freyre, Hermes Lima, Roquette Pinto, Mário de Andrade, Vilia-Lobos e muitos outros. Anísio não pôde trazer foi a equipe de professores franceses da mais alta qualificação, que ele contratara e que já estavam no cais, quando ocorreu o desastre.

Anísio, proscrito, se recolhe à vida privada e assim sobrevive até que, com a vitória das democracias na guerra, é chamado para um cargo na UNESCO, recém-criada. Vem depois para o Brasil dirigir a CAPES, com o encargo de formar no estrangeiro novas elites científicas e culturais. Assume, também, a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, devotado à renovação do ensino fundamental.

No Rio de Janeiro, Anísio volta a ser nosso principal líder intelectual. Foi, então, que me aproximei dele, no movimento de luta em defesa da escola pública, nos debates da Lei de Diretrizes e Bases, em que Dom Helder e Lacerda queriam entregar recursos públicos às escolas privadas. Passei a colaborar diretamente com Anísio, ajudando no projeto e na criação do Centro Nacional e da rede de Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, implantados no Rio, São Paulo, Minas, Pernambuco, Bahia, Paraná e Rio Grande. O projeto ambicioso de Anísio era, com esses Centros, prover recursos para forçar as universidades brasileiras a assumir responsabilidades no campo educacional, na mesma proporção em que o faziam com respeito a medicina e a engenharia.

Ocorre, então, outro episódio de perseguição a Anísio. Os bispos exigem do Presidente da República, pela voz de Dom Helder, seu afastamento do Ministério da Educação, porque achavam insuportável seu pendor democrático esquerdista. Anísio, indignado, deixa o INEP e vai para casa, argumentando, em discussão comigo e com Almir de Castro, que o cargo pertencia ao Ministro que, para ele, podia livremente nomear e demitir. Discordando, fui para a CAPES, onde ditei, para Fernando Tude de Souza, um artigo polêmico publicado no Correio da Manhã, com a assinatura de Anísio, sob o título "Sou Contra X Sou A Favor". Era uma espécie de decálogo, que depois de relatar brevemente a deposição de Anísio, contrapunha as principais concepções que se debatiam na área da educação. A repercussão foi enorme, na forma de dezenas de editoriais dos grandes jornais de todo o Brasil, exigindo o retorno de Anísio à direção do INEP. Foi o que ocorreu. O Ministro voltou atrás, porque o Presidente da República era Juscelino Kubitschek.

Seguiram-se anos de trabalho alegre e fecundo, centrado principalmente no planejamento do sistema educacional que se iria implantar na nova capital - Escolas-parque e Escolas-classe. Inclusive e principalmente a criação da Universidade de Brasília, cuja concepção interessou vivamente a toda a inteligência brasileira, especialmente à comunidade científica. Anísio e eu discutíamos sem parar, quase sempre concordando, mas às vezes discordávamos. Isto foi o que ocorreu, por exemplo, quando Anísio se fixou na idéia de que a UnB só devia ter cursos de pós-graduação. Afinal, concordou comigo e com nosso grupo acadêmico, que era indispensável um corpo estudantil de base, sobre o qual os sábios se exercessem, fecundamente, cultivando os mais talentosos para que eles próprios se multiplicassem. Mas a preocupação de Anísio com a pós-graduação frutificou e foi na UnB, que se institucionalizou o 4o nível, como procedimento orgânico da universidade brasileira. implantamos, afinal, a nossa querida Universidade, com urgência urgentíssima, porque tínhamos medo de que a lei que mandava criá-la não pegasse. Pegou. Os primeiros prédios, onde funciona hoje a Faculdade de Educação, foram construidos com verba do INEP, transferido do diretor, que era Anísio, para mim, que era vice-diretor.

A UnB floresceu, capacitando-se rapidamente para dominar o saber humano e colocá-lo a serviço do diagnóstico das causas de nosso atraso e da busca das melhores soluções para o desenvolvimento autônomo do Brasil. Anísio e eu a conduzíamos, felizes e orgulhosos, com a ajuda de Frei Mateus. Eu, às vezes, de longe, porque fora chamado ao cargo de Ministro da Educação, e depois, de Chefe da Casa Civil da Presidência.

Nestes trabalhos estávamos, Anísio exercendo a reitoria, quando estoura o golpe militar de 1964, que se assanha, furioso, contra a Universidade nascente e destrói a rede nacional de centros educacionais do INEP. Anísio foi, mais uma vez, proscrito; eu, exilado. O corpo de sábios que leváramos para Brasília, como professores e pesquisadores, acossado pela brutalidade da ditadura, se demite, numa diáspora dolorosa. Morria outro sonho anisiano de universidade.

Eu, lá longe, jurava: "havemos de amanhecer"...

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