NUNES, Clarice. Cultura escolar, modernidade pedagógica e política educacional no espaço urbano carioca. In: HERSCHMANN, Micael; KROPF, Simone e NUNES, Clarice. Missionários do progresso: médicos, engenheiros e educadores no RJ-1870/1937. 10ª ed. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996. p. 155-224.

CULTURA ESCOLAR, MODERNIDADE
PEDAGÓGICA E POLÍTICA EDUCACIONAL
NO ESPAÇO URBANO CARIOCA

Clarice Nunes

Introdução

Nosso objetivo neste texto é ler a escola enquanto espaço físico, social e cultural. Para tanto, trabalhamos com uma variedade de registros que a apresentam não somente como necessidade histórica, mas também como capacidade de desejo, memória e invenção. Ao apresentá-la como objeto de condensação simbólica estaremos, ao mesmo tempo, construindo uma possibilidade de leitura da cidade por um ângulo definido que nos levou a operar cortes seletivos no tratamento do espaço urbano. Salientamos que ler a escola lendo a cidade levou-nos também a retecer o trabalho pedagógico que vai forjando seus educadores, através de uma visão menos estereotipada das relações que estes estabeleceram entre sua atuação social e sua produção intelectual.

Nosso cenário é a capital política do país entre os anos de 1910 e 1935. Mais do que qualquer outra cidade, o Rio de Janeiro acumulou forças contraditórias da ordem e da desordem que permaneceram como traços culturais do seu cotidiano desafiando os governos, os partidos políticos e as instituições. Esta cultura citadina tem uma marca que se imprime nas suas instituições escolares. Ao examiná-la procuramos afastar-nos do resultado pernicioso que a ausência de uma tradição no tratamento das cidades brasileiras como signos, no âmbito da literatura pedagógica, tem ocasionado. Que resultado é esse? A atitude do pesquisador que entremeia o senso comum sobre a cultura urbana com o pensamento educacional aí gestado.

A atitude recorrente, no âmbito da historiografia educacional, de ignorar a impregnação da cultura urbana no espaço escolar tem produzido, a nível explicativo, o espelhamento do modelo paulista de cidade sobre outras cidades brasileiras, o que acarreta o estreitamento da nossa compreensão sobre o movimento contraditório de gestação do moderno, a homogeneização violenta dos espaços sociais e culturais e o esmagamento de tempos e experiências históricas diferentes num país tão plural. Ao eleger a estratégia do desvio, que desloca constantemente o nosso olhar da escola para a cidade, trazemos à tona o Rio de Janeiro como o contraponto provocante de São Paulo, na medida em que os estudos sobre a cidade carioca mostram a prevalência de valores e práticas que não tem na lógica do mercado seu princípio organizador.

O estudo da escola pública do Rio no período citado privilegia um momento em que os educadores a tomaram como instrumento de intervenção. Pretendiam resolver seus múltiplos problemas, quer fossem efetivos ou imaginados. Inauguraram e planejaram formas de reeducação dos seus habitantes ao mesmo tempo em que se moldavam enquanto profissionais, traçando uma área própria de atuação. Vamos surpreendê-los redefinindo o campo educacional num espaço urbano que estabeleceu com a modernidade uma relação peculiar a partir da condição de capital política, da ambição do cosmopolitismo e da convicção de que o discurso da cidade era um discurso metonímico para todo o país. Que efeitos teria essa relação específica sobre a escola? Quais as respostas que a escola gerou aos desafios que lhe foram impostos?

Para responder a estas perguntas buscamos o diálogo entre os textos que falam a escola ou onde ela fala, não apenas como tendência ordenadora e controladora, mas também como capacidade de fabulação, que cria obstáculos à ação dos seus planejadores, que pressiona as medidas impostas e até as reorienta. O que queremos vislumbrar? A escola como processo de transformação da imaginação e do trabalho coletivo, a escola como a expressão de experiências humanas em tensão permanente, a escola como uma rede de relações sociais que se imbricam e se reelaboram.

Decifrar a escola na cidade é cifrá-la novamente a partir de fragmentos num jogo interminável entre o pertencimento e o distanciamento, a indeterminação e a precisão, a domesticação e a liberdade, o rigor e a imaginação. Nossa opção foi a de percorrer a escola e a cidade como se fôssemos andarilhos e cartógrafos ascultando sua densidade, suas pulsações quase ocultas, suas sutis modulações cotidianas, seus ritmos conjunturais.

Procuramos captar a especificidade da escola carioca dentro da cultura urbana. Para tanto, ao mesmo tempo que construíamos a fundamentação para o seu entendimento, aprendíamos a escola e a cidade, corrigindo rumos a partir da identificação de erros que nos escapavam. Em todos os momentos deste percurso a bússola que nos norteou apontou sempre a mesma direção: revisitar o passado enquanto possibilidade de germinação, de inauguração, de um novo começo.

1. A escola de nossos avós e de nossos pais

Na capital política do país, os cronistas sociais dos primeiros anos republicanos, como João do Rio, denunciavam a ausência da escola ao nos descerrarem o penoso quadro de mazelas que oprimiam as classes trabalhadoras: a exploração do imigrante, as batidas policiais, as epidemias contagiosas, os pivetes assassinos, o analfabetismo. Não existia, de fato, uma rede escolar pública. Nas escolas isoladas e dispersas, que funcionavam em uma só sala e predominavam ao lado de um pequeno número de escolas reunidas e grupos escolares, os alunos eram matriculados pelo exame dos dentes. Quando a criança não podia apresentar certidão de nascimento, a troca dos dentes de leite pela dentição permanente constituía prova suficiente de idade escolar.

Casas alugadas, transformadas em escolas, tornavam-se focos de alastramento de epidemias. Funcionavam com deficiências de asseio, conservação e localização. Se pudéssemos percorrer a pé o bairro da Saúde, a praça Quinze, a rua do Hospício, a rua da Misericórdia, talvez vislumbrássemos cenas, como as que o prefeito Carlos Sampaio descreveu na mensagem relativa à sua gestão: escolas em cima de botequins "freqüentados por toda a casta de gente", de açougues, de farmácias com grande movimento de doentes, com privadas dando diretamente para a sala de aula. Aulas em porões, em pequenas casas imundas. Faltava ar. Faltava luz. Faltava água. A aglomeração contribuía para espalhar a bexiga (varíola), a gripe, a tuberculose, a meningite cérebro-espinhal que, ao lado das verminoses, dizimavam a desnutrida população infantil. Vários motivos afastavam a criança da escola: a doença, a necessidade de trabalhar, a necessidade de mudar de casa pelos aumentos sucessivos do aluguel, o medo de apanhar. Mas o medo de apanhar também levava a criança à escola, como o pequeno "seu" Pilar, de Machado de Assis, cuja lembrança da sova nele aplicada pelo pai, com vara de marmeleiro, o obrigava a desistir de brincar na rua e guiar para a escola que ficava na rua do Costa, num sobradinho de grade de pau.

Os registros dos relatórios do prefeito e da literatura convergem ao evidenciar, na instituição escolar, a depauperação da vida urbana. Como extensão da casa a escola revela os problemas da habitação, da saúde e das relações hierarquizadas e punitivas. O sentimento religioso, suas práticas e rituais invadiam as instituições escolares de muitas formas, seja através dos seus agentes, seja através da sua própria materialidade traduzida, por exemplo, no material didático e nos programas de ensino. Não é por acaso que a cartilha elaborada segundo o método do barão de Macaúbas, denominada Leitura Universal e publicada em Bruxelas, no ano de 1889, trouxesse em seus primeiros exercícios de leitura corrente as lições: Sinal-da-cruz, Ave-maria e Padre-nosso, e dentre as poesias: "As obras de Deus.

No regime republicano, após a separação entre a Igreja e o Estado, a prestação de serviços educacionais pelas ordens religiosas passou a constituir a principal diretriz da política expansionista da organização eclesiástica. Ao final dos anos 20, esta organização exercia o controle de 70% das instituições de ensino privadas em funcionamento no país. A Igreja havia criado e estava gerindo escolas primárias, secundárias, agrícolas e profissionais. Destacou-se porém pela ênfase que deu às escolas secundárias destinadas aos filhos das grandes famílias proprietárias rurais, fornecendo uma formação erudita para muitos dos intelectuais que assumiram o papel de principais agentes do campo educacional ainda na Primeira República. Essas escolas não só os prepararam para o ingresso nas escolas superiores de Direito, Medicina e Politécnica, mas também ofereceram uma cultura básica que os tornou receptivos a um pensamento científico que teve no positivismo sua principal expressão.

O crescimento das cidades brasileiras no final do século XIX e começo do século XX foi acompanhado de transformações sociais impulsionadoras de um ecletismo na percepção da sociedade que fez dos intelectuais gerados pelo universo religioso e retrabalhados pela cultura moderna uma espécie de contra-especialistas no trabalho de definir a realidade. Ao mesmo tempo que assim se constituíram, a Igreja, que se definia como antimoderna, conseguia certa flexibilidade para em algumas situações absorver certas definições competidoras da realidade e subordiná-Ias à fé. Sob a proteção do Cristo crucificado foram equipados, em alguns colégios jesuítas, como o de Salvador, os melhores laboratórios de ciências físicas e naturais no país. A agressividade conservadora é, sem dúvida, um dos traços que marca a renovação dessa instituição no Brasil republicano. Apesar da ortodoxia, a Igreja se lançou para dentro de si mesma, buscando uma nova linguagem, uma nova organização e uma nova disciplina que, contraditoriamente, não recusou certos elementos de formas e conteúdos modernos.

Era ainda a Igreja que comandava o campo educacional. Este campo porém já estava cindido e carregava dentro de si versões competidoras do cristianismo. O monopólio educativo católico, no primeiro período republicano, seria gradativamente solapado pelo liberalismo que pretendia assumir, de fato, a direção e o desenvolvimento das instituições educacionais, secularizando a república e instigando o acirramento da luta da Igreja para conquistar a opinião pública e manter sua posição de formadora das elites dirigentes. Em nome da virtude e do combate aos excessos, a Igreja enquadrou o moderno e controlou, enquanto pôde, os costumes.

O controle dos costumes pela escola incluía uma rígida disciplina. Um amplo levantamento de Arthur Ramos sobre os castigos físicos a que eram submetidas as crianças das famílias cariocas, ainda na década de 30, registrava bordoadas, socos, chicotes, pancadas com cabo de vassoura, tamancos, correias e tábuas. As crianças também eram amarradas ao pé da mesa, despidas de suas roupas para que não fugissem. Eram presas em cafuas. Nas escolas, além dos bolos de palmatória, com várias modalidades (palmatória furada, bolos com milho na mão), os cascudos, os puxões de orelhas, os beliscões, a permanência de joelhos em cima do milho ou feijão, a permanência de pé em cima do banco, a orelha de burro, a pedra ou caderno pendurado no pescoço com o exercício errado, a lavagem da boca tantas vezes quanto as sílabas da palavra feia pronunciada, o esforço de ficar em pé com uma cadeira na cabeça. Maior inventividade no tocante à tortura infantil só mesmo no interior de São Paulo, pelo castigo da bola de cera. Presa por um barbante esta bola era lançada à cabeça da criança repreendida e nunca voltava sem uma mecha de cabelos arrancada.

Com tantas punições, por que a memória escolar é repleta de saudade? A literatura e as entrevistas ajudam-nos a compreender este ponto. A grande distância psicológica entre as gerações levava a criança a buscar apoio e companhia no grupo da sua idade construindo a solidariedade através de mecanismos específicos que contestavam a (falsa?) ordem imposta pelo mundo adulto. O roubo, a mentira, o perigo e o segredo criavam um universo à parte. A raiva e as punições não conseguiam impedir a amizade.

Quando seguimos as pegadas do que se disse sobre a escola estamos trabalhando com memórias agarradas a um contexto de infância que se remete a uma doxa urbana mutável, recortada pelas lembranças envolvidas na escrita, na escuta, no momento e nos costumes. As memórias dos ex-alunos das escolas públicas, dos poetas e dos cronistas da cidade em seus textos compõem de maneira anamórfica (formas sempre em mudança) o que chamaríamos de "realidade" da escola e os sentimentos e as opiniões que sobre ela se forjaram. É nesta imbricação que chegam até nós múltiplas percepções do espaço escolar, percepções que se reenviam incessantemente umas às outras e que enlaçam também imagens do espaço urbano, constituindo um estoque de informações criticamente trabalháveis.

A memória dos adultos que nas décadas de 10, 20 e 30 viveram sua infância na zona urbana e suburbana do Rio de Janeiro vai confirmando a fragmentação social da cidade analisada pela literatura sociológica e histórica e que se expressa na fragmentação escolar. A fragmentação revela a hierarquização social que atravessa os diferentes tipos de moradia (as habitações arejadas e confortáveis de centro de terreno; as casas mais pobres, isoladas ou localizadas em vilas, as casas de cômodos geralmente localizadas no sobrado de lojas comerciais), de escola (as isoladas, as reunidas, as graduadas), de transporte e lazer. No caso do transporte, o uso era diferenciado pela sua destinação em classes (o popular taioba era o bonde de segunda classe). No caso do lazer, os locais freqüentados variavam para ricos e pobres (os ricos, por exemplo, iam à praia de Copacabana e freqüentavam certos clubes, como o Carioca; os pobres iam à praia do Caju e faziam suas domingueiras dançantes no Musical, conhecido ponto de encontro dos operários moradores do Jardim Botânico).

Perambulemos pelos bairros do Rio no começo do século: alguns distritos já se delineavam como industriais. Noutros predominavam as residências, o pequeno comércio local (quitandas, padarias, armazéns, açougues, farmácias), mesclados com sítios hortigranjeiros e, às vezes, uma ou outra vacaria, na qual se comprava diretamente o leite. Alguns eram bem servidos pelos bondes, pelos ônibus comuns, pelos ônibus da Light (com dois andares, poltronas de veludo e um acabamento esmerado) ou táxis. Os subúrbios eram conectados pela Maria Fumaça. Neles eram comuns os tróleys puxados a cavalos, que geralmente faziam o percurso da estação ao trem comercial.

Enquanto alguns locais tinham suas ruas principais asfaltadas ou pavimentadas com pedras, noutros não havia calçamento ou iluminação. No Catumbi e no Rio Comprido as enchentes eram espetaculares em certas épocas do ano. Nos bairros mais desassistidos pelos serviços públicos transitavam pelas ruas os carroceiros com seu comércio ambulante. Os transportes públicos e as feiras costumavam estar localizados nos bairros próximos. Em Botafogo moravam as famílias tradicionais. Em São Cristóvão, Gávea e Bangu, Gamboa e Laranjeiras, os operários. Em Realengo, onde se erguiam imponentes o Colégio Militar e a fábrica de cartuchos, ficavam instalados preferencialmente os militares e os funcionários públicos. A Tijuca era um bairro que mesclava profissionais liberais, pequenos e grandes industriais e comerciantes, faxineiros e operários.

Aos poucos crescia, na cidade, a população pobre. A migração atraída pelo crescimento da indústria, estimulada pela supressão temporária do fornecimento externo devido à Primeira Guerra Mundial, levava para o centro urbano um contingente de pessoas que, tendo necessidade de morar próximo aos locais de trabalho, iniciou um processo de favelização irreversível.

As invasões de terrenos públicos e privados foram constantes a partir de meados da década de 10, e apesar da tentativa das autoridades cariocas conterem os posseiros urbanos, a falta de alternativa, em termos de uma política habitacional, consolidou a favela no cenário carioca. Nos anos 20 ela chegaria a Botafogo (Pasmado), Copacabana (Tabajaras e Leme), a São Cristóvão (Mangueira) e até a Madureira. Por essa ocasião já havia também galgado as encostas da serra da Carioca pelo lado do Catumbi (São Carlos e Querosene), da Tijuca (Salgueiro), do Engenho Novo (Macaco). Havia atingido ainda a vertente sul (Rocinha e Dona Marta). Em 30, junto com o crescimento acelerado dos bairros da orla marítima, a favela continuaria sua expansão: Catacumba, Pavão, Pavãozinho, Ilha das Dragas, Praia do Pinto, Borel, Macedo Sobrinho, Turano, Formiga.

A topografia da cidade invadida e ocupada pela pobreza tornava-se assustadora. Comprimidos nas zonas portuárias, na Gamboa, na Saúde, nas freguesias centrais e na cidade nova uma legião de operários, carroceiros, homens de ganho, catraieiros, caixeiros de bodegas, lavadeiras, costureiras de baixa freguesia e prostitutas, sobrevivia como podia.

Mudava-se muito no Rio de Janeiro. Nas entrevistas que realizamos foram fartos os depoimentos que evidenciaram uma mudança constante de habitação da família dentro do mesmo bairro e de um bairro para outro. Mudava-se uma, duas, três, quatro e até mais vezes, e por vários motivos: a falta de serviços médicos, a procura de oportunidades escolares em nível mais avançado (cursos secundário e normal), a busca de oportunidades de emprego para filhos já jovens, o falecimento de algum membro da família, a remoção de trabalho paterno e materno (muitas vezes a mulher, geralmente diretora de escola, era a cabeça do casal), mas principalmente pelo aumento dos aluguéis. Este aumento atingia a escola, pois em toda a Primeira República a maioria das instituições de ensino municipais funcionava em casas alugadas.

Quem ditava a política de localização e acesso à escola nas décadas de 10, 20 e até mesmo no início dos anos 30, era, em última instância, a ganância dos proprietários de imóveis em ampliar sua renda pessoal. Este fator foi decisivo, inclusive, para concentrar as escolas primárias públicas nas áreas privilegiadas pela especulação imobiliária: os núcleos iniciais da cidade e seus arrabaldes.

Entre 1920 e 1925 os aluguéis aumentaram de 160 mil réis para 400 mil réis. A Prefeitura chegou a despender com aluguéis, em 1920, a importância de 1.020 contos. Esta elevação de preços teve dois motivos básicos: o fechamento das casas de cômodos, pela política de planejamento urbano que obrigou seus habitantes a procurarem áreas menos valorizadas para estabelecer aí sua moradia (os morros, os subúrbios e as regiões isoladas da zona rural), e o aumento generalizado do custo de vida. Os prefeitos, pressionados pela escassez de verbas e pela política eleitoreira dos intendentes, restringiam-se a promover a ampliação e a reconstrução de algumas escolas existentes, preferencialmente na zona urbana.

As escolas primárias públicas ficavam circunscritas a distritos escolares cuja divisão acompanhava, grosso modo, a divisão dos distritos municipais, única e exclusivamente pela vantagem das escolas serem incluídas na organização e no movimento estatístico da administração distrital. O aumento da população ativa não manual, e dentro dele o empreguismo de determinados setores das classes médias, forçou o crescimento dos distritos municipais que, por sua vez, forçou o crescimento dos distritos escolares. Se em 1922 haviam 23 distritos escolares para 25 distritos municipais, em 1928 ambos já se equiparavam no total de 28 sedes administrativas.

A multiplicação dos distritos escolares, enquanto procedimento quase mecânico, não trazia benefícios reais de atendimento às necessidades da população carioca. De fato, o grande obstáculo a este atendimento era a falta de interesse e o boicote do Conselho Municipal à resolução da questão, já que lhe cabia determinar a política de pessoal e de construção de prédios, via Lei Orçamentária.

Os intendentes – médicos, engenheiros, padres e advogados –, figuras representativas de famílias influentes dos diversos bairros cariocas, como a Caldeira de Alvarenga, a Bergamini, entre outras, consolidaram uma prática clientelista que distribuía favores e privilégios burocráticos. Através da Lei Orçamentária estabeleciam o quadro de professores e as verbas para aluguel das casas dos seus eleitores que seriam adaptadas em escolas primárias.

Em meados da década de 10, o Distrito Federal ocupava 310 prédios alugados com estabelecimentos escolares. A alta dos aluguéis forçou a Prefeitura, na década de 20, a reduzir seus contratos. Dessa forma, em 1926, o número de prédios alugados baixava a 179. Esta redução era ditada pela economia da escassez que agravava mais ainda a situação dos escolares já que nenhum prédio novo fora construído. Os edifícios próprios municipais destinados à escola, nessa época, ainda eram os construídos no Império.

A desocupação das casas foi compensada pela duplicação de turnos. A adoção do duplo turno reduziu a jornada diária da escola de cinco para quatro horas. Dificultou as condições de trabalho do professor, já que a higiene, o asseio e a conservação do material escolar ficaram prejudicados e desorganizou a vida do estudante, não apenas pela redução do horário, mas pelo fato de que a localização de uma escola no prédio de outra ocasionava o abandono dos estudos daqueles alunos da escola transferida. Não era incomum alunos e professores serem obrigados a ocuparem, às pressas, outros prédios quando os proprietários das casas onde estavam instalados resolviam vendê-las. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a Escola Paulo de Frontin, transferida precipitadamente para a rua Aristides Lobo. Este é um entre inúmeros casos.

O poder dos proprietários de casas e dos "seus" intendentes parecia não ter limites. Em vão as sucessivas Mensagens dos prefeitos clamavam pela necessidade de construir prédios escolares e reformar o ensino porque qualquer reforma, que assumia o caráter de obrigatória aos olhos dos diretores de Instrução, representava a ameaça de ferir interesses estabelecidos cujas manobras escusas opunham-se à construção de qualquer escola e à regulamentação da carreira do magistério.

A política do Conselho Municipal trocava votos por favores traduzidos em aluguéis e lugares no magistério. Se diretamente obstaculizava a escola à criança, indiretamente contribuía para manter o caráter mórbido das escolas existentes. As más condições de funcionamento dos prédios escolares castigavam os alunos, vítimas das doenças que atingiam indistintamente uns e outros, embora os mais sofridos, como os filhos dos trabalhadores (imigrantes, migrantes e negros), a elas sucumbissem mais depressa.

No Rio de Janeiro, durante todo o primeiro quartel do nosso século, as doenças que mais atingiram grandes faixas da população com potência ou já em idade de produzir e que, de fato, mataram, foram as doenças da pobreza: as doenças infecciosas e as dos aparelhos digestivo e respiratório, o que denotava a presença da fome e da deficiência de saneamento básico. Sem serviço de águas e esgotos, a população pobre enquistada nos morros era vítima da sua própria sorte. As fezes e a água contaminada infeccionavam a superfície do terreno e escorriam morro abaixo. Com o insuficiente e, sobretudo, mal distribuído abastecimento de água da cidade, a circulação das matérias dos esgotos ficava prejudicada, assim como ficava deficitária a limpeza das ruas, das casas e das pessoas. Até a permanência dos alunos nas escolas ficava impedida pois a falta d'água, comum em certos bairros em determinadas horas do dia, sobretudo nas escolas de dois turnos, acarretava a suspensão das suas atividades.

Apesar das campanhas sanitárias, as disenterias e a fraqueza dos pulmões engrossavam o número de causa mortis na população em idade escolar. A tuberculose, segundo Carneiro Leão, também matava os alunos e era avassaladora no corpo docente, pela vida atribulada graças à origem social, às privações sofridas durante o período de formação e à má remuneração. As febres tifóidicas e o impaludismo faziam freqüentemente suas vítimas.

A situação de penúria e abandono das classes mais pobres produzia uma escola que a retratava e este retrato era ainda mais perverso nas zonas suburbanas e nas cidades do interior. Ao lado do excedente de ex-escravos que se acumulavam em torno da cidade, os trabalhadores migrantes e imigrantes constituíram um contingente populacional que duplicou de 1890 para 1920. De uma população de 522.651 habitantes, o Distrito Federal alcança em 1920 o total de 1.157.873 pessoas. Este crescimento populacional foi acompanhado por um deslocamento progressivo das classes pobres da zona urbana para a zona suburbana e rural. Este deslocamento explica, por exemplo, a explosão demográfica que a área rural vai conhecer na década de 20.

Os distritos rurais atendiam a uma população que se dedicava primordialmente ao cultivo de plantas industriais (cana-de-açúcar e café) e à agricultura de subsistência (arroz, milho, feijão, batata-inglesa e mandioca). A maioria destes cultivos localizava-se em Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz. Nesses locais também havia a criação de gado bovino, suíno, eqüino e ovino. Eram a área rural e as zonas suburbanas mais distantes que abasteciam de alimentos a cidade, e se suas condições de higiene, conservação, transporte e comércio não fossem satisfatórias todo um grande contingente populacional estava em risco permanente. Este risco se agravava no que dizia respeito ao abastecimento de carnes, que compreendia duas ordens de serviços: os internos aos abatedouros, abrangendo a invernagem, a matança do gado e o preparo de carnes; e os externos, que se iniciavam no transporte e culminavam no comércio direto à população.

O fato é que tanto na área central como na área suburbana, nas décadas de 10 e 20, os problemas decorrentes da falta de saneamento básico, de uma política habitacional excludente e de uma escola pública precária vão revelando um Rio muito distante do epíteto criado por Jeane Catulle Mendès quando o visitou em 1912 e que André Filho fixou para sempre numa marchinha carnavalesca de retumbante sucesso: Cidade Maravilhosa.

André Filho, nessa canção, realizou musicalmente a sacralização descontraída da alegria que explode na primeira estrofe e protege uma imagem mítica: a do Rio inventado pela República que demoliu, já na primeira década do século, boa parte da cidade velha para construir um perfil moderno, um outro lugar, um outro conjunto de experiências para seus habitantes. Cidade Maravilhosa tornou-se hino oficial. A reinvenção do espaço urbano abriu espaço para a reinvenção da escola, ferida da cidade, escondida nas casas alugadas. Escondida pelo cenário de ostentação que se erguia e procurava ocultar sua face menos luminosa: a dos lugares malsãos.

Em toda a década de 10, e nas décadas seguintes, a precariedade da vida urbana conviveu com a construção de um cenário de poder em múltiplos sentidos que podem ser sintetizados na necessidade de organizar uma série de símbolos de forma a construir uma imagem identificada ao imaginário oficial. Neste caso, refletir sobre as utopias pedagógicas produzidas pela cidade é entrar na discussão da sua vocação política, que nunca escondeu o desejo de ordenar as diferenças, controlar o aleatório e se situar na vanguarda dos acontecimentos.

Na gestão do prefeito e general Bento Ribeiro Carneiro Monteiro (1910-14) foi elaborado, pela primeira vez, um projeto completo de construção de edifícios escolares. Seu autor, o major Alfredo Vidal, procurou projetar um organismo arquitetônico determinado pela natureza da escola. Para tanto, estudou os modelos escolares americano e inglês; as teses do terceiro Congresso Internacional sobre Higiene Escolar realizado em Paris, no ano de 1911; os programas de ensino (apenas no que dizia respeito aos problemas de higiene, moral e conforto); os dados estatísticos do recenseamento do Distrito Federal, em 1906; a densidade da população e os mapas de freqüência escolar.

Os resultados do seu estudo aparecem num relatório detalhadíssimo que aponta a seguinte classificação para os edifícios escolares: escola primária, escola profissional elementar, escola profissional secundária ou escola de artes e manufaturas, escola-sanatório, escola de crianças anormais e jardim de infância. Toma ainda como base para aplicação de futuros programas de construção o projeto do edifício da escola primária destinada aos distritos rurais e suburbanos.

Sua preferência, apesar da especificidade dos tipos de escola, é por um único pavimento, excepcionalmente dois, caso a exigüidade do terreno não comportasse as determinações do projeto original. Sugeriu agrupar as escolas pelos distritos administrativos, não como critério definitivo, já que à vantagem de estarem ligadas à organização e ao movimento estatístico desses distritos acrescentavam-se muitas desvantagens: o custo exagerado dos terrenos, a morosidade no processo de desapropriação e a impossibilidade de evitar que, no futuro, a escola viesse a ter uma vizinhança incomôda e prejudicial do ponto de vista higiênico e pedagógico. Além da sua distribuição no espaço urbano, Vidal estudou e apresentou orientações para o seu aparelhamento e instalação.

O relatório de Vidal é um instigante exercício de idealização do funcionamento de um corpo escolar saudável: que respira bem (via dispositivos de circulação de ar), que enxerga bem (via dispositivos de iluminação), que se locomove bem (via espaços destinados a exercícios físicos), que dá higienicamente fim aos dejetos que produz (via aparelhamentos sanitários e seu conveniente uso e limpeza), que é controlado (via dispositivos de circulação interna dos edifícios, de seu fechamento eventual e da separação dos alunos por sexo na faixa etária acima de 10 anos), que interioriza noções de ordem e asseio (via preceitos e indicações inscritos nos pontos mais convenientes do revestimento das paredes). Acompanhemos, passo a passo, a descrição do seu edifício escolar.

Sua localização ideal seria um terreno com a dimensão mínima de 65m por 130m. Deveria ser erguido de forma subordinada às correntes de ar, à direção média pela qual os temporais se propagassem com maior freqüência na localidade e às condições de boa iluminação. Dividir-se-ia em três corpos: um central, para crianças de 7 a 10 anos, e dois laterais, o da esquerda, para meninas de 10 a 15 anos, e o da direita, para meninos na mesma faixa etária. Na entrada de cada um desses corpos ficaria um vestiário onde seriam guardados chapéus, guarda-chuvas e outros objetos com espaço suficiente, entre os cabides, para limpeza, desinfecção, ventilação e facilidade de fiscalização dos zeladores do prédio. Cada compartimento desse vestiário deveria ser classificado por aulas (leia-se salas de aula) e alunos, organização essa necessária, como Vidal mesmo afirma, para incutir no espírito das crianças hábitos de ordem e higiene.

Junto aos vestiários de cada corpo lateral seriam encontrados, de um lado, a portaria e a sala para exame médico com as instalações adequadas (balança para pesagem dos alunos, leito, aparelhos para exame, armário com medicamentos e toalete). De outro lado, a sala da diretoria e a biblioteca. Ao lado da biblioteca, uma sala ficaria destinada a guardar material sobressalente não guardado nos vestiários. Todas essas dependências seriam separadas por um corredor. No corredor teriam lugar os reservatórios de água potável para abastecimento dos três corpos e em uma de suas extremidades ficaria a instalação central de ventilação e luz.

Ao seguir-se o eixo dos vestiários haveria, então, uma ampla galeria coberta que, em um dos seus lados, abrigaria as aulas, as salas para o ensino especial e os compartimentos com armários para o material escolar e, de outro lado, áreas arborizadas para aulas ao ar livre e modelos e quadros instrutivos executados em cerâmica. Note-se que as aulas seriam isoladas, por uma galeria, em grupos de duas e apresentadas como se fossem células. Essas células seriam compostas de duas partes simétricas. Cada uma dessas partes constaria de uma sala fechada em três de suas faces, sendo a outra aberta para a área arborizada. A face aberta de cada aula ficaria de frente à face aberta da outra com o intuito de que, pela galeria, pudessem vir a ser usadas de modo separado ou simultâneo pela mesma turma de alunos sob as ordens do professor.

Essa solução celular, segundo o autor do projeto, era uma proposta que conciliava duas tendências: a das aulas ao ar livre e a das aulas fechadas. Tratava-se de uma aula semi-aberta que visava combater os malefícios da aglomeração de pessoas em recintos herméticos. Que malefícios seriam esses? O mal-estar caracterizado por peso na cabeça, náuseas e vertigens, além da falta de disposição para o trabalho.

Terminada essa descrição mais geral, seguem-se considerações específicas sobre a circulação do ar na sala de aula a partir da ventilação natural e artificial; sobre a iluminação natural e artificial; sobre o piso dos assoalhos escolhido a dedo para permitir não só grandes lavagens periódicas em todo o edifício com abundância de água, mas também inscrições e figuras instrutivas, complemento do material pedagógico das escolas; sobre o mobiliário escolar: armários, mesas, estrados, estantes dos vestuários, escarradeiras higiênicas e lavatórios, que seriam fixos; as carteiras, ajustadas nos tampos, assentos e encostos às idades, proporções e defeitos físicos dos alunos, e o quadro de giz, em dois modelos, um fixo à parede e outro giratório, ligado a duas guias verticais fixas à parede de aula.

As instalações pedagógicas teriam por objetivo fazer resultar da sua uniformidade a uniformidade dos processos pedagógicos em todas as escolas primárias. O autor chega mesmo a propor materiais pedagógicos específicos em constante exposição. Citamos apenas três para oferecer uma idéia da sua concepção: o tanque retangular para água, cujo fundo seria uma superfície modelada com os acidentes marítimos e fluviais do Distrito Federal; uma representação topográfica, localizando o quarteirão da escola na cidade, a cidade no estado, o estado no país, o país no continente americano, o continente no mundo e o globo terrestre no espaço celeste. Uma esfera armilar de 3,50m de diâmetro, formada por meridianos e paralelos de 15 em 15 graus, na qual as constelações seriam representadas por pequenos discos perfurados, dispostos entre as coordenadas. As constelações zodiacais seriam distinguidas por uma convenção especial. O eixo imaginário dessa esfera se acharia no meridiano e teria inclinação igual à latitude do local no qual o edifício escolar se encontrasse.

Se esta descrição por si só impressiona, ela deixa de lado considerações pertinentes às atividades pedagógicas que estariam instaladas nos extremos das galerias (ensino especial de artes e ciências e curso experimental de noções de trabalho) e os comentários relativos aos demais tipos de escola classificados pelo autor. Em torno do edifício escolar estariam dispostas as instalações sanitárias, as dependências para o ensino especial e as áreas para movimentos livres e ginástica sueca. Recomenda Vidal especial cuidado com as instalações sanitárias de modo que pudessem ser atingidas pela luz natural em todos os seus recantos, com a finalidade de aproveitar ao máximo a energia bactericida do sol. Ressalta ainda a importância dos dispositivos de fechamento dos corredores transversais e das galerias longitudinais aplicados em todas as suas extremidades e nos pontos em que cada corpo do edifício se separasse dos demais. Recomenda grades flexíveis para as entradas dos vestuários e os recintos que tivessem de permanecer fechados.

A vontade de previsão em Vidal é enfática. Procura dotar seu projeto de uma elasticidade tal que tornasse possível o início da sua construção, adequando-a para satisfazer as exigências de uma freqüência pouco numerosa e ampliando-a à medida das necessidades até o seu limite máximo. Também antecipa soluções no caso de dificuldades do ponto de vista da distribuição das escolas pelos distritos. Neste caso, sugeria localizá-las nas elevações do respectivo distrito; grupá-las no maior número possível em torno de um parque ou uma praça; distribuir-lhes as aulas por pavilhões destacados e encaminhar para as escolas-sanatórios (que exigiriam projeto especial) o excesso de freqüência que aparecesse em uma escola como conseqüência da supressão de outras no plano geral de distribuição dos prédios e da impossibilidade de escolher terreno adequado às condições e fins do projeto.

A escola ideal nada mais é do que um ponto de referência pelo qual os problemas da escola real nas áreas suburbana e rural são detectados e solucionados a priori. Mais do que um modelo propriamente dito, é um módulo que se modifica pelo acréscimo de outros, mas que não muda sua substância: exercer uma ação pedagógica (higiênica) sobre alunos e professores, que daí se irradiasse para o ambiente familiar.

A descrição que o major faz da escola ideal reduz o ambiente escolar a dados técnicos, cujos efeitos são calculados, comparados aos de experiências internacionais já realizadas ou em andamento e relacionados aos progressos tecnológicos da época. Neste sentido, a arquitetura é subsumida às aptidões físicas das formas utilizadas no edifício escolar e aos efeitos dessas formas sobre a distribuição das pessoas e dos serviços. A particularidade desses efeitos é que estão subordinados a outros órgãos do organismo urbano, como os aparelhos de esgoto e distribuição de água. Vidal define um novo ambiente para o pobre, criado a partir dos seus componentes mais materiais.

Nos pormenores e detalhes do seu projeto, traça uma gigantesca empreitada no combate à doença e à delinqüência. Constrói, no seu relatório, uma metáfora da cidade ideal que se afirma pelo conteúdo que expulsa da cidade real: a sujeira, a aglomeração, o ambiente malsão e a ociosidade. É a resposta agudamente racional aos problemas urbanos, ou melhor, é a vontade de controle que aí se explicita. Uma verdadeira máquina escolar é imaginada para combater a desordem dos eventos. Seria oportuno parodiar Mumford: a escola favoreceria a cidade, seria a própria cidade. Isto é, a cidade como produto higiênico e moral, como a condensação de conceitos e valores específicos. A ordem escolar negando a ordem social existente deixa de ser reflexo e assume o papel de uma razão metafísica da instituição urbana. A escola (cidade) inventada pode continuar a mudar (pelo acréscimo de células) sem se desviar de sua lógica. Ela se realiza como valor de qualidade, que permanece praticamente imutável com a mudança da quantidade.

Há na proposta de organização espacial da escola uma avaliação implícita das condições objetivas e presentes da cidade. Não é por acaso que apesar da edificação projetada destinar-se às áreas suburbanas e rurais ela apareça como proposta geral de edificação, diríamos de domesticação da rebeldia da cidade. É que a escola real sintetiza a crise gerada pelas próprias dificuldades da intervenção das autoridades municipais sobre o temido caos urbano. Neste sentido ela é a armadilha da cidade moderna inventada no início do século por ser concretamente a afirmação da negação da própria modernidade.

Uma escola não é apenas o produto das suas técnicas. Produto este no qual todos os excessos poderiam ser solucionados pela conjunção de categorias médicas, arquitetônicas e numéricas, como supôs Vidal. Apesar dos elogios de Oswaldo Cruz, o projeto de edificações não foi executado. Não nos parece que sua irrealização se deva única e exclusivamente às dificuldades do cofre público, embora essas dificuldades realmente existissem. Seu trabalho foi também válvula de escape, compensação da atividade administrativa que se via de mãos atadas para resolver problemas básicos e antigos do espaço urbano: habitação, transporte, água, esgotos, escolas.

A ênfase na fachada urbana remodelada por Pereira Passos muitas vezes omite, na literatura que discute as relações entre cidade e modernidade, as deficiências que integravam o ambiente construído: a longa luta pela "água da Carioca", desde o século XVII; o processo crescente de ocupação dos morros e da sua favelização, dos meados da década de 10 em diante; a especulação imobiliária; o saneamento básico, entregue ao lucro privado, da The Rio de Janeiro City Improvements Company Limited que atendia, de modo discriminado à população urbana, e assim por diante.

Num ponto Vidal parecia correto: se a escola era a resistência manifesta da cidade ao ímpeto modernizador, tornava-se imperioso mudá-la. O anseio de disciplinar a pobreza no corpo, na mente, nos gestos e nos sentimentos tomou conta do debate e das propostas dos intelectuais e educadores na década de 10 e das suas associações nas décadas de 20 e 30. O mesmo alvo esteve, então, presente: a distribuição regrada das populações em espaços adequados, a regulamentação controlada do seu lazer e do seu trabalho, sua reordenação por diversas atividades produtivas.

É que a Cidade Maravilhosa não era, para muitos, tão maravilhosa assim! Considerada Babilônia de todos os vícios, não havia recanto do Rio que se salvasse da sensualidade abominável que, presente o ano inteiro, explodia no carnaval. "Carta de um brasileiro alarmado", publicada no jornal A Noite, de 25 de fevereiro de 1915, denunciava a mais funesta das epidemias: a obscenidade das folias de Momo daquele ano, que levara moças de família a apresentarem-se, na praça pública, fantasiadas de apaches e gigolettes. A decadência dos costumes era, na visão desse brasileiro alarmado, a epidemia mais avassaladora da cidade carioca. Apelava à imprensa no cumprimento do seu dever de chamar a mulher brasileira a colaborar para a grandeza da sua pátria, transformando o seu lar numa fonte de virtudes. Para ele, sem dúvida, a sensualidade seria capaz de aniquilar a nossa existência de nação independente pela mais imunda e mais abominável das preocupações: a preocupação da carne.

A dramaticidade deste apelo patriótico encontrava eco no estudo de especialistas de Direito Penal, que se questionavam sobre a degenerescência do brasileiro, sobre os libertinos hábitos populares e os escândalos da elite carioca. Estas questões não pululavam só na literatura jurídica brasileira. Provocaram também a proliferação de contos e novelas de preocupação didática que exaltavam a virtude feminina. Clotildes, Dioclécias, Marcelinas e Lucindas ameaçavam, com suas condutas, os construtores da República.

A ação dos prefeitos que sucederam ao general Bento Ribeiro, diante das ameaças à moral e aos bons costumes e apesar do "excelente" plano do major Vidal, continuou sobretudo legiferante. Ao lado da regulamentação, via de regra burlada, do trabalho dos menores nas fábricas, oficinas e empresas industriais, do controle da venda do pão a peso na cidade e da proibição das corridas de quaisquer tipos de veículos nas vias públicas da zona urbana do Distrito Federal, foram também determinadas instruções para o uso do banho de mar nas praias cariocas.

A tentativa de controle do uso dos espaços públicos procurava atingir as praias, as ruas, as oficinas e as casas de comércio. Os albergues e asilos que, no final do século XIX, já abrigavam loucos, mendigos, crianças, homens e mulheres vagabundos, sofriam reformas e criavam rotinas que incluíam o horário fixo das refeições, o uso de uniformes pelos internos e a imposição do silêncio pelo toque de sinetas impreterivelmente às 20 horas. No âmbito das escolas o que se fez foi inspecionar as condições de salubridade dos prédios existentes, dispensando o contrato com os proprietários das casas alugadas que não reuniam condições higiênicas satisfatórias. Num movimento perverso, a "solução" acentuava outro problema: diminuir ainda mais a chance de acesso à escola. Os diretores gerais de Instrução Pública buscaram, no entanto, exercitar outras formas de controle menos dispendiosas, na medida em que lhes era vedada a possibilidade de construção de prédios higiênicos. Que medidas foram essas?

Medidas simples como o fabrico de copos de papéis individuais, que substituíam as canecas coletivas e eram feitos pelos alunos com a ajuda das professoras, e medidas mais complexas, como a instalação, no quadro do funcionalismo, de um batalhão encarregado da regeneração da raça. Esse batalhão era composto, em meados da década de 20, por inspetores-médicos e odontológicos que, atuando em cada distrito escolar, vigiavam e intervinham nas condições de saúde das crianças, dos professores e demais funcionários. Já ao final dessa década realizavam-se concursos para inspetores-dentários e enfermeiras escolares. Os relatórios dos prefeitos fornecem números detalhados desse serviço de atendimento. Com a presença desses agentes foi também criada uma escrituração meticulosa e sofisticada, infelizmente perdida, de gráficos mensais de peso e altura por idade, fichas médicas, odontológicas e sanitárias.

Se os gráficos fixavam os resultados dos exames antropométricos, as fichas médicas e odontológicas ofereciam informações preciosas para uma ação de intervenção dos poderes públicos, no sentido de encaminhar as crianças para as clínicas médicas ou dentárias, identificar casos de defeitos físicos e estabelecer os lugares desses alunos na rede escolar, incluir os estudantes necessitados no grupo dos que recebiam o copo de leite ou a sopa escolar, enviá-los para a Escola de Débeis ou até interná-los no hospital para tuberculosos. Nas fichas sanitárias, elaboradas e preenchidas pelas enfermeiras, que exerciam a função de visitadoras sanitárias, aproximando a escola e a família, ficavam consignados o estado sanitário e social do meio em que o aluno vivia, o estado do seu asseio, o seu estado físico e mental, além dos resultados do exame médico.

Mais uma ficha porém aparece e merece destaque nesse conjunto de fichas: a do Pelotão de Saúde. Nas décadas de 10, 20 e 30, dentro das escolas públicas municipais, este pelotão constituído pelos alunos mais comportados e/ou aplicados de algumas turmas mantinham a vigilância sobre o estado de limpeza do corpo, da roupa e dos modos dos seus colegas. Os componentes do pelotão eram identificados, na escola, pela utilização de uma faixa com uma cruz vermelha presa ao braço. A ficha do pelotão determinava para cada aluno, em cada dia da semana, tarefas higiênicas a serem cumpridas. Seu objetivo era a inculcação de determinadas normas de uso do corpo e de comportamento em ambientes privados e/ou públicos. Esta ficha ficava guardada com a professora e era mensalmente visada pela diretora, o inspetor e o médico de cada distrito. Recomendava-se que o aluno, dizendo sempre a verdade, examinasse e assinalasse o quesito cumprido dentre os seguintes:

1. Lavei as mãos e o rosto ao acordar.

2. Tomei um banho com água e sabão.

3. Penteei os cabelos e limpei as unhas.

4. Escovei os dentes.

5. Fiz ginástica ao ar livre.

6. Fiz uma evacuação intestinal, lavando depois as mãos com água e sabão.

7. Brinquei mais de meia hora ao ar livre.

8. Tomei um copo de leite.

9. Bebi mais de três copos de água.

10. Fiz respirações profundas ao ar livre.

11. Estive sempre direito, quer de pé, quer sentado. Só li e escrevi em boa posição.

12. Só bebi água no meu copo e só limpei os olhos e o nariz com o meu lenço.

13. Dormi a noite passada oito horas pelo menos, em quarto ventilado.

14. Comi frutas e ervas bem lavadas. Lavei as mãos antes de comer e mastiguei devagar tudo o que comi.

15. Andei sempre calçado e com roupa limpa.

16. Não beijei nem me deixei beijar.

17. Não cuspi nem escarrei no chão. Ao espirrar ou tossir usei o meu lenço.

18. Não coloquei na boca, no nariz e nos ouvidos, nem o lápis nem nada que estivesse sujo ou pudesse machucar-me.

19. Não tomei álcool. Não fumei.

20. Não menti nem brincando.

A vida higiênica infantil não seria completa se, além da vigilância constante, não houvessem atividades de educação física, desenho e trabalhos manuais. Na falta de espaço próprio para a realização de exercícios ginásticos, como planejara o major Vidal, professores e alunos passaram a utilizar os espaços públicos: jardins, praias e mesmo clubes esportivos (Botafogo, Flamengo, América, Helênico e Light Garage) para treinamentos físicos regulares.

Uma das realizações das quais Antonio Carneiro Leão mais se orgulhou como diretor de Instrução Pública, foi a prova de exercícios de conjunto que reuniu, em 1924, dois mil estudantes pertencentes a 12 escolas do primeiro e segundo distritos e, em 1925, quatro mil crianças numa demonstração de ordem e disciplina que provocou aplausos da opinião pública em geral e, particularmente, da Liga de Esportes do Exército.

É sugestivo, ainda, que esses acontecimentos tenham sido filmados e exibidos em outras capitais do país. Pela grandeza da raça, que retratou esses eventos, provocou a vinda de professores mineiros e pernambucanos para o Distrito Federal, sob o patrocínio dos governos estaduais, com o intuito de receber orientação da comissão de especialistas que sistematizou a educação física praticada em algumas escolas da capital federal.

A mesma intencionalidade ordenadora estava presente na confecção do desenho e dos trabalhos manuais. Nos trabalhos em madeira seguia-se a preferência do sloyd americano, tornado obrigatório nas escolas primárias públicas a partir de abril de 1921. O sloyd era iniciado pela instrução em série de exercícios indicados para adestrar a habilidade manual e, paralelamente, as qualidades de previsão, disciplina e vontade. Apesar da obrigatoriedade, foi acintosa a despreocupação de quase todas as escolas em produzir, dentro das séries pedagógicas, artigos vendáveis. Em conseqüência, a aprendizagem profissional permaneceu onerosa e com pequena freqüência.

Se os prédios higiênicos do major Vidal não foram construídos, o cuidado com os agentes e até com o mobiliário escolar e o material didático vingou e se atualizou. O batalhão da saúde abriu espaço para a concepção do professor como educador sanitário, que se configurou com mais clareza a partir da década de 30. As comissões de estudo de carteiras, formadas geralmente por médicos escolares, continuavam estudando a questão e enquanto não se chegava a uma decisão alguns prefeitos as importavam. Os materiais escolares também iam sendo comprados e encaminhados às instituições públicas de ensino primário.

O próprio general Bento Ribeiro chegara a trazer, da Alemanha, quatro mil carteiras duplas, tipo primus, distribuindo-as pelas escolas cariocas. Forneceu-lhes também 220 mapas murais, 330.880 diários de classe, 15.700 mapas de matrícula e freqüência, 14.200 mapas de freqüência de pessoal, 32.900 cartões de matrícula, 337 livros de escrituração escolar e 20.908 volumes de livros. Entre estes últimos, incluíam-se livros de leitura de diversos autores, livros de composição, poesias, contos, aritmética, geografia, história, instrução cívica, física, química, antologias, cartilhas e até Lições de Cousas, de Saffray, Passeios pela Cidade por Alunos do Colégio Militar e o famoso livro Coração, de Edmundo de Amicis.

A escola de nossos avós mudara. Já não se lia mais o barão de Macaúbas. Os preferidos agora eram outros: Thomaz Galhardo, Coelho Neto, Francisco Vianna, Bilac, João Kopke. A cartilha ainda não fora abolida, sob a justificativa de que atrapalhava a ação globalizadora da leitura, já que a criança tinha de se subordinar a assuntos e a vocabulário estranhos ao seu interesse do momento. Os jogos de sentenças permaneciam ausentes do cotidiano da sala de aula.

A escola de nossos avós, portanto, ainda estava presente na escola de nossos pais. Presença que também se percebia pelo sentimento religioso, pela necessidade de forjar um heroísmo cotidiano, mesmo sem saber direito o que se fazia ou o que se vivia, pelos castigos físicos e morais. Quantas crianças ainda se encolhiam diante dos apodos de professores e colegas mais velhos, apavoradas pelos apelidos humilhantes? Quanto ódio e medo contido no sofrimento de ser rotulado como Marocas, Cabeçudo, Cascavel, China, Velha da Costura, Roupeta, Pavão, Boca Larga, Graveto, Testa Lambida, Olho de Bomba, Fuinha, Clara de Ovo, Alfinete... Agora, no entanto, já era possível participar do Pelotão da Saúde, fazer ginástica nos espaços livres, fossem eles públicos ou não, assistir a filmes instrutivos e ler livros ilustrados.

2. Tal escola, tal cidade, qual país?

Querendo obedecer a meu pai, sentei-me à mesa de estudo e procurei tirar da nossa história uma página que nos fizesse bater o coração de entusiasmo e orgulho.

Que página seria essa?

Os perfis heróicos se sucedem e a dúvida se estabelece. O menino, sem querer copiar a lição da irmã, que já havia escolhido Tiradentes, vacila: as epopéias de Cabral? a abnegação dos jesuítas? o grande padre Antonio Vieira? Zambi, rolando do alto do rochedo com seus companheiros de armas? o Visconde do Rio Branco? os abolicionistas? Marechal Deodoro da Fonseca? o grande morto Benjamin Constant?

– Mamãe, que hei de escrever?

– Meu filho:

Entre muitos fatos da nossa história, esqueceste o capítulo da insurreição pernambucana, por exemplo, que te daria motivo para descrever heróicos feitos.

De lição em lição, Histórias da Nossa Terra vai tecendo a trama que ensinará a seus pequenos leitores os motivos, as diferenças e as vantagens da República com relação à Monarquia. Lido por várias gerações de alunos das escolas primárias, desde 1906 (a edição que consultamos é a 16ª), ele inventa, no diálogo entre pai, mãe e filho, uma tradição republicana cujo marco de origem é 1792. A Conjuração Mineira puxa um fio que se desdobra pela Insurreição Pernambucana, a Confederação do Equador e a República de Piratinim.

Numa passagem mágica, o heroísmo dos personagens históricos passa a ser, encarnado pelos personagens cotidianos que estão em ação na família, na escola, na fábrica, na rua e nos meios de transporte, transfigurando a aventura de ser brasileiro. Na busca dos bons exemplos, lições vivas, feitas para serem inesquecíveis, Júlia de Almeida Lopes reacende, na arquitetura do texto, o mesmo desejo do major Vidal em seu anseio de beleza, saúde e ordem. As diversas cidades brasileiras já aparecem coalhadas de chaminés de fábricas, de torres de igrejas, de telhados de asilos e hospitais, de colégios, de estabelecimentos de ciências e artes. Eram a expressão de uma humanidade boa, porque civilizadora.

O relato idealizado dessa civilização, nos livros escolares escritos por um Coelho Neto, um Olavo Bilac, uma Júlia Lopes, dramatizou o espaço urbano como símbolo da virtude. No texto de Júlia a bandeira foi escolhida como símbolo máximo do comportamento virtuoso: o serviço prestado ao próximo, à cidade e ao país. Diante dela, qual de nós não vibraria de entusiasmo? Não se comoveria vendo-a desfraldada em país estranho? Não se sentiria capaz das maiores audácias para defendê-Ia de uma afronta e livrá-la de uma derrota? A presença da virtude abre o livro, atravessa todas as suas páginas e se coloca à sombra desse pálio confraternizador:

Unamo-nos para honrá-la na sua grandeza e para que ela seja sempre para nós, além do símbolo da Pátria, o símbolo do Bem, da Razão, da Justiça. Só é inatingível o que é impecável; só é forte o que é puro. São as virtudes do povo que tornam sua bandeira respeitada; são os seus trabalhos, os seus empreendimentos, o poder da sua inteligência, a inteireza do seu caráter e a magnanimidade do seu coração, que lhe dão prestígio diante do mundo.

A cada lição um personagem o encarna: a pobre mendiga cega, cega por ter salvo uma criança de um incêndio. Ângelo, o soldado inválido, cheio de cicatrizes no rosto murcho; capaz, no entanto, de pegar a espada e defender os sacos de terra brasileira, guardados como tesouros, da gana de ladrões equivocados. Manoel, o grumete de 12 anos, capaz de salvar da morte o velho André, paralítico e atacado por béribéri. Maria Matilde, a velha louca, que depois de dar a uma jovem necessitada tudo o que tinha, morria feliz, imaginando um sino de ouro e uma torre rutilante que a levaria ao céu:

– O coração do Brasil está parado... quero fazê-lo palpitar com força... Ba-ba-lão...

– Dão! Dão!

Mas havia ainda outros heróis: Rosinha, que devolve uma pulseira de rubi perdida à sua dona. O vigia, que se atira à frente do trem, evitando sua queda no abismo e salvando todos os passageiros. O corcundinha, que ficava lindo porque dentro do corpo mesquinho e doente palpitava uma alma forte. Um preto esfarrapado que, morrendo de fome e frio, foi atendido por uma família solícita e, descobrimos ao final, é a única exceção: um preso evadido da cadeia do Recife. O leitor não consegue saber que crime hediondo cometera, mas o bandido é recapturado e justamente neste momento ficamos sabendo que o seu nome lembra o de um outro preto. Este sim, valente! Henrique Dias que, recebendo uma bala na mão esquerda, na batalha de Porto Calvo, mandou amputá-la e continuou a luta.

Para tanta coragem e tanto sacrifício a única satisfação era a descoberta do sentimento da pátria, que já existia, mas ficava encoberto se as luzes da instrução não o clareassem. As cenas se sucedem dramáticas. Os heróis são geralmente órfãos, o que valoriza mais ainda a força de vontade que vence a adversidade. São solícitos. Cuidam do corpo e da alma. Clarinha, apiedada pelo sofrimento de Carlota, atropelada por um carro, revela as qualidades de boa enfermeira, que devem ser cultivadas com esmero e denotam sempre um excelente coração. Joaquim, apesar da repugnância, cuida de um morfético que, além de morfético, é ladrão. Lava-lhe as feridas e o encoraja a devolver o produto de seu roubo.

A mensagem do livro de leituras é clara: o povo é virtuoso e a virtude homogeneiza (quase) todas as diferenças, quer elas sejam de sexo, idade, espaço ou tempo. A fonte da virtude é uma só: a República, o único regime que, conferindo igualdade política, permitia a qualquer homem, mesmo os de origem obscura e humilde, chegar à Presidência da República ou à propriedade de uma fábrica. Sem nenhuma necessidade de explicar as diferenças concretas entre os homens, Júlia de Almeida Lopes podia se dedicar ao exercício de tocar o leitor para levá-lo às lágrimas.

A história do seu país era a história de um pai, o gigante Brasilião: cabeça febril (o Amazonas), espinha dorsal ereta (Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro), peito que escondia o seu coração (Mato Grosso e Goiás), ventre ubérrimo (Minas Gerais), pernas incansáveis, cortadas pelos trilhos das locomotivas, dando exemplo de prosperidade e energia (São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), um ponto de comunhão (a capital federal).

– Vasco, meu filho, fizeste bem em vir bater em uma escola; vais receber a tua primeira lição.

– O gigante Brasilião é tudo isto: estas montanhas enormes, que são o seu dorso; estas árvores altíssimas, que são os seus músculos; estes rios e mares, que são as suas fertilíssimas veias; este aroma de seiva, que é o seu hálito, e as rochas duras, que são os seus ossos; e mais as noites estreladas, que são os seus sonhos!"

Na metáfora do país-pai a concepção do povo-criança que não morreria de fome nos seus braços e dormiria tranqüilo no seu seio. Um pai bondoso e acolhedor mas que exigia abnegação, esforço, trabalho, amor. Assim como o pai cuidava do filho e procurava ensinar-lhe qualidades morais, caberia ao filho aprender, desde cedo, a saber tudo o que as terras da pátria poderiam oferecer-lhe. Caberia a ele conhecer a alma e o corpo do país onde cada um abria os olhos à luz do dia. No entanto, esta aprendizagem não era feita aos risos ou na displicência da brincadeira. Era preciso disciplina, método, espírito justo e o domínio da língua – o melhor elemento da nossa raça e da nossa nacionalidade.

Na defesa de uma raça virtuosa, Histórias de Nossa Terra criava uma parábola da salvação humana e, por extensão, da salvação nacional, utilizando uma concepção dominante que subordinou boa parte do debate no âmbito da economia, da política e da cultura em nosso país no começo do século. Ao mesmo tempo em que a primeira Constituição republicana garantia formalmente a igualdade política, a noção de raça não só se constituía, mas também legitimava uma prática de manutenção das desigualdades. Não é por acaso que a única exceção nos perfis heróicos desse livro seja o negro evadido da cadeia de Recife.

Os descendentes de africanos, num primeiro momento, e as classes trabalhadoras, maciçamente integradas por imigrantes, num segundo momento, manifestavam-se como presença incômoda. Com a República, à medida que se ampliava a preocupação com a questão Quem somos nós? ampliava-se também a exigência de resposta a uma outra interrogação: Quem são os outros? As respostas formuladas a estas perguntas foram sendo esboçadas nos livros didáticos, nos romances e crônicas da época, nos jornais, nos relatos e nos textos de avaliação do regime republicano.

Quebrar a imagem da virtude projetada pelo espelho dos ideais republicanos é tornar evidente sua ausência, mas de qualquer forma reforçar ainda sua necessidade. É o que fazem os relatórios dos prefeitos, dos diretores de Instrução Pública e os artigos de certos jornalistas que, denunciando a cidade como estigma dos vícios sociais, como corpo carcomido pelas doenças e pelas iniqüidades, fornecem um retrato do país. Ou melhor, fixam de um modo dramático a desilusão iluminista que assolava as elites, preocupadas com a identidade nacional e com a qualidade da sua intervenção numa conjuntura de recriação institucional atenta à proclamação da sua vocação dirigente e à definição da sua tarefa intelectual, como sendo um exercício de investigação e de prevenção ou correção de rumos. O retrato dessa desilusão foi estampado no primeiro estudo colegiado de avaliação do regime republicano: À Margem da História da República (1924).

A necessidade da virtude, quer pela sua afirmação ou negação, encontrou sua referência num modelo organicista que teve na imagem do corpo sua mais ampla analogia. Nesta imagem muitas faces foram construídas. Pensamentos e atitudes cruzaram-se, afirmando uma certa forma de interpretar o Brasil. As metáforas do corpo constituíram o melhor veículo de expressão da necessidade da virtude, a sua forma mais acabada de responder às questões incômodas encarnadas na existência concreta do povo, que a passagem do século trazia vigorosamente à cena. O exercício metafórico transportou, através de uma escrita figurativa, racionalmente ordenada, as características do corpo humano para o país, para a terra, formando uma totalidade carregada de sentido e que teve efeitos não só nas biografias individuais, mas na ordem institucional em contrução nos primeiros anos do novo regime.

Essas metáforas não só produziram simbolicamente uma realidade que se pretendia unívoca, mas também procuraram construir uma coesão ideológica que necessitava dessa estratégia como instância legitimadora das ações sociais. Sua potencialidade dramática em Histórias de Nossa Terra ou em À Margem da História da República não pode ser desprezada pois ela delineia, mesmo que as interpretações estejam em registros diferentes e se distanciem em alguns momentos, um quadro mental do qual os autores extraem seus motivos, seus materiais e seu estilo.

Ambos os textos revelam a idiossincrasia das obras fechadas, isto é, estão mais preocupados com sua definição e seus resultados do que com as relações das quais são portadores, os processos que os constroem ou o campo de probabilidades que os compreendem. Constituem uma mensagem pedagógica, têm uma estrutura monocêntrica e refletem uma lógica da necessidade. Projetam um enredo ancorado na percepção da história como trajetória inevitável que rege a vida dos sujeitos concretos, e que aparece tonalizada pela inflexão própria de quem escreve. Em Histórias de Nossa Terra quem escreve é uma mulher romancista, novelista e contista, com obras isoladas ou em colaboração. Em À Margem da História da República, os autores são jovens intelectuais na faixa etária dos 20 aos 40 anos, que se apresentam como estudiosos dos problemas brasileiros.

"Prometeus acorrentados" pela opinião pública que os esmagava, porque não os lia, como adverte Vicente Licínio Cardoso no prefácio da primeira edição, os intelectuais de À Margem representam os vários estados brasileiros (Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, além da capital federal). Definem-se como "senhores de suas responsabilidades, de suas crenças e de suas opiniões"; "não ortodoxos"; admiradores de Alberto Torres, sem serem "seus discípulos diretos"; republicanos e democratas "na verdadeira acepção do termo".

Os intelectuais que avaliam os primeiros 35 anos de República foram planejadores e criadores de novas instituições. Apesar de terem recebido formação esmerada nos cursos superiores existentes no país (11 eram bacharéis em direito e um engenheiro civil), discutiam as questões relevantes nas redações das revistas e jornais, nas livrarias, nos quartos de pensão e nas associações profissionais ou acadêmicas. Embora se autodefinissem como "independentes", aglutinavam-se em "grupos" que sinalizavam o círculo das relações pessoais, das alianças políticas e eram fundamentais para sua aprovação social. Todos estavam preocupados com a ques-tão da nacionalidade. Dentre eles marcava sua presença aquele que Anísio Teixeira apontou como o primeiro educador profissional do nosso país: Antonio Carneiro Leão.

O livro era definido pelo seu idealizador e primeiro prefaciador como "uma pergunta imensa", uma "afirmação coletiva de idéias, de crenças e de almejos". A educação aparece como problemática obrigatória que deveria sensibilizar a opinião pública nacional com o intuito de republicanizar a República. Não por acaso, já que desde o final do século XIX ela era um dos temas da ordem do dia. Em outro diapasão, Histórias de Nossa Terra, na sua linguagem lírica e na sua intencionalidade de abordar a alma infantil, não apresenta a educação como problema, mas como solução já dada pela efetivação da República.

Ambos os livros, cada um a seu modo, lidam com a questão da mudança de mentalidade, buscando na exemplaridade seu motor de ação. Em ambos as convicções se articulam por um mecanismo de associação de imagens explicitado no vocabulário usado e em esquemas pragmáticos de pensamento diretamente relacionados às ações concretas. Em ambos a mesma vontade de produzir uma espécie de religião cívica.

O que os aproxima, no entanto, também os afasta, já que o objetivo de Júlia Lopes é a ficção sentimental e o objetivo de Vicente Licínio Cardoso e seus companheiros é uma análise histórico-sociológica. Se Júlia busca a fusão país/terra/povo, a análise de À Margem não só discrimina estes elementos, mas parte do suposto da ausência do povo e da necessidade da sua construção pela república educadora. Tinha razão a análise dos intelectuais num ponto: ainda não havíamos superado de todo a natureza. O livro de Júlia é um exemplo dessa não superação. Na figura do gigante Brasilião, a natureza acaba apoteoticamente sobrepujando a cultura e funcionando como síntese emotiva apoiada na suposta naturalidade da relação pai-filho.

Em À Margem ocorre o contrário: a cultura não só ilumina a natureza, mas a transforma radicalmente. Neste sentido, o ponto alto do livro é a emergência do educador nacional capaz de domar a natureza, construir o país e criar o povo. O livro de Júlia apareceu bem antes de À Margem e foi certamente mais lido que ele. Pode ser apreciado como reverberação do clima intelectual de uma época que À Margem fixou tão apaixonada e deliberadamente quanto a própria romancista através de seu livro didático. Histórias de Nossa Terra fez da bandeira a celebração da República. À Margem fez da crítica uma comemoração pelo avesso.

Em À Margem a radicalização da metáfora do corpo como metáfora operatória nos conduz ao centro significante da linguagem organicista: a passividade do sujeito que é, em última instância, a passividade do povo. Nesta alegoria há afinidades que aproximam o registro científico-organicista do registro teológico-religioso. Ambos usam a indução e imagens que buscam construir uma visão unificada.

A imbricação dos dois registros constrói um discurso que não só revivifica o profetismo, mas também reforça uma mentalidade catequética. Pensar o Brasil é primordialmente fazer uma pregação pela educação do povo brasileiro. Esta pregação não é uma blague. Ela é efetivamente acompanhada de esforços concretos dos intelectuais dessa época, presentes em viagens, conferências, projetos de divulgação do ideário, como corporifica a própria trajetória de Vicente Licínio Cardoso e de outros intelectuais que também assinam essa publicação.

Isto nos permite apontar a existência de um ethos pedagógico cujo espírito de conversão, imbuído da sua missão redentora, encontra na mimetização da linguagem evangélica associada à ideologia da cultura brasileira a forma justa de expressão. A força das imagens organicistas reside no fato de elas expressarem certas proposições políticas transfiguradas por uma atitude soteriológica.

Daí a importância de esgotar a densidade oculta na fluidez das metáforas. Elas encarnam, na década de 20 e 30, o sentimento das elites brasileiras de que a educação é o instrumento, por excelência, da integração do país. A fé na ciência foi tão ilimitada que obrigou boa parte da intelectualidade a assumir uma postura muito próxima à do pensamento supersticioso que tanto criticava. É este pensamento mágico que hiperdetermina a reflexão e tece uma trama entre os textos na qual o caos e a desorganização denunciadas pelos autores são, em última instância, uma construção derivada do seu enquadramento analítico. A institucionalização do moderno, no âmbito do Estado, atualizaria o vocabulário, mas nele estariam ainda presentes e vivas as características desse ethos, que as lutas pontuais não conseguiriam abalar.

As imagens práticas do texto elaborado pela geração "que nasceu com a República" trabalham com uma polaridade que opõe, de um lado, natureza/instinto/ povo/passividade e, de outro, cultura/razão/elite/atividade. Como categoria ambígua, a mestiçagem aparece num movimento textual que a empurra ora para o plano da natureza (constatação evidente, corpórea, da desigualdade das raças), ora para o plano da cultura (onde a qualificação espiritual repõe e reforça a desigualdade corpórea). A solução da ambigüidade está posta, no entanto, no plano da cultura que, sobrepondo a natureza, pode tornar o mestiço um temperamento e um caráter. Neste sentido é que a educação penetra na parábola como idéia-força que aproxima a exposição histórica e a cena dramática da degenerescência física, espiritual e moral de um povo.

A concepção de nação pretende, portanto, legitimar uma certa elaboração sobre a sociedade e a cultura. Ela engloba e sintetiza toda a avaliação dos primeiros 35 anos da República. Não é uma configuração simples apesar de expressar-se num discurso monolítico. O caráter fechado do texto emerge da aproximação de diferentes mentalidades: a católico-conservadora, que cobra a militância ardorosa dos seus adeptos, denuncia os erros do individualismo, aponta – via Santo Tomás – a possibilidade de conciliação entre fé e razão e reúne o ideal da elite ao da nação, homogeneizando catolicismo e nacionalidade, e favorecendo a coincidência entre o discurso religioso e o nacionalista; a cientificista, que insiste nos condicionamentos biológicos, sociais e psíquicos do homem e na derivação da sua conduta a partir desses condicionamentos e, neste aspecto, boa parte dos textos estão incluídos; a liberal, que aceita a ciência mas não a considera capaz de criar os valores humanos. É esta vertente liberal que apresenta com clareza a soberania da República e a remodelação do Estado existente; a ufanista, mentalidade recusada e criticada, mas que acaba sendo incorporada quando se admite, por exemplo, que nossa certidão de batismo é a carta de Pero Vaz de Caminha, ou se defende uma postura antiamericana ou mesmo se resvale na cordialidade brasileira expressa nas mudanças políticas sem sangue.

Não nos interessa nominar os representantes de cada tendência, pois os traços indicadores dessas mentalidades aparecem de maneira geralmente imbricada. Um exemplo: certos indícios da mentalidade católico-conservadora são, por vezes, mais palpáveis em escritores que se qualificam como a-religiosos e cientificistas, no estilo de Vicente Licínio Cardoso, mas que consideram Júlio Maria um grande padre brasileiro, do que num católico declarado como Jônathas Serrano que, na década seguinte, colaborou junto ao movimento dos educadores liberais, ou mesmo no apreciador de Jackson de Figueiredo, mas ainda não convertido ao catolicismo, Tristão de Ataíde, que só ingressou na militância católica em 1928, embora já neste livro ofereça uma interpretação espiritualista da história. O ecletismo dos avaliadores acaba conciliando aspectos aparentemente inconciliáveis como a defesa da hierarquização da sociedade e, ao mesmo tempo, da extensão do corpo eleitoral e do voto secreto, no caso de Antonio Carneiro Leão.

Mais importante do que buscar autores e textos representativos desta ou daquela tendência é compreender o que o ecletismo pode sinalizar no discurso monolítico. Ele pode indicar uma sutil e invisível rede de solidariedade e de rupturas entre certas assertivas teológico-político-católicas e as demais assertivas secularizadas. A tentativa de solucionar a tensão de visões presentes nesta rede se explicita num movimento que oscila entre a defesa do cosmopolitismo ou da singularidade; da igualdade ou da desigualdade entre as raças; do pertencimento ou não ao povo americano; da cordialidade ou da luta apaixonada e sangrenta na defesa dos ideais; do sentimento de atração pelo estrangeiro ou a xenofobia declarada; da ciência ou da teologia como fonte de poder; do tradicional ou do moderno.

Notamos que o diagnóstico da doença do corpo do país curiosamente não se resolve na proposta da ação para resgatar a saúde física do corpo trabalhador (sertanejo ou operário citadino) mesmo numa época em que a saúde já era incluída, ao lado da educação, como a receita da cura dos males brasileiros. A apropriação de figuras literárias forjadas na obra de Monteiro Lobato e Euclides da Cunha não enfatiza, sequer resgata, a saúde pública como projeto da nacionalidade. Defender a saúde pública seria defender uma postura que implicaria no abandono da tese de inferioridade racial do brasileiro. Queiram ou não, os autores ainda estão presos numa armadilha da qual só saem por escapismo, ao defender um nacionalismo moralista. É nele que deságua a junção do registro médico-científico e do registro religioso. Cuidar do corpo era, de fato, cuidar do espírito.

Esta junção de registros provenientes de duas tradições diferentes pode também ser lida como astúcia positivista, que via como inútil e até perigosa uma destruição das bases populares da velha fé. Com uma atitude mais maleável em relação à Igreja do que os liberais, os positivistas se dispuseram a usar calculadamente a influência teológica até conseguir sua substituição pela nova crença no progresso e na filosofia positiva, o que permitiu a convergência de certas afirmações entre positivistas e católicos.

Como salienta Roberto Romano, esta convergência não foi fortuita. Deveu-se a uma concordância fundamental quanto à afirmação da infalibilidade do poder e do seu caráter vertical. A forma mística peculiar ao positivismo não deve, portanto, ser tomada apressadamente como mera expressão de uma fraqueza conceitual. Pelo contrário, ela reuniu a experiência irracional e a utilização da ciência na consecução de objetivos políticos bem precisos e que podem ser sintetizados na ambição de fortalecimento do Estado. Positivistas e católicos conceberam doutrinas que partiam da perspectiva da adesão dos dominados. O pressuposto desta adesão era o da clara verticalidade, que reproduzia o sentimento de uma comunhão de consciências fundadas na autoridade. A exigência incondicional desta adesão a priori coloca-se, no texto, de modo imperativo também para o leitor. Pontes de Miranda chega a ser agressivo com os leitores ao afirmar:

Se não sois capazes de sacrificar-vos pelo vosso país, não nos compreendereis leitores e não leiais este artigo, de que sorrireis, como sorriu certo industrial, quando um de nós lhe mostrou a lista de grandes inventores que não quiseram para si os proventos do próprio gênio. Se a pátria não vos interessa, então somos nós que não vos compreendemos, e lastimamos que sejais "ao nível do vegetal" no elegante eufemismo grego.

Nas interpretações do Brasil que se tocam e se opõem na nostalgia dos valores aristocráticos, ou da sua recusa, está situada uma das principais questões do século XIX: a diferenciação entre os homens. Este novo individualismo, marcado pela singularidade, como lembra Lúcia Lippi Oliveira, teve no romantismo um dos seus principais canais de divulgação. Esta forma romântica de conceber a individualidade, diferente da concepção da individualidade iluminista do século XVIII, como adverte Luiz Eduardo Soares, dilui a individualidade orgânica (e não atômica) no Homem, entendido como membro da comunidade, que se completa no todo ordenado hierarquicamente. Daí a natureza da sociedade ser a natureza do homem. A geração que escreveu o primeiro estudo colegiado sobre a República, ao assumir implicitamente o ponto de vista romântico na compreensão do indivíduo, ao mesmo tempo que aproximou e sobrepôs metáforas de tradições de pensamento rivais, reforçou a aproximação entre a imagem do educador e a do herói. Há mesmo uma equivalência entre ambas.

O herói simbolizado pelo professor de matemática Benjamin Constant e por todos os mártires republicanos expressa o refinamento extremo da diferenciação (o herói se destaca de todos os outros) e justifica o apelo aos atos de heroísmo das "elites de nossa raça em formação" na cruzada cívico-educacional. O herói reúne as qualidades do médico (que salva o corpo) e do sacerdote (que salva a alma), além de constituir a alegoria mais adequada à intensidade que assume a educação como solução da degeneração do povo na elaboração de uma obra de caráter coletivo.

A silhueta do herói-educador se destaca no pano de fundo criado pela massa amorfa e pelas elites irresponsáveis. O que o distingue é uma vontade indomável da qual nunca se utiliza em vão, pois o que defende é um bem precioso e inconfundível: a alma do povo. O leitor deve apalpar os seus músculos, enxugar o seu suor, acompanhar a sua respiração, amar e imitar a continuidade dos seus esforços, os seus sonhos de futuro, o seu sentimento de esperança. Poderíamos quase parodiar Walter Benjamin, quando analisa a obra de Baudelaire e as suas alegorias desconcertantes, afirmando que em À Margem da História da República o educador-herói é apresentado em toda a sua força: cheio de sentido, harmonioso e bem construído. No entanto, este herói modelado pela educação e pela cultura está sempre ameaçado: pela incompreensão (que o rotulará de visionário), pelo esquecimento (da história), pela injustiça e pelo desgosto (no plano político e existencial). Pela morte.

Forjar o herói-educador exigia a definição de uma política de formação docente. Esta formação, já na década de 30, na capital política do país, tinha uma história cheia de percalços, de atos pouco nobres e de lances tragicômicos, reveladores da política clientelista então comum. O ingresso crescente das mulheres no mercado de trabalho fez da única Escola Normal existente na cidade do Rio de Janeiro uma disputada via de acesso ao emprego público. Nessa disputa até a apresentação de diplomas fraudulentos era o recurso do qual, em último caso, lançavam mão algumas candidatas desesperadas para obter um cargo no funcionalismo. Essa distorção era, em última instância, incentivada pela máquina política que distribuía favores (nomeações, licenças sem vencimento, aposentadorias com leis especiais, gratificações adicionais) em troca de votos.

A Lei do Ensino, aprovada em 1928 após tumultuada trajetória na Câmara de Vereadores, liderados por Fernando de Azevedo, Diretor da Instrução Pública nesse momento, simbolizava a vitória de uma postura: a do grupo de técnicos paulistas que, apesar da aliança com técnicos cariocas, era ostensivamente criticada pelos jornais da cidade. O episódio mais rumoroso dessa crítica foi, sem dúvida, a realização do recenseamento escolar, considerado desnecessário em face do recenseamento geral de 1920. A aprovação dessa lei fortaleceu e concentrou o poder decisório nas mãos do diretor de Instrução. Teve efeitos imediatos. Os mais importantes desses efeitos foram a estruturação de uma carreira do magistério, cujo princípio básico era o concurso público, e a proibição da adaptação de residências particulares em prédios escolares. Na gestão de Fernando de Azevedo (1928-31) efetivou-se a assinatura de 16 contratos para a construção de prédios escolares no valor de 15 mil contos.

A construção desses prédios é mais do que a tentativa de solucionar os problemas da demanda escolar existente e controlar os acessos da política eleitoreira dos intendentes. É também manifestação da construção de uma nova mentalidade que distingue, na tarefa educativa, as funções da família e da escola. Nesta distinção, o trabalho pedagógico escolar aparece como predominantemente cívico. O edifício público escolar deveria lembrar a quem o apreciasse a nossa raça, o nosso país. Esta tese apresentada pelo Dr. José Marianno Filho na segunda Conferência Nacional de Educação realizada no ano de 1928, em Belo Horizonte, teve imediato sucesso e norteou a escolha do estilo neocolonial nas edificações escolares do Distrito Federal, já no final dessa mesma década. O neocolonial tornou-se o símbolo unificador da cultura. Sua maior expressão em termos de edificação escolar foi, sem dúvida, o prédio da Escola Normal, exemplo de solidez, nobreza e dignidade.

O novo prédio da Escola Normal, na descrição de Liéte de Oliveira Accácio, ocupou grande área. Seu pátio interno, grandioso e à semelhança de um claustro, foi circundado por galerias arqueadas que funcionavam como área de circulação para sala de aula, gabinetes e laboratórios. Nas laterais da fachada principal ergueram-se o auditorium e o ginásio. Próximo ao ginásio ficavam, na década de 30, as salas reservadas ao serviço médico e dentário. Os três pavimentos do corpo central do edifício abrigavam dependências de ensino e administração. No ano de 1933 esta área estava ocupada por 64 salas de aulas e laboratórios, 14 salas para administração e três para bibliotecas. A reunião, no mesmo conjunto, do prédio da Escola Normal e do prédio da Escola de Aplicação denota a importância que a Prática de Ensino ganhava na concepção da formação docente.

A descrição anterior é significativa na medida em que mostra a aproximação entre o projeto arquitetônico da Escola Normal e o projeto veiculado pela pedagogia arquitetônica jesuítica.

Com exceção das Escolas Argentina e Uruguai, todas as outras escolas construídas na gestão de Fernando de Azevedo, incluindo a Escola Normal, obedeceram ao modelo das plantas dos colégios, seminários ou residências jesuítas da Colônia, isto é, o da quadra com seu pátio interno circundado por galerias avarandadas, que faziam a circulação entre ambientes.

Como conciliar a arquitetura tradicional com a pedagogia da Escola Nova? Beatriz Santos de Oliveira, respondendo a esta questão, afirma que a planta jesuítica teria correspondido aos objetivos funcionais da reforma azevediana: o equilíbrio entre a vida ativa e a vida ascética, cerne de um novo apostolado regado a uma cultura humanista que adotava as contribuições da ciência, mas se sedimentava nos valores morais do passado. No prédio escolar: a encarnação das contradições do próprio educador, ex-seminarista do colégio jesuíta de Friburgo? Em parte. Tem razão a autora, embora o desdobramento de sua afirmação, que aliás ela não realiza, seja decisivo para compreendermos as contradições da própria Escola Nova no espaço da cidade do Rio de Janeiro. Permaneçamos por ora com Lourenço Filho e sua frase de efeito: Professar é servir!

Pensariam assim as normalistas, dentro do seu impecável uniforme azul e branco (instituído em 1915), desfilando pelas ruas da Tijuca e pela praça da Bandeira? Donas-de-casa. Esposas de presidentes, de políticos influentes, atrizes, poetisas, jornalistas, ativistas. E professoras. A predominância feminina na Escola Normal do Distrito Federal já era patente desde o começo do século, onde a necessidade material e o incentivo oferecido pela Igreja, que começava a admitir o trabalho feminino fora do lar para solucionar a questão da mão-de-obra das suas escolas, que não admitiam a co-educação, levava as mulheres a procurarem uma instrução que lhes garantisse tanto a cultura geral como o acesso à profissão docente.

Nas décadas de 20 e 30 a perspectiva liberal, que passou a orientar a política de formação de professores, abandonou o padrão francês e propôs a revisão do papel feminino, tornando mais complexo e elaborado o exercício do magistério que, até então, era tomado apenas como extensão da tarefa moral e social da preservação familiar. Este ideal, porém, permaneceu, embora matizado e conseqüentemente modificado pelo ponto de vista das ciências aplicadas à educação e suas técnicas pedagógicas. A este ponto voltaremos oportunamente.

Entre 1927 e 1937, a antiga Escola Normal ganhou um prédio próprio. Transformou-se num Instituto de Educação, tendo elevado seus estudos a nível superior. Forjou, pelo seu processo seletivo e de organização didática e pedagógica, uma nova identidade. Não foi pouco!

A descrição meticulosa que Liéte de Oliveira Accácio faz do Instituto de Educação, do ponto de vista do seu processo de seleção dos alunos, de contratação dos professores da organização das atividades pedagógicas e extraclasse mostra-nos aspectos significativos dentre os quais selecionamos os mais pertinentes à nossa análise, relativos já à década de 30.

Em primeiro lugar, o Instituto de Educação foi muito mais do que a antiga e isolada Escola Normal pois, ao manter a separação entre curso geral e preparatório e o curso profissionalizante ou pedagógico, desdobrou-se numa Escola Secundária, equiparada – apesar das resistências do Conselho Nacional de Educação – à Escola Secundária do Colégio Pedro II; numa Escola de Professores, que se incorporaria à Universidade do Distrito Federal em 1935, e numa Escola de Aplicação que havia sido criada em 1914, mas que só em 1915 teria, de fato, se anexado à antiga Escola Normal. Tornou-se, portanto, um complexo educativo, que reunia cursos do jardim de infância à universidade.

Em segundo lugar, recebeu alunas de proveniência social diversa, apesar do seu rigoroso exame de seleção que incluía testes de escolaridade, testes de inteligência e exames detalhados de saúde. Ingressavam no Instituto de Educação meninas pobres provenientes não só de Bangu, Jacarepaguá, Cascadura, Deodoro, Piedade, Engenho de Dentro, Madureira, Irajá, Realengo, Santa Cruz, Marechal Hermes, Campo Grande, Braz de Pina, Del Castilho, Rocha Miranda e até São João do Meriti, Nilópolis, Turiaçú, Niterói e Ilha do Governador, mas também dos bairros de classe média da Zona Sul e da Zona Norte carioca. A Caixa Escolar, doando sigilosamente o uniforme completo e todo material pedagógico, apagava, pelo menos provisoriamente, no interior da escola, as marcas da origem social. Ninguém sabia, segundo depoimento de ex-alunas da instituição, quem eram as "alunas da caixa".

Em terceiro lugar, o Instituto criou um ritual de valorização dos seus alunos que começava pelas exigências do seu processo de seleção e culminava com o processo da escolha do pessoal docente. A exigência mais significativa, na seleção discente, era a que só permitia o ingresso, na Escola de Professores, daqueles que já haviam cursado sua própria Escola Secundária. Sem admitir transferência de alunos, o processo de seleção ocorria, de fato, no exame de admissão aos estudos secundários oferecidos pelo Instituto e que passaram a colocar inúmeras famílias em polvorosa pelo fato de, ano a ano, diminuir o número de aprovações.

Apesar da equivalência ao Colégio Pedro II, o Instituto de Educação caracterizou-se pelo seu sistema fechado. Já dentro da instituição, as turmas eram separadas pelo nível obtido nos testes de escolaridade e inteligência, que marcavam uma estratificação interna, submetida à mobilidade dos resultados escolares. O maior desgaste emocional ficava por conta da "turma dos gazes nobres", a que tendo obtido as maiores notas não se misturava com as demais, correndo o risco de ser rebaixada caso não mantivesse a performance, o que deixava suas alunas em estado de permanente tensão. Já no processo de escolha dos professores do Instituto de Educação, que passou a ser realizada através de concursos públicos, duas exigências se impunham: a elaboração de tese e a prova de aula.

Em quarto lugar, as mudanças curriculares e programáticas, estudadas detalhadamente por Liéte de Oliveira Accácio, apenas nos interessam na medida em que evidenciam:

– a vontade homogeneizadora, no que diz respeito à metodologia, ao agrupamento da classe e à avaliação escolar e que convive com a diversificação, permitindo não só a especialização disciplinar, mas seu controle através das diversas seções do currículo (Biologia Educacional e Higiene; Educação; Matérias de Ensino: Desenho, Artes Industriais e Domésticas; Música; Educação Física, Recreação e Jogos e Prática do Ensino) que, por sua vez, dividiam-se em cursos;

– a modificação do significado do caráter cívico e moral do curso, que passa a se referir mais ao problema do uso da liberdade e da autoridade do professor e a desenvolver, via Filosofia, a noção de responsabilidade pessoal e social;

– a valorização da conquista da autonomia pelo aluno e não o afrouxamento disciplinar ou a desvalorização do conteúdo que têm sido recorrente e equivocadamente apresentados como aspectos caracterizadores da Escola Nova na literatura pedagógica;

– a possibilidade de elaboração de trabalhos de investigação própria (pesquisa experimental ou estatística; pesquisa bibliográfica ou inquérito social) como elemento de avaliação do aluno no curso.

Estas modificações parecem distanciar-se daquela epopéia nacionalista dos intelectuais do final do século XIX e do começo do século XX e em cujo bojo pressupunha-se que a Instrução Moral e Cívica preparasse o professor, como alegava a ex-aluna da Escola Normal, Alba Cañizares Nascimento, em 1929, para a obra de formação espiritual do povo. O Instituto de Educação do Rio de Janeiro, tendo substituído o paradigma francês pelo norte-americano, acabava seguindo a experiência paulista de formação docente. Voltado especialmente para a formação feminina procurou substituir a ideologia do beatério pela ideologia do estudo dos problemas da vida prática, o que, em última instância, ainda valorizava o papel da mulher e, através dela, dos grupos familiares na educação.

O objetivo dessa nova cruzada pedagógica era a irradiação, para a cidade, da possibilidade de propagação da atividade educadora de pais e professores. Se a criança ou o adolescente eram vistos como elementos de ligação entre a escola e a família, o passo seguinte seria estreitar esta comunicação pela difusão de círculos de pais e mestres nas áreas urbanas. Mesmo nos mais afastados subúrbios, certos depoimentos docentes evidenciam como, na década de 30, os professores, além dos trabalhos pedagógicos, revezavam-se acumulando tarefas nos mais diversos clubes: agrícola, de saúde, desportivo, da leitura, pan-americano, etc. Os dados estatísticos do Ministério da Educação e Saúde mostram que, em 1933, o Distrito Federal possuía 98 clubes de leitura, 20 clubes esportivos, 19 obras de escotismo, sete ligas da bondade e 88 associações de pais e mestres.

Se os problemas práticos do ponto de vista pedagógico eram tratados por novas disciplinas como a Prática do Ensino, encarada como o teste definitivo do preparo dos alunos da Escola de Professores, a associação dos estudantes do Instituto era incentivada e gerou a criação do Clube Desportivo, que promovia festas, sessões de cinema, atividades esportivas e contava com o estímulo e apoio de professores como Edgard Sussekind de Mendonça, do diretor da Escola Secundária, professor Mário de Brito, e do diretor do próprio Instituto, Lourenço Filho.

O que procurarmos assinalar e o que propomos como mais significativo no processo de renovação da formação docente é que essa renovação foi combinada a uma séria tentativa de reforma do espírito público no interior das famílias, dentro de uma estratégia, nem sempre bem-sucedida, que buscava, como assinala um relatório da Escola General Trompowsky, fazer penetrar mais rapidamente no meio social o espírito da nova educação com o intuito de solucionar o conflito de alguma forma manifesto no seio das famílias cariocas, surpresas e muitas vezes assustadas e descrentes com a performance das escolas.

O controle do Instituto de Educação pelos intelectuais liberais foi sempre um motivo de grande ameaça para a Igreja Católica, apesar de alguns notórios docentes serem católicos praticantes como Jônathas Serrano ou o diretor da Escola Secundária e ex-diretor da Escola Normal Carlos Accioly de Sá. Quando a crise de 1935 expurgou os liberais dos seus cargos e funções na burocracia estatal, os católicos apressaram-se a reintroduzir o ensino religioso nessa instituição com as designações de superintendente e coordenadores incumbidos de sua organização e do padre Helder Câmara para exercer as funções de docente da Escola de Professores, já em maio de 1936. É que do ponto de vista da Igreja, como já defendera o Dr. Roberto de Almeida Cunha, na Primeira Conferência Nacional de Educação (1927), idealizada pelo também católico Fernando de Magalhães, caberia ao Estado orientar o ensino religioso se quisesse preencher seu papel de educador, pois o povo brasileiro era e ainda seria, por muitas gerações, profundamente católico.

A defesa das crianças contra o materialismo (liberal e comunista) sobre as quais a Igreja julgava ter adquirido direitos sagrados desde o dia do batismo, estaria assegurada nas mãos das educadoras. A elas a Igreja destinava a missão civilizadora e formativa apoiada nas virtudes femininas da paciência, da piedade, do sentido do valor da pessoa concreta e da fidelidade à família e à Igreja. Ao invés de Benjamin Constant, uma curiosa combinação do espírito gentil de Anchieta com o gênio atualizado de Caetano de Campos mostrava que a profissão docente era um sacerdócio, não apenas pelo ideal que devia guiar os seus obreiros, mas pela renúncia, desprendimento e desinteresse pessoal que lhes seriam os mais característicos atributos. O altar e o laboratório imbricariam, mais uma vez, no papel docente, a figura do sacerdote e a do médico.

3. A escola reinventa o moderno

A escola carioca como palco de reinvenção do moderno condensa as contradições da cidade. Uma delas se expressa na sua relação com o tempo. Todo o período que se autodenomina moderno permanece obcecado pelo passado. Seus agentes procuram criar métodos científicos rigorosos para o seu estudo ao mesmo tempo em que mantém com ele certa ligação alienada. É possível pensar que, na modernidade, o moderno e o tradicional são complementares entre si e fazem sentido na sua oposição. No entanto, apesar de complementares, não são simétricos. A assimetria aparece justamente na relação que ambos mantêm com o tempo.

Neste sentido, o moderno pode ser visto como a expressão do que tem o tempo a seu favor, o que avança, e a tradição como a expressão do que luta contra o tempo, o que resiste. Em ambos ocorre a projeção de um futuro em que um dos lados irá obrigatoriamente desaparecer. Nesta situação, o presente é percebido na sua instabilidade e transitoriedade. É uma passagem, e como tal está em permanente estado de tensão. Esta tensão temporal é encarnada no espaço. Ele passa a ser recortado por oposições que jogam com a polarização entre o moderno e o tradicional, criando um simbolismo geográfico específico que se reflete na noção de espaço escolar. Até que ponto os prédios escolares construídos na capital política do país, do final da década de 20 a meados da década de 30 simbolizaram o locus de expressão do moderno?

Entre os anos de 1934 e 1935 foram construídos 25 prédios escolares, construções econômicas, nítidas, das quais todo o supérfluo foi eliminado e que corporificaram a necessidade de reinvenção do espaço público a serviço dos objetivos da consciência pedagógica em plena construção. Neste sentido, os prédios escolares foram gestos intencionais que pretenderam criar novos comportamentos e sentimentos diante da escola, expandindo-a para fora e além dela.

Sem dúvida, a arquitetura escolar era uma evidência da inventividade que expôs à cidade e ao país a nossa primeira Arquitetura Moderna oficial e junto com ela divulgou a pintura moderna representada pelos murais de Di Cavalcanti e de Georgina de Albuquerque.

Ao contrário do que muitos ainda acreditam, como argumenta Beatriz Santos de Oliveira, não foi Le Corbusier que abriu, entre nós, as frentes do movimento moderno no plano arquitetônico. A produção dos nossos arquitetos, em que pese a influência de Le Corbusier, foi matizada pela peculiaridade de nunca assumir radicalmente a proposta inovadora da vanguarda modernista e se identificar muito mais com o Art Decô. Foi essa proposta de prédio escolar que se difundiu pelas ruas da cidade carioca e de outras cidades brasileiras, corporificando-se nos edifícios e nas residências de classe média das nossas capitais.

Sem uma ruptura com o tradicional, os arquitetos optaram pelo esgarçamento da sua trama, buscando a conciliação na contradição vivida pela sociedade na década de 30 e espelhada na escola entre um presente-quase-passado, agrário e familiar, e um presente-quase-futuro, urbano e coletivo. A nova arquitetura escolar, pelas mãos de Anísio Teixeira, construiu-se absolutamente defensável dentro do novo espírito técnico identificado como uma arquitetura racional e funcional. As construções projetadas por Enéas Trigueiro Silva destacavam antigas questões relativas à salubridade, à higiene e à economia. Ainda o sonho eugênico, desenvolvido a partir da concepção funcional cujo alvo predileto era a saúde social. Neste sentido, a escola foi um dos temas privilegiados pela arquitetura ao lado dos bairros operários, dos hospitais, dos sanatórios, dos hotéis e das indústrias.

No âmbito da arquitetura internacional e nacional a escola foi tão importante que monopolizou exposições específicas, a atenção de revistas especializadas e inquéritos. A própria Associação Brasileira de Educação organizou, em 1934, a primeira exposição de arquitetura escolar.

A exposição de arquitetura escolar da Associação Brasileira de Educação foi acompanhada de um invejável programa de palestras cujo objetivo era mostrar o entrosamento necessário entre ensino e arquitetura. Se este entrosamento era fundamental na hora de erguer os prédios escolares, os obstáculos da realização provocavam diversas traições à ortodoxia funcionalista, quer por pressões de ordem econômica, quer pelo estágio pouco desenvolvido das nossas tecnologias ou por fatores de ordem cultural e social que criavam um hiato entre o modelo inspirador e a encarnação do projeto. Mesmo traído, o funcionalismo inaugurou uma nova linguagem.

Essa nova linguagem dizia respeito à concepção de equilíbrio do projeto arquitetônico que se diferenciava daquela outra concepção modelar, a arquitetura das residências e escolas jesuítas. Estas concebiam o equilíbrio entre desiguais a partir do pensamento aristotélico-tomista. Este pensamento estabelecia uma analogia entre as coisas segundo um critério de proporcionalidade entre as propriedades nelas semelhantes. Em decorrência, o que definia o lugar de um objeto em relação ao outro, era a maior ou menor quantidade de certos atributos nele presentes. Essa analogia proporcional definia um tipo de organização hierárquica que se expressava através do desenho, de eixos, simetrias e ordens, elementos preservadores da estabilidade não só da composição arquitetônica, mas também da ordem social.

Já no projeto arquitetônico racional-funcionalista, o equilíbrio obedecia à concepção de proporcionalidade do ideário da ideologia-liberal, isto é, ela seria estabelecida na tensão entre o poder coletivo e o poder dos cidadãos. Esta tensão, que significava mobilidade, já antecipava porém o seu próprio nível de rigidez, uma vez que era apoiada na meritocracia: a cada um o seu lugar de acordo com o seu mérito. Há no fundo dessa postura uma notável aproximação com a concepção de equilíbrio anterior, já que a distribuição dos elementos deste projeto arquitetônico é também graduada em níveis de subordinação encarnados na localização hierárquico-administrativa dos seus ambientes.

O interessante é que esta arquitetura, ao mesmo tempo que mantinha a função disciplinadora do projeto arquitetônico jesuíta, elevava o potencial de trabalho, capitalizando o tempo no cálculo dos espaços ocupados ou percorridos. Associava-se, portanto, a flexibilidade do uso à rigidez do formato. Ambas alcançavam uma caracterização estético-formal comprometida com a moda "moderna". Isto é, o efeito da forma era moderno, mas não propriamente a sua função, o que nos leva a afirmar que, na arquitetura moderna das escalas públicas cariocas, persistiu, apesar das diferenças observáveis, uma atitude contemplativa.

A ambigüidade padronização/flexibilidade, presente na elaboração do objeto standard (um padrão de forma, dimensão e arranjo que, associado a regras de eficiência de fluxo e afinidades funcionais, constituía uma planta modelo), encarnava uma contradição de significativo efeito: especializava o produto (escola) num modelo de eficiência técnica, enrijecendo-se, no entanto, o processo de invenção que por sua própria natureza recusava qualquer valor fixo. A realidade era homogeneizada, quando a premissa da condição moderna era justamente a heterogeneidade. É esta contradição que produz a percepção, também ambígua, de mudança e continuidade. Parece que pelo menos no plano arquitetônico as opções modernas permaneceram no horizonte de uma racionalidade utópica, herdeira de uma tradição clássica de caráter idealista.

É o efeito moderno que permite a Beatriz Santos de Oliveira estabelecer a relação entre os parentescos formais e visuais de Hollywood, Paris e Viena com a morfologia das escolas públicas. De sua análise interessa-nos ressaltar o primeiro parentesco. É ele que nos ajuda a entender a aceitação da arquitetura escolar e a sua difusão na cidade. Essa arquitetura significou a quebra com o passado rural e a inserção do cotidiano urbano no mundo da fantasia citadina e refinada dos filmes de Hollywood, o que levava Oswald de Andrade, na década de 30, a comentar que o poder sugestivo e sedutor do cinema cativava o povo para essas novas formas.

De fato o cinema havia conquistado a capital carioca já no inicio da década de 30. Em pleno coração da cidade coexistiam e prosperavam cinemas de luxo que funcionavam diariamente das 13 às 24 horas, sempre repletos, atraentes e promissores de novas emoções. Era sensível o seu progresso técnico, fosse na tela muda, fosse na película sonora.

O cinema valia pelo que revelava, pelo que divulgava. Era uma espécie de academia de altos estudos, como asseveravam alguns, apresentando as novas descobertas, difundindo conhecimentos científicos, contendo ensinamentos filosóficos e psicológicos, mostrando os perigos do vício e as vantagens da virtude, deixando impressão mais forte do que as fábulas de La Fontaine. Se certos intelectuais do momento reuniam, na sua apreciação sobre o cinema, a diversão e o ensino, nem todos o faziam. Havia quem distinguisse o cinema recreativo do educativo, dedicando-se exclusivamente a fazer a apologia do cinema educador, parido em 1898, quando o jovem médico Dr. Doyen permitiu que o cinematógrafo reproduzisse uma de suas operações. Paris havia recebido a iniciativa com surpresa. Quase escândalo!

Vinte e um anos após a invenção do cinema educativo, a Escola José Alencar, no largo do Machado, apresentava com grande sucesso uma exposição cinematográfica cujo objetivo era apreciar o valor pedagógico do cinema, via demonstração prática dos aparelhos de projeção fixa e projeção animada. A exposição foi visitada por inúmeras pessoas e teve boa receptividade junto à imprensa. Os visitantes se espantavam e confessavam sua total ignorância sobre o que fosse a diascopia, episcopia e outras minúcias técnicas. Quantas possibilidades o cinema trazia! A geografia animada. As noções de higiene. A substituição da lição de coisas pelos estudos da natureza e outros temas vivos do cotidiano infantil. Até certos ramos da matemática, como a geometria, passavam a ser alvo das investidas do cinema. Do recinto privilegiado dos laboratórios para as grandes telas, o cinema alcançava o grande público. Era maravilhoso e, ao mesmo tempo, aterrador.

Apesar do "perigo", não havia como segurar a influência do cinema na vida das cidades. Eram inegáveis também suas vantagens pedagógicas ao dominar o tempo, o espaço, o movimento e a extensão. Ver na mesma área da tela uma rede de microorganismos ou uma cadeia de montanhas. Observar em minutos a germinação de uma semente. Viajar para outros países e "contatar" sua gente e seus costumes. Aprender como se vencem as chamas de um incêndio. Ouvir os leaders nacionais e receber a inspiração de suas qualidades oratórias.

O cinema já estava em toda parte com sua aura de ubiqüidade, coordenando magicamente as imagens, ensinando a ver e a ouvir, gravando, ligando, separando, reunindo, intercalando, encadeando. Uma verdadeira força na formação da mentalidade. O novo sangue pedagógico, como queria o prof. J. O. Orlandi, circulava nas escolas através das cinematecas. Este sangue novo não vinha só do cinema. Vinha também do novo uso do espaço escolar, do rádio e dos livros didáticos que acarretaram verdadeiro boom editorial na década de 30.

A nova arquitetura promoveu a expansão regulada das atividades corporais ao incorporar às salas de aula os anfiteatros, a biblioteca, as salas de leitura, o refeitório, os jardins, as "áreas livres". Na leitura de quem freqüentou essas instalações, particularmente as crianças mais pobres, a existência desses locais funcionou não como um código de confinamento, mas de reapropriação de espaços de sociabilidade crescentemente sonegados às classes trabalhadoras pelas reformas urbanas que lhes empurravam para os morros ou a periferia da cidade.

As vozes educadoras partiam da Rádio Municipal PRD5 atravessando as paredes dos lares cariocas e explicando aos pais como e por que se educavam as crianças de uma nova maneira. Continuaram e reforçaram as atividades escolares. Catalizaram interesses e divulgaram os serviços públicos convocando a população a utilizá-los. A rádiodifusão educativa interferia diretamente na cultura popular que era, sobretudo, oral.

Se no começo do século houve grande diversificação dos livros didáticos destinados ao ensino primário, já na década de 30 os livros destinados ao ensino secundário se expandiram em grande escala acompanhando o crescimento deste nível de ensino. A produção dos livros nacionais se ampliou com a crise de 1929, que levou ao decréscimo significativo da importação de livros estrangeiros. Como salienta Luis Reznik, o caráter quase proibitivo dessa importação colocou em suspenso o que até então era comum: o uso de livros estrangeiros para as várias disciplinas do secundário. A seriação rígida desse nível de ensino, obrigando o uso de livros parcelados, gerou a perspectiva de lucro certo para o mercado editorial, que passou a encomendar aos autores os livros que seriam editados.79

Ao analisar a atmosfera de fervor que caracterizou os anos 30 no plano da cultura, Antonio Candido destaca a importância das editoras que passaram a produzir uma literatura didática ajustada aos novos programas e aos ideais das reformas educacionais. Neste sentido, destaca a Companhia Editora Nacional, sucessora de Monteiro Lobato & Cia., que se notabilizou pela Biblioteca Pedagógica Brasileira, idealizada e durante muito tempo dirigida por Fernando de Azevedo, e cujos títulos abrangiam além da coleção didática, atualidades pedagógicas, divulgação científica, literatura infantil e os famosos estudos brasileiros que vieram a constituir a não menos famosa coleção Brasiliana.80

No Rio, a José Olympio, instalada na antiga rua do Ouvidor, aglutinava, de 1933 a 1934, toda a legião de "estrangeiros" que, vindos de diversos estados brasileiros, ensaiavam sua vida pública na capital do país. A José Olympio editou todos os livros políticos da direita, os romancistas da esquerda e alguns dos nossos educadores mais renomados, acalentando os sonhos desses homens que embalavam todas as novidades do mundo moderno. As capas dos livros desta editora, criadas sobretudo por Santa Rosa, com a mancha colorida e o desenho central em branco e preto, tornaram-se, como lembra Antonio Candido, o símbolo da renovação incorporada ao gosto público.81

Dentro deste movimento editorial interessa-nos chamar a atenção para um aspecto específico. O livro didático, como adverte Reznick, enquanto professor coletivo que dissemina um discurso tornado senso comum no interior da comunidade escolar e da própria sociedade, torna-se foco privilegiado para que se estabeleçam, a partir da atividade de sala de aula, as conexões entre Estado e Sociedade. No estudo que este autor faz sobre o ensino de história, ele demonstra não só a ênfase que a História ganha, no conjunto das disciplinas escolares no âmbito da renovação do ensino secundário, mas também como certos autores importantes do período, a exemplo de Delgado de Carvalho, baseiam sua argumentação em torno de um novo ensino da história. Apoiado no conceito-chave de experiência como fundamento da ação educativa, Delgado de Carvalho cria uma metodologia de ensino que, através de suas sugestões e procedimentos, procura facilitar a ligação presente e passado. Esta metodologia encontrava seu apoio na história biográfica que, humanizando as situações históricas, concretizava para o aluno das séries iniciais a vinculação entre o meio social e o herói biografado, buscando resgatar no movimento da história (evidentemente pela comparação) o cotidiano material e cultural, que não só facilitaria a conexão desejada, mas também serviria para demonstrar o progresso da humanidade.82

Privilegiada no âmbito das disciplinas escolares, a história era, no entanto, estigmatizada junto a certos defensores do cinema educativo, que desaconselhavam fortemente a elaboração de películas de restauração histórica. Apoiados nas ponderações de autoridades francesas, educadores brasileiros como Jônathas Serrano e Francisco Venâncio Filho admitiam, quando muito, a geografia histórica. Quem sabe se, sob a documentação de um Affonso Taunay, não seria possível a realização de filmes do tipo Roteiro dos Bandeirantes ou a História do Açúcar? Na discussão sobre o cinema educativo, a que Jônathas Serrano se dedicava desde 1913, aparecem os mesmos temas recorrentes dentro do discurso conservador da ala dos autores de livros didáticos históricos, da qual ele era aliás um representante bem-sucedido: a realidade e a especificidade brasileiras.83

A introdução do cinema e do rádio educativos, o incentivo e a ampliação da locomoção nos novos espaços escolares, a utilização crescente das bibliotecas, que passavam também a serem criadas nas escolas primárias, e o boom de livros didáticos e infantis criavam uma abundância de possibilidades centrada na circulação de pessoas, imagens e idéias. Configurava-se um cenário próprio do moderno, que promovia alterações não só nas práticas escolares, mas também na concepção de controle da instituição escolar. Causavam, ainda, certo espanto e resistências dos usuários, pouco afeitos às modificações que se sucediam vertiginosamente.

No relatório que a professora Juracy Silveira, então diretora da Escola Vicente Licínio Cardoso, apresenta à Diretoria Geral de Instrução Pública, em 1933, alguns desses elementos aparecem com clareza. Vejamos, por exemplo, a circulação dos alunos via uso do elevador.

A instalação da escola no quinto andar do edifício de A Noite inspirou aos pais, pouco habituados aos usos de elevadores, certo receio, ainda mais agravado pela campanha de alguns jornais. Nos primeiros dias, tive a escola invadida pelas mães que desejavam acompanhar os filhos até as salas de aula dificultando a entrada e a saída dos alunos. Satisfazendo, com solicitude, os pedidos de informação e, não raro, fazendo demonstrações práticas, foi-me possível normalizar a situação.84

O caso do elevador é interessante porque a ascensão vertical, na visão de arquitetos como Nereu Sampaio e Gabriel Fernandes, projetistas das escolas Argentina e Uruguai, na gestão Fernando de Azevedo, figurava não só como meio de simplificação e comodidade de transporte, mas também como auxiliar da disciplina. Ambos chegaram a fazer várias experiências em cabines de 1,6m x 2,00m cedidas pela Light and Power e haviam verificado a possibilidade de transportar com segurança até 30 crianças acompanhadas do cabineiro e da professora. A grande vantagem era, portanto, a diminuição do número de viagens com o conseqüente ganho de tempo. O que eles não haviam previsto era o medo que os pais dos alunos teriam dessa novidade.

Outro aspecto significativo do relato da professora Juracy é o efeito do trabalho da biblioteca escolar que, na sua gestão, havia merecido prioridade e alcançado largas compensações. Iniciada com 25 volumes, seu acervo alcançou rapidamente 102 exemplares por solicitação dos próprios alunos. O bom resultado da biblioteca não era apenas medido pela ampliação do acervo. Era também ascultado pelos bons resultados dos testes dos estudantes da terceira e quarta séries em compreensão (leitura silenciosa) e redação.

A diretora apresentava como motivos do êxito desse trabalho as seguintes medidas: leitura e narração de histórias; supressão de qualquer exigência formal no contato com o livro, que ficava ao alcance do desejo e das mãos dos alunos, em estantes abertas, onde podiam escolhê-los à vontade; a criação de uma hora livre no dia escolar e a nova orientação dada ao ensino da leitura visando o seu objetivo maior de compreender. O aspecto fundamental desse depoimento sobre a biblioteca é a revelação da ênfase no exercício de uma nova prática de leitura nas escolas cariocas: a leitura individualizada. Com esta intencionalidade a diretora Juracy supervisionava e orientava o trabalho das professoras.

A leitura individualizada não eliminou a prática da leitura coletiva e oral já existente, mas conviveu com ela e ao lado de novidades como a leitura dirigida, a leitura espontânea, a leitura recreativa, a leitura em coro, a leitura incidental e a leitura dramatizada. A distinção e o desdobramento das atividades de leitura tinha o objetivo de construir não apenas o leitor, mas o decifrador de uma cultura urbana em constante transformação.

Um dos resultados desta e outras práticas da Escola Vicente Licínio foi a alta freqüência dos alunos durante todo o ano, chegando ao seu pico nos meses de novembro e dezembro. Segundo Juracy Silveira, muito teria contribuído para o sucesso da freqüência nos últimos meses do ano o estimulo provocado pela competição entre as classes.

Pelo relato da professora Juracy Silveira percebe-se que, apesar das resistências e dificuldades (insuficiência de mesas para os alunos e tinteiros, por exemplo), a escola mudava. Deixava de ser tão sizuda! Na sala de aula, sobre a mesa, nas estantes, nas paredes, havia um pouco de alegria e vida. É que a escuridão do quadro-negro passava a ser povoada por estampas. Essas estampas, muitas vezes penduradas em cavaletes, tornaram-se recurso indispensável para a aprendizagem da redação e proliferaram, não apenas nas escolas primárias cariocas, mas também nas escolas paulistas ou pernambucanas. Eram comuns não apenas nas escolas das cidades, mas também do interior.85

Ao lado das figuras, o placar dos acontecimentos escolares anunciava os aniversários, as doenças, as despedidas, os tombos, os resumos dos trabalhos de classe, as visitas, os livros novos. Os alunos novos. O corpo de inspetores sanitários (alunos para tal grupo designados) cuidava da conservação do asseio das salas, do mobiliário e dos alunos menores, a quem cortavam as unhas e lavavam as mãos "com responsabilidade e desvelo".

A merenda, depois de um inquérito que apurou a quase total ausência de frutas e leite na alimentação das crianças, priorizou a banana, a laranja e o queijo, muito bem aceitos pelos alunos. A eleição dos livros mais queridos (O Saci, Zé macaco e Faustina e Histórias Maravilhosas), o relaxamento da exigência do horário para as crianças trabalhadoras e a ajuda das estagiárias no ensino de pequenos grupos que apresentavam dificuldade de aprendizagem e disciplina criavam um clima escolar menos paralisado pelos problemas cotidianos. A preparação para a ação, em 1934, do Círculo de Pais da escola, já colocava a diretora em contato com muitos deles, educando-os para a futura colaboração que deles a escola esperava.

A sala de aula já fazia concorrência vantajosa à "paisagem" da rua, mas nem tudo era êxito ou luminosidade. A resistência à modificação dos hábitos da rotina escolar foi constante e se atualizou durante as décadas de 20 e 30. A escola risonha e franca tinha também o seu lado sombrio.

Em muitas ocasiões a aceleração do tempo foi propositadamente retardada, criando obstáculos ao próprio fluxo de imagens, pessoas e idéias. O "index" dos filmes proibidos teve seu correspondente no "index" de livros proibidos da biblioteca do Instituto de Educação na capital da República. Eram publicações divulgadoras do stalinismo que haviam chegado, entre 1932 e 1934, às mãos da bibliotecária dessa instituição, seja pela iniciativa de professores, seja pela remessa de livros da Biblioteca Central de Educação.86

A "febre metodológica" da Escola Nova, como argumentavam alguns, não convencia boa parte dos docentes. O método de sentenciação para aprendizagem da leitura e da escrita, obrigatório na gestão Fernando de Azevedo, era burlado pelos professores nas suas salas de aula que, sem realizar qualquer curso de atualização, insistiam nas suas descrições didáticas (o a é a letrinha que tem a mãozinha do lado, o o é a goiabinha pendurada na árvore).87 A aplicação dos testes de classificação dos alunos nas escolas primárias, presentes desde a década de 20, apresentava resultados que precisavam ser relativizados em função das diferentes condições das escolas. Faltava material adequado para sua aplicação e as crianças ficavam ansiosas não só com a espera, de às vezes até mais de duas horas, para realizá-los, como pela reação emocional das professoras inseguras ao aplicá-los.88 Mas um dos problemas mais sérios era a questão disciplinar, particularmente quando esta atingia a questão dos bons costumes.

A disciplina como problema pode ser identificada através de episódios ocorridos na Escola Secundária do Instituto de Educação e na Escola Técnica Secundária Amaro Cavalcanti. Na primeira, o uso de "roupas não apropriadas" nos bailados das meninas nas festas de fim de ano chocava as famílias presentes a tal ponto que forçaram no final do ano de 1933 o seu diretor, professor Mário de Brito, a pedir demissão. Fatos como esse, associados à propaganda política que visava atingir diretamente as normalistas e era proveniente da Federação Vermelha dos Estudantes, tornou a subversão adolescente intolerável.89

A mobilização da juventude através de eventos culturais, no entanto, apontava para um movimento mais amplo da sociedade civil, que gradativamente parecia entrar em processo de articulação. Essa mobilização não era só dos estudantes secundaristas. Ela atingia também os alunos dos cursos de continuação e aperfeiçoamento de adultos, conduzidos por Paschoal Lemme. No segundo caso, a experiência do self-government, através da qual a gestão escolar era realizada pelos próprios alunos, organizados em conselhos, nos quais decidiam sobre sanções disciplinares, estímulos aos colegas retardatários, apoio aos menos ajustados, programas e estudos supletivos, atividades curriculares e extracurriculares, foi lida como "anarquia" que, sem sólidas raízes no círculo familiar dos alunos, invertia a hierarquia da autoridade escolar, promovendo a desordem. Esta experiência vivida na gestão de Anísio Teixeira (1931-35) foi abandonada.

Esses eventos sinalizam a resistência de uma cultura urbana que oferecia respostas diferentes daquelas programadas pelo trabalho racionalizador dos intelectuais da cidade. No caso das festas escolares, bastante concorridas nos bairros mais pobres, o que se subvertia era a pedagogia recreativa, apoiada na música e na educação física. Ao introduzir uma nova forma de socialização dos corpos populares, ambas pretendiam domesticar a sensualidade dos ritmos africanos que, no entanto, explodia, apesar dos ensaios, no palco das escolas.

Sem dúvida, o maior êxito do potencial disciplinador da música foi obtido pelos coros orfeônicos dirigidos por Villa Lobos nos estádios, nas praças e nas ruas cariocas. O efeito disciplinar que se buscava revoltava porém, ainda mais, quem o sofria. Em muitos casos os alunos só compareciam às atividades orfeônicas sob a ameaça de que a ausência seria punida com a reprovação em Educação Física. As normalistas do Instituto de Educação, por exemplo, reunidas em ensaio no pátio interno, torciam para que o maestro, regendo da borda do chafariz, nele se estatelasse.90

O exemplo mais contundente de resistência às atividades previstas foi a severa crítica que recebeu a experiência do self-government, na medida em que ela quebrava o código cultural inscrito nas relações informais da cidade e da escola confundindo as noções de igualdade e identidade e obrigando os adultos a olharem os estudantes como indivíduos numa totalidade coletiva. A distribuição do poder escolar foi vivida como um grande risco para a autoridade pedagógica, ainda mais que a Escola Técnica Amaro Cavalcanti reunia, debaixo do mesmo teto, alunos de bairros "abastados" e "remediados", colocando em questão categorias socialmente instituídas e borrando fronteiras sociais que expressavam a discriminação dos espaços públicos freqüentados por sujeitos de diferentes classes.91

Essa resistência, que funcionava como um elemento refreador do tempo, não se expressava só nos episódios mencionados. Ela se encarnava nos próprios sujeitos do trabalho pedagógico das escolas. Nas crianças pobres, que freqüentavam o ensino primário e eram reconhecidas como doentes (sífilis, verminoses, adenopatias, anemias), anti-sociais no comportamento por fatores hereditários e culturais, indiferentes à instrução. Nos professores, também doentes, desconfiados das inovações pedagógicas, com uma formação considerada tradicional e que se insurgiam ante as novas obrigações do seu trabalho, como a escrituração escolar (diários de classe, planos de aula, fichas diversas) ou a adoção de novos métodos de ensino experimentados como um atentado à sua autonomia. Se as reformas de educação, nas décadas de 20 e 30, se orientavam na direção de criar um espírito objetivo, a mentalidade docente estava ainda arraigada à esfera pessoal e privada, em termos de discriminação da realidade, interesses e ritmo de trabalho. Foi preciso uma penosa e intensa intervenção ordenadora para transformar as escolas isoladas de uma "Dona Olímpia", de um "Professor Teófilo" ou de uma "Dona Isabel Mendes", em sua maioria sinecuras dos inspetores escolares, numa rede de ensino coordenada, de fato, pela Diretoria de Instrução Pública.

O que queremos enfatizar com esses exemplos é que a escola pública carioca, por trás do seu halo de transformação, ao expressar as contradições urbanas e as suas resistências culturais, era também o locus por excelência do anti-herói. Esse anti-heroísmo ganhava o tom das "seqüelas" da pobreza sobre o acesso, a permanência e o rendimento do estudante traduzidas em dados de evasão e repetência; da dificuldade de levar as crianças a interiorizarem e transferirem para a vida cotidiana os hábitos e atitudes que procurava ensinar; das tentativas sistemáticas de burla de alguns professores sobre as informações fornecidas aos órgãos diretores do ensino ou da sua recorrente negação na adoção de mudanças concretas da sua prática pedagógica.

Como afirmava Melquíades Pereira Júnior, em 1934, vários fatores retardavam a vitória completa da Escola Nova, desde o estágio das normalistas na Escola de Aplicação do Instituto de Educação, que destoava completamente da "realidade" das escolas isoladas, até a pressão dos professores antigos e seu prestígio e autoridade junto à população de um modo geral, desqualificando os paladinos das novas idéias e sua luta estóica.92

A batalha entre as idéias retrógradas e as novas idéias prosseguia. Real e teatralizada pelo heroísmo dos educadores da cidade, cada escola pública carioca foi atingida e reagiu de acordo com sua especificidade, por um movimento que, em última instância, era um dos traços de expansão da soberania laica e que possuía uma característica muito peculiar: o movimento da Escola Nova atualizou o apelo soteriológico unindo-o às racionalizações trazidas pelas Ciências Humanas e pelas técnicas de controle social.

As reformas da instrução das décadas de 20 e 30 só foram possíveis pela astúcia positivista. De um lado, ela assegurou, de imediato, após a proclamação da República, um espaço de convivência não hostil entre o poder secular e o poder religioso, já que cedeu à Igreja o direito de propriedade e de auto-reprodução momentânea. Ao fazê-lo ganhou tempo para estabelecer de forma segura e de modo definitivo a soberania laica à qual já nos referimos.93

Espalhadas pelo país essas reformas foram acompanhadas por minuciosos inquéritos através da imprensa, onde jornais de grande porte como O Estado de São Paulo promoveram ampla discussão sobre a "realidade educacional" brasileira; pelo movimento das editoras que lançaram vários livros em coletâneas pedagógicas e incrementaram a produção de textos didáticos; pela constituição de entidades congregadoras de professores via associações, agremiações e sindicatos; pelas Conferências Nacionais de Educação, que tiveram papel destacado na formação da consciência da especialidade dos serviços de educação escolarizada; pela criação de canais e instrumentos de circulação de idéias específicos, como os cursos de especialização docente e as revistas pedagógicas em vários estados brasileiros; pela "invenção" dos Institutos de Educação e a introdução de disciplinas novas em seus currículos, como a Sociologia da Educação e a Psicologia da Educação; pela criação das Universidades e de órgãos dedicados à pesquisa educacional.

A luta pela quebra do monopólio pedagógico das instituições católicas impôs a construção de novos processos de definição da realidade que se expressaram no movimento de redefinição do campo educacional. Este se complexificou e adquiriu um caráter multifacetado, mas à medida que se fragmentava, levantava para seus integrantes um problema de especial relevância: em contraposição ao significado integrador da religiosidade, ele deveria ser capaz de propor um outro que se tornasse também totalizador da experiência e do conhecimento pedagógico dos seus principais agentes e que, portanto, produzisse novos valores, mais condizentes com a vida secularizada. O afastamento de uma interpretação sacralizada da vida social se fez através de processos que não só formularam definições alternativas da "realidade pedagógica", mas também produziram intervenções diretas nessa mesma "realidade". Criou-se, portanto, uma tradição ao antimodernismo católico retirando-se, mais uma vez, do registro religioso, as denominações que encarnavam a separação desse universo, paulatinamente recusado.

A palavra reforma carrega a marca de uma cisão que ocorre dentro do seio da própria Igreja. Não é ocioso recordar que os mais importantes líderes do chamado movimento de renovação educacional, como Fernando de Azevedo (1894-1974) e Anísio Teixeira (1900-1971) tiveram esmerada formação acadêmica católica, em excelentes colégios jesuítas, tendo abdicado do sacerdócio em prol de uma vida leiga. Chegaram a ser elogiados por seus contemporâneos como os "cardeais da educação brasileira". De outro lado, o termo novo assinala, ainda no registro religioso, uma espécie de renascimento, de começo, de iniciação que, no cristianismo, se dá com o batismo. Como adverte Jacques Le Goff, mais do que uma ruptura com o passado, novo significa esquecimento, apagamento do passado que se transforma simbolicamente em ausência.94 Não é por acaso, portanto, que os reformadores ou renovadores se autodenominaram os pioneiros da educação nova.

A Escola Nova, em sua frescura e inocência, apagaria simbolicamente as marcas anteriores da pedagogia estabelecida. A apologia do novo tornou-se uma espécie de credo que marcou a obra de importantes educadores das décadas de 20 e 30. Para Fernando de Azevedo, por exemplo, o "novo" apresenta três acepções: permeabilização do país aos valores culturais europeus e norte-americanos do pós-guerra; adaptação do sistema escolar às exigências de uma sociedade nova, de forma industrial, em evidente evolução para uma democracia social e econômica e unificação do sistema educativo em âmbito nacional por uma "política traçada pelas elites governantes".95

A concepção de Fernando de Azevedo ou mesmo a síntese de Anísio Teixeira, que apontou na ciência, no industrialismo e na democracia os principais eixos da Escola Nova, não esgotam o entendimento do significado dos seus conteúdos, que vão sendo construídos principalmente por duas vertentes de interpretação da realidade: a histórico-sociológica e a psicológica. Valeria a pena aprofundarmos esta afirmação.

A vertente histórico-sociológica foi sendo forjada pela matriz da formação jurídica graças à influência da Faculdade de Direito do Recife sobre os demais cursos jurídicos que atribuía grande ênfase aos estudos sociais. As obras de Sílvio Romero são, neste sentido, clássicas. Estes estudos acentuavam a importância do conhecimento dos problemas da sociedade brasileira mais para situá-la na corrente de uma história da humanidade, privilegiando, portanto, as sínteses totalizantes e apresentando uma visão estrutural das relações sociais. Durante muito tempo a formação básica dos sociólogos brasileiros foi obtida nas Faculdades de Direito.96

Uma grande parte dos primeiros profissionais da educação como Antonio Carneiro Leão, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, foram formados por essas faculdades. Nelas aprenderam mais do que uma forma de interpretar a realidade. Prepararam-se também, graças às características da vida acadêmica dos cursos jurídicos e particularmente às práticas jornalísticas aí desenvolvidas, para a vida política através de um publicismo engajado na discussão de questões de natureza diversa. Discerniam, na prática, como as idéias liberais poderiam e deveriam ser expressas. As Faculdades de Direito teriam ensinado aos intelectuais, segundo Adorno, menos a serem juristas e mais uma postura liberal, pelo que podem ser vistas como notáveis escolas de costumes.97

A vertente psicológica foi sendo articulada a partir das teses produzidas nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, dos trabalhos dos primeiros laboratórios de Psicologia Experimental criados no país em meados da década de 10 e em expansão na década de 20 e dos estágios ou cursos especializados que, já no início do século, médicos brasileiros realizavam sob orientação de psiquiatras nos laboratórios de Psicologia da Europa.98 Ao contrário da perspectiva globalizante da matriz jurídica, a matriz de formação médica era mais analítica do que sintética, enfatizava a experiência e tendia a fazer prevalecer o empírico sobre as generalizações. Educadores como Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) e Arthur Ramos (1903-1949), entre outros, haviam recebido esta formação.

Apesar das diferenças entre os registros de interpretação da realidade forjados pelas matrizes jurídica e médica, havia campos de interseção entre ambas, caso da Medicina Legal, que aproximou médicos e juristas na propagação das idéias da escola penal italiana, das diversas teorias psicanalíticas e, por fim, das concepções relativas à psicologia clínica. A divulgação das teorias psicanalíticas e da psicologia clínica aproximou também médicos e educadores e sensibilizou estes últimos a se dedicarem à difusão dos princípios de higiene mental e à prática de instrumentos simplificados de diagnóstico, como os testes mentais. A vertente psicológica tornou-se hegemônica na construção da secularização do campo educacional e Lourenço Filho projetou-se como um dos seus principais realizadores.

O concurso da Psicologia como conhecimento chave da elaboração de novas formas de interpretar a realidade social e pedagógica cresceu com os esforços multiplicados pelos movimentos de renovação escolar e da racionalização do trabalho. Foi este último campo que aproximou educadores, médicos e administradores (sobretudo engenheiros), interessados nos problemas de formação de pessoal para as indústrias e de sua seleção.99

A ampliação dos contatos entre profissionais de formação diversa (embora essa diversidade ainda fosse restrita) e a polivalência dos primeiros profissionais da educação levaram muitos deles a desprenderem-se de sua filiação institucional original e a matizar sua formação teórica inicial através de experiências profissionais que, em certos momentos da trajetória biográfica, se inclinaram mais para novos interesses, modelos interpretativos e áreas de conhecimento. Em outros, esta polivalência significou o resgate de uma filiação original interrompida, frustrada. É o caso de Lourenço Filho, formado pela antiga Escola Normal Secundária e graduado na Faculdade de Direito de São Paulo. Ele mesmo declara que o fato de haver realizado os primeiros anos do curso de medicina talvez houvesse influído não só no seu interesse (redobrado pelas exigências da docência) pelos livros de Psicologia Educacional procedentes dos Estados Unidos, mas também na realização de diversas experiências no emprego dos testes, cujos primeiros resultados divulgaria em artigo datado de 1921.100

Lourenço Filho inicia sua carreira de autor como intérprete da realidade sertaneja nordestina para, a seguir, dedicar-se à publicação de obras famosas no âmbito da Psicologia Escolar. Foi justamente sua incumbência de reorganizar o ensino público no Ceará que o levou a percorrer os sertões a fim de instalar escolas e, conseqüentemente a examinar as condições da vida regional e da mentalidade do sertanejo. A fama das suas obras como psicólogo escolar e sua presença marcante nas reformas de instrução pública do primeiro quartel do século XX encobriram o sucesso da sua obra de estréia nas letras brasileiras, publicada em 1926 por uma editora paulista e em função da qual ele foi eleito para a Academia Paulista de Letras e premiado pela Academia Brasileira. Introdução ao Estudo da Escola Nova (1930) e Testes ABC para Verificação da Maturidade Necessária à Aprendizagem da Leitura e Escrita (1932) foram, sem dúvida, mais lidos pelos professores das escolas públicas do que Juazeiro do Padre Cícero (1926).101

Numa conjuntura intelectual em que a Universidade e a tradição de pesquisa eram inexistentes, o educador era sobretudo um publicista e um literato. Como salienta Hélio Silva, ao analisar o livro indicado, a constatação da unanimidade em torno do texto indicava que se tratava de uma obra esperada.102 Publicado dois anos após À Margem da História da República, ele obteve sucesso num momento em que não só havia um intenso debate sobre o caráter nacional brasileiro, mas também no qual se pontuava a nação como raça.

Apesar de o livro não ter se tornado um clássico na literatura brasileira ou não ser praticamente comentado pelos pedagogos, ele encarnou uma espécie de bússola do projeto intelectual de Lourenço Filho, como salienta Hélio Silva, e que nós sintetizamos nos seguintes aspectos: uma visão essencialista do país (a busca do âmago da nacionalidade); a defesa da formação das elites com espírito público, uma análise em que o psicológico se interpenetra confusamente ao cultural ou simplesmente o elimina; a denúncia do pensamento mágico derivado da ignorância das camadas populares; a prescrição da educação como ordenadora do "caos" social e a defesa da modernização da sociedade através da ciência.103

O livro, cuja matéria fora publicada antes numa série de artigos, no jornal O Estado de São Paulo, descreve uma viagem da cidade para o sertão e as observações sobre a paisagem e os tipos humanos remetem e transmutam a descrição espacial em uma reflexão sobre o tempo brasileiro, opondo Fortaleza, a cidade (o presente), a Juazeiro do Cariri, o sertão (o passado). O que queremos salientar é que, de um lado, este livro, considerado uma contribuição no campo da Psicologia Social, defende uma tese, como já vimos, cara ao nosso autor: a necessidade de reformar os costumes. De outro lado, pretendemos destacar como o autor apresenta e representa o educador e as camadas populares, a partir da sua intenção reformadora. Neste ponto específico, o contato de À Margem da História da República com Juazeiro do Padre Cícero é estreito no que diz respeito ao primeiro caso, e mais matizado no segundo.

Lourenço Filho inicia seu livro afirmando que o Nordeste é o exemplo vivo dos erros e crimes republicanos. Juazeiro, potência fora da lei e da razão reunia, em sua perspectiva, a um só tempo, o arraial, a feira, o antro, a oficina, o centro de orações e o enorme hospício. É desse ângulo que o autor julgava o país, não como um gigante adormecido, mas como um grande corpo, que caminhava às cegas, capaz de destruir-se a si próprio. Sob a inspiração de Alberto Torres, apesar da ressalva do seu anseio por uma Constituição salvadora, de Oliveira Viana que lhe fornece, além da inspiração, a epígrafe de abertura, e sob o patrocínio de Júlio de Mesquita Filho, Lourenço Filho propõe-se a encarnar, como julga ter Euclides da Cunha feito em Os Sertões, o papel do patologista social, que pretende contribuir para reconquistar Juazeiro à civilização da cidade.

O educador é apresentado como o condutor iluminado, abnegado, imbuído da missão redentora e de uma vontade conversora. É o herói civilizador. A massa é amorfa, doente e triste. Em Lourenço Filho acentua-se, consideravelmente, a percepção das camadas populares sob um ângulo psiquiátrico que empurra para o plano da doença mental as anomalias que retrata e para o plano da terapia social o papel do educador. Suas obras subsequentes vão retomar e reforçar os aspectos psicológicos envolvidos no processo educacional. É sob esse ângulo restrito que ele visualizaria a profissionalização da educação e trabalharia para concretizá-la.

Numa curiosa conferência que Lourenço Filho pronunciaria em Campos, no estado do Rio, em 15 de julho de 1933, denominada "A Moderna concepção de Aprendizagem", surgem certas afirmações sobre as quais Hélio Silva se debruça e que reproduzimos com o intuito de apontar certos desdobramentos não sugeridos pelo autor.

(...) Em certo momento, discorrendo sobre a etimologia de ensinar, que vem de insignare, que significa "praticar signaes", afirma: 'Deixar signaes na cabeça dos outros, hoje, mais comumente deixar signaes por dentro da cabeça do discípulo, outrora, deixá-los por dentro e por fora'.104

A partir dessa citação, Hélio Silva reconstitui os outros argumentos da conferência mostrando que o autor distingue o velho aprender do novo aprender. No velho aprender notaríamos a passividade (aprendeu com alguém ou aprendeu de alguém). No novo aprender notaríamos a atividade com sentido determinado pela experiência e por um movimento que se irradia do interior para o exterior. Aprender seria viver o que se aprende. Se a nova aprendizagem significava mudança de comportamento, caberia ao educador conhecer a conduta humana (seus mecanismos, móveis e recursos). Como cada criança é um tipo irredutível, seria preciso conhecê-la. Hélio Silva mostra que, na concepção radicalmente individualista de Lourenço Filho, a metáfora da máquina entra em cena para apresentar a criança como um equipamento natural (anatômico, estrutural, fisiológico ou funcional) através de uma linguagem que obstinadamente esvazia o social e só entrevê os feixes de possibilidade biológico e orgânico. Ativo é o que vem de dentro.

O que queremos salientar nesta apreciação da análise de Hélio Silva é que, de um lado, a concepção de Lourenço Filho sobre a aprendizagem manifesta traços do modelo epistemológico indiciário e aponta, no conjunto da reflexão, quando apreciamos suas concepções sobre o educador e as camadas populares, para um modelo compósito de interpretação que mantém, ao lado dos traços provenientes do modelo epistemológico anterior, o apelo soteriológico da adesão e com ela a aceitação incondicional de uma autoridade vertical.

O modelo epistemológico indiciário que segundo Ginzburg passou despercebido e foi mais operado do que explicitamente teorizado, pressupõe, além do minucioso reconhecimento da realidade e seu registro para a descoberta de sinais diretamente não experimentáveis, os seguintes aspectos: as operações intelectuais de observação, análise, comparação e classificação; a atitude orientada para o estudo de casos particulares reconstruíveis justamente pelas pistas que permitiriam elaborar "histórias" precisas de cada doença; a ênfase na perspectiva individualizante (mesmo que o indivíduo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Quando Ginzburg mostra como estes traços estiveram presentes no trabalho de Morelli, Conan Doyle e Freud, salienta que todos eram médicos. As conclusões que extrai da sua análise evidenciam que não se trata simplesmente de coincidências biográficas, mas da afirmação, no âmbito das Ciências Humanas, de um paradigma articulado em disciplinas diferentes e muitas vezes ligadas entre si pelo empréstimo de métodos ou termos-chave.105

De fato, a semiologia médica se impôs em vários campos do conhecimento permitindo o livre trânsito dos médicos entre eles. No Brasil, no final do século XIX, a aproximação entre a medicina e a literatura levou não só à medicalização da linguagem do romance, mas abriu caminho para médicos, como Afrânio Peixoto e Oswaldo Cruz, tornarem-se membros da Academia Brasileira de Letras. Afrânio Peixoto, com vários livros publicados no âmbito da medicina e extensos estudos sobre defloramento e pederastia, escreveu também Noções da História da Literatura Brasileira (1931), onde revela a importância da teoria do meio ambiente como modelo explicativo para as manifestações sócio-político-econômicas. Ao apresentar, nessa obra, um grande painel histórico do país, Afrânio Peixoto disserta também sobre flora e clima, trabalhando as diretrizes básicas do pensamento de Taine: raça, meio e momento.106

Como já vimos na apreciação de À Margem da História da República, o casamento da ciência com a literatura resultou na construção de uma análise que, mesmo matizada pelo registro religioso, discutiu a nacionalidade a partir de um pensamento operatório que buscava os remédios para a cura de um organismo social doente. Nas primeiras décadas do nosso século, o livre trânsito dos médicos pela educação não só ampliava, mas reforçava o pensamento operatório, validando sua sofisticação e vulgarização no âmbito do registro da vida escolar, onde a experimentação passou a sofrer rigoroso controle estatístico, como nos mostra o prefácio de Testes ABC. Nesse livro, ao definir a alfabetização como a técnica fundamental da escola, Lourenço Filho propôs uma nova forma de abordá-la a partir do conhecimento anterior da matéria-prima e do conseqüente ajustamento das máquinas que a devem trabalhar.107

A nova educação, segundo Lourenço Filho, conheceria o equipamento natural da criança medindo, mensurando comportamentos naturais com a maior precisão possível. Os Testes ABC tiveram sua origem no tratamento especial de alunos repetentes, em Piracicaba, no ano de 1920, à luz da literatura internacional existente. Foram produzidas 25 provas iniciais que acabaram sendo reduzidas para 15 e finalmente para oito (discriminação visual das formas geométricas; discriminação das formas geométricas pela reprodução dos movimentos; coordenação motora; discriminação de sons na pronúncia das palavras; memória imediata visual ou auditiva; memória compreensiva; compreensão; atenção e fatigabilidade). O que significavam estas provas? Nas palavras de Lourenço Filho, uma amostra de comportamento cuja correlação se mostrava pertinente com relação à idade mental e ao quociente de inteligência, e não com relação ao sexo e à idade cronológica. Ainda, segundo ele, Isaías Alves havia mostrado a variabilidade dos resultados, com relação à cor. Estes seriam mais favoráveis no caso das crianças brancas do que no caso das crianças negras.108

O que se esperava dos resultados desses testes? Que oferecessem o diagnóstico individual com relação à maturidade para aprendizagem da leitura e da escrita; o diagnóstico médio da classe; a triagem dos alunos novos (particularmente os suspeitos de defeitos de visão, audição e problemas emocionais) e o prognóstico para organização das classes seletivas: os "bem-dotados", os "normais" e os "subnormais". De acordo com os resultados aferidos, a criança sofreria um trabalho corretivo no âmbito médico e/ou no âmbito pedagógico, quando seria encaminhada para instituições adequadas ou turmas mais lentas. Os casos mais graves poderiam ter sua matrícula impedida na escola.

Os testes escolares aproximavam os esforços do médico, do educador e do estatístico, promovendo um minucioso reconhecimento das possibilidades e limites da aprendizagem da criança e o estudo dos casos isolados para correção adequada. Daí sua ênfase na perspectiva individualizante, mesmo quando focaliza o perfil da classe. Por analogia, através de respostas provocadas pela reação da criança aos estímulos do aplicador, seria revelado seu retrato do ponto de vista da maturidade ou não para a aprendizagem da leitura e da escrita. Os testes escolares (assim como os testes de encaminhamento profissional) tornaram-se a coqueluche dos educadores, em vários estados brasileiros, por várias décadas, nas escolas públicas e particulares do país.

Lourenço Filho não foi o primeiro, nem o único, a apresentar os testes como instrumento de trabalho do educador, mas foi aquele que consagrou sua utilização por realizar nos grupos escolares da capital de São Paulo a maior organização psicológica de classes até então tentada na América Latina, envolvendo 20 mil crianças, e produzir, em diálogo com os mais avançados centros de Psicologia do seu tempo, um conhecimento que foi reconhecido nacional e internacionalmente. Testes ABC, ao lado de outras obras suas no âmbito da Psicologia da Educação, foi traduzido em várias línguas, incluindo o inglês, o francês, o espanhol e o árabe.

O que queremos ressaltar neste percurso de Lourenço Filho, e que se reflete no histórico das suas publicações, é que ele sai do ensaísmo que o colocaria, sem aquilatarmos qualquer avaliação das qualidades intrínsecas da sua obra, ao lado de Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala), Alfredo Ellis Jr. (Raça de Gigantes), Paulo Prado (Retrato do Brasil), Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil) e Eduardo Frieiro (O Brasileiro Não é Triste), ou de todos os autores de À Margem da História da República, para os experimentos realizados nos laboratórios de Psicologia e nas classes primárias.

Preocupado com a cultura brasileira e suas "patologias", como o eram, grosso modo, os ensaístas do seu tempo, Lourenço Filho optou por resolver sua preocupação não de uma forma projetiva como estes o fizeram, mas no âmbito restrito das atividades de pesquisa. Ele tratou da educação como integração nacional, questão da sua época, do ponto de vista do aporte biológico.109 Com relação a este aspecto, também outros intelectuais, fossem médicos, engenheiros ou educadores, aplicaram-se à pesquisa chegando a criar institutos específicos e a ampliar, e muito, com a divulgação dos resultados dos seus trabalhos, a bibliografia pedagógica brasileira. No histórico que faz sobre a Psicologia no Brasil, Lourenço Filho oferece um panorama da expansão destas iniciativas no país.110 O fato é que os testes apresentaram-se para certos setores da intelectualidade como panacéia para muitos males, sendo defendidos por intelectuais de diferente formação que, no entanto, convergiam na apreciação de que o conhecimento e o controle da diferenciação entre os homens era fundamental e ganhava um instrumento eficaz para a legitimação de políticas de intervenção e ordenação social.

Se os testes mobilizavam a intelectualidade em São Paulo, onde o universo da produção era mais preciso, a tratar enfaticamente da seleção profissional e da organização racional do trabalho, no Rio catalizavam o tema da formação das elites nacionais. Foi o sonho da descoberta de super-homens por meio de processos psicológicos, divulgado no jornal carioca Correio da Manhã, que fez o médico escolar Maurício de Medeiros, discípulo de George Dumas na Sorbonne, organizar laboratórios de psicologia no Hospital dos Alienados e defender a tese do aproveitamento dos "supranormais", reconhecidos pelos Testes de Terman ou de Stermann (versão americana dos testes de Binet), com o propósito de encontrar os leaders da civilização nacional.111 Parece que a dimensão estreitamente científica dos testes, esvaziada da dimensão histórica, social e política, permitiu seu uso na legitimação de diferentes propostas. De um modo geral, a conjugação de regras de medida rigidamente expressas com o vazio da dimensão sócio-cultural permitiu-lhe uma elasticidade de uso que foi o motivo do seu sucesso junto à intelectualidade nesse momento.

Sob o ritmo dos testes, a Psicologia Educacional fez escola vencendo as resistências iniciais que se opuseram, por exemplo, à sua obrigatoriedade nos currículos do Instituto de Educação do Distrito Federal, onde permaneceu como matéria de estudo facultativo por vários anos.112 O movimento de florescimento dessa área de conhecimento teve duas direções bem marcadas nas primeiras décadas do século: de fora do país para dentro, através das publicações estrangeiras lidas no original ou maciçamente traduzidas; e das conferências de especialistas estrangeiros que visitaram ou se estabeleceram por algum tempo no país, desde a década de dez, provenientes da Itália (Ugo Pizzoli), da Polônia (Waclaw Radecki), da França (Henri Pierón ' Etienne Souriau, André Ombredane e Jean Maugué), da Inglaterra (Th. Simon e Léon Walter), da Alemanha (Wolfang Koeler), dos Estados Unidos (C.A Backer), entre outros; de São Paulo para outros grandes centros urbanos brasileiros.113 Esta expansão produziu frutos concretos, colhidos nessas décadas e nas posteriores, quando a produção da pesquisa brasileira já se afirmara internacionalmente.

O sucesso da pesquisa brasileira empurrava seus produtores numa circulação intermitente dentro e fora do país, consagrando um campo de atuação específico do profissional de educação. Gradativamente, a Psicologia Educacional se afastava de uma de suas marcas iniciais mais fortes: o campo das doenças mentais, e passava a trabalhar um vasto universo do comportamento humano priorizando a infância e a adolescência como objetos de investigação a partir de ampla e variada temática: raciocínio infantil; grafismo; memória; cinética; tipos intelectuais e associações de idéias; desenvolvimento mental; aprendizagem da leitura e da escrita; influência de leituras e cinema sobre a aprendizagem; inteligência geral e biótipo, inteligência, meio social e solidariedade; inteligência e vocabulário; orientação e seleção profissional; homogeneização de classes escolares; personalidade e tipos de crianças; aprendizagem e testemunho; motricidade e fadiga; julgamento moral e social, entre outros aspectos.

Ao assumir este recorte no âmbito do exame comportamental, a Psicologia Educacional se afastava da Psiquiatria e abria um campo de estudos próprio, consolidava também as atividades de laboratório no ensino de formação de professores. A presença desses laboratórios dentro dos cursos normais mostrava que o modelo da reformulação desses cursos não vinha das faculdades existentes, mas de instituições que lhes eram concorrentes.114 Neste deslocamento, a tentativa de empreender a acumulação de um conhecimento empírico sobre a população brasileira (o que os brasileiros comiam, como moravam, suas preferências sexuais, sua conduta social, seu temperamento e caráter), que era o objetivo dos médicos, legistas e dos policiais, enfatizou o caráter preventivo de conhecimento, controle e correção do comportamento adulto na criança. Sob o patrocínio da ciência, as Escolas Normais foram transformadas em estabelecimentos de reflexão sobre os costumes da sociedade que direta ou indiretamente se expressavam dentro dos muros escolares.

Sob este aspecto é forçoso destacar que a consulta ao dossiê dos documentos produzidos e utilizados pelo corpo docente do Instituto de Educação do Distrito Federal, na década de 30, mostra que a cultura pedagógica ali cultivada era temperada pelos chamados "problemas da vida prática", percebidos e observados nas escolas de crianças e adolescentes e que provocavam a análise de atitudes de diretores, professores em sala de aula e alunos.115

Essa análise de atitudes denuncia, através das situações-problema, questões vividas efetivamente nas escolas cariocas, como o caso da escola onde o serviço corre mal, as professoras mostram-se apáticas, desgostosas e indiferentes. Acusam os alunos de indisciplinados e são acusadas pela diretora, que parece ativa e bem-intencionada. Ou daquela em que à preocupação é com as aparências da escola nova, traduzidas em trabalhos decorativos sem finalidade prática para a criança. Ou daquela outra em que a discussão é desbalanceada pela força da sugestão de alguns e a fraca resistência de outros, sem que dos dois lados haja autonomia de pontos de vista. Ou ainda aquela outra escola em que um aluno maior pretendia violar sexualmente outro menor e, sem conseguir seu intento, maltratou-o a socos e pontapés, tendo sido expulso pela diretora. Ou daquele caso em que certo aluno foi apanhado pela professora na "prática de um vício secreto". Que atitude tomar se ele estava só? Como agir se o ato foi presenciado pela "classe escandalizada"?

As experiências dos laboratórios de Psicologia das Escolas Normais conviveram com a reflexão sobre costumes. Esta convivência não foi porém tranqüila, principalmente quando a ênfase recaía sobre certas experiências de laboratório que, voltadas para a anatomia e para fisiologia, companheiras inseparáveis da Psicologia Educacional, criavam enorme polêmica justamente porque traziam à tona assuntos controvertidos como a educação sexual.

As exigências científicas de conhecimento da criança e de suas famílias nas áreas urbanas foram enfrentadas pelas Escolas Normais (ou Institutos de Educação), que abriram ou não espaço para certas disciplinas, ao sabor de pressões da crítica pública ao movimento de secularização que a ciência trazia. Foram estes avanços que introduziram os laboratórios e a observação psicológica, sociológica e antropológica dentro das escolas. Essas pressões não eram apenas sintomas de resistência ao avanço da produção de conhecimento e de uma mentalidade mais secular. Em alguns momentos, e a partir de certos agentes, elas sinalizaram polêmicas do próprio movimento do campo científico e pedagógico.

Apesar da avalanche "testologizante" que grassou nas escolas normais e primárias brasileiras e do sucesso dos testes psicológicos, o consenso não foi unânime. A crítica existiu e partiu não só dos professores das escolas em que os testes eram aplicados, mas também de médicos educadores que opunham aos famosos instrumentos de medida psicológica, defendidos até por juristas como Pontes de Miranda, os estudos de caso. Isto é, a análise da significação simbólica das atitudes desviantes das crianças observadas na escola e remetidas a causas familiares.116

As críticas aos testes formuladas por Arthur Ramos, que vai chefiar o serviço de Ortofrenia e Higiene Mental do Instituto de Pesquisas Educacionais do Departamento de Educação do Distrito Federal, na reforma de instrução pública liderada por Anísio Teixeira (1931-35), conviveram com a fúria "testologizante" presente na concepção de Lourenço Filho e em algumas escolas primárias públicas da rede escolar carioca na mesma administração. Essas criticas sinalizavam mais do que simples querela interpretativa. Sinalizavam o início de uma ruptura entre os médicos, que privilegiavam como seu objeto de análise o desvio e os desviantes, desenvolvendo o tema da identificação, e os antropólogos, cujo interesse pelos desviantes e pelas minorias levaram-nos, gradativamente, a renegar o determinismo biológico e desenvolver o tema da identidade.117

Arthur Ramos, médico de formação, aproximou-se da ala antropológica, e Lourenço Filho, educador e advogado, com uma incursão interrompida pela medicina, identificou-se com a ala médica. Enquanto os médicos-antropólogos iriam retomar a distinção proposta por Boas entre raça e cultura, os educadores médicos, em colaboração com médicos e juristas, deixavam de lado a questão da autocompreensão auto-atribuída dos grupos, segmentos ou classes, como salienta Mariza Correa.118

Nesse processo de ruptura, alguns médicos tornaram-se criminólogos ou inspiraram iniciativas de porte inédito neste âmbito. Afrânio Peixoto, "discípulo dileto" de Nina Rodrigues, diretor de Instrução Pública do Distrito Federal em 1916, ao estabelecer e insistir na relação entre doença e crime abriu caminho para a radicalização da prática de Leonídio Ribeiro, médico psiquiatra e seu discípulo mais ativo, que nas suas obras sintetizou muitas outras tomadas de posição sobre o crime, incluindo as de educadores, através da noção de prevenção.119

Médicos, como Afrânio Peixoto, criminalistas, como Leonídio Ribeiro, e educadores, como Lourenço Filho, acabaram promovendo diretamente, no caso dos primeiros, ou endossando, no caso do último, a criação de instituições que segregaram crianças e produziram, nesse processo, a figura do menor abandonado como sinônimo de delinqüente potencial. No entanto, a façanha maior que irmanou particularmente médicos e criminólogos (e, neste sentido, os sujeitos citados sinalizam o grupo profissional a que pertencem) foi a identificação civil obrigatória, através das impressões digitais.120 Todos partilhavam da concepção de que biologia era destino. Na ruptura entre a Medicina e a Antropologia a ala médica teve, para a sociedade brasileira como um todo e para os profissionais da educação, maior influência do que a ala antropológica. O determinismo biológico acabou sendo mais forte do que o "psicanalitismo".121

Se as modificações da escola primária através dos testes eram sinal de um refinamento de táticas de controle das populações urbanas, é preciso lembrar que elas se concretizaram apenas em algumas escolas e, ainda assim, alcançava poucos. Se a segregação das crianças, sua seleção ou prevenção e correção dos seus desvios foram estratégias reais (ao lado da repressão e segregação dos loucos, por exemplo), foram também estratégias retóricas afinadas às exigências da ciência contemporânea que, em muitos casos, não conseguiu se impor numa sociedade "tão indisciplinada".

Dentro das escolas, legitimados pelas fichas médicas, fichas pedagógicas, testes psicológicos e de escolaridade, foram surgindo espaços destinados para as crianças normais, débeis (de saúde), inteligentes e retardadas. A ânsia de conhecimento do aluno levou-o a ser codificado em instrumentos que, ao lidar com a situação concreta e enfatizar as repercussões dos resultados das medidas sobre a organização escolar, apagaram a trajetória real da criança nas reflexões que os educadores nos legaram sobre a implantação da Escola Nova em nosso país.

A cultura científica forjada nas Faculdades de Medicina e nos laboratórios foi se afirmando neste século e se mostrando força ativa no processo de secularização urbana. A Psicologia da Educação, que legitimou os testes de escolaridade, foi fruto desta afirmação. Seus adeptos criaram versões mais radicais ou mais brandas do racismo científico, além de uma interpretação rígida não só da oposição entre pensamento mágico e racional, mas também do papel do intelectual e de sua capacidade de intervenção na consciência popular.

A penetração dos conhecimentos provenientes do campo médico na área de estudos jurídicos, que constituía a base da formação da nossa elite intelectual, chegou mesmo a criar, como já assinalamos, áreas disciplinares de interseção como a Medicina Legal. Se a imbricação do vocabulário e de uma forma de ver o mundo era evidente e colocava a descoberto um terreno comum, havia circunstâncias, como adverte Mariza Correa, que produziram diferentes respostas de solução a certos problemas. Ao fazer esta afirmação a autora está interessada em mostrar as continuidades e descontinuidades no plano teórico e metodológico entre os médicos e entre médicos e juristas.

Ela mostra, por exemplo, que se a formação médica não desprezava as grandes questões filosóficas da época, dava maior atenção à pesquisa empírica. No entanto, a autonomia de dois saberes institucionalizados nas Faculdades de Medicina e de Direito não escondia um substrato comum à época e que já expusemos ao fazer a leitura de À Margem da História da República: a visão da sociedade como um corpo que deveria ser conhecido de forma semelhante à que era utilizada no conhecimento do corpo humano. Mariza Correa observa que há, por exemplo, mais continuidade entre a atuação do médico Nina Rodrigues e a de Sílvio Romero e Tobias Barreto, ambos juristas, do que entre Nina e o médico Souza Lima, mas há também rupturas. São elas que aparecem quando identificamos, dentre outros aspectos, no registro jurista, por oposição ao registro médico, a análise generalizante e a percepção informada, ao contrário da observação constante e de uma análise minuciosa da realidade.122 Focalizaremos, a seguir, nossa atenção sobre a especificidade da contribuição das Faculdades de Direito, na criação de um modelo operatório de interpretação da realidade que se acoplou, em algumas ocasiões, admiravelmente bem ao modelo operatório médico e, em outras, se distanciou dele, criando pontos de atrito entre educadores que expressavam predominantemente um ou outro.

Os principais educadores brasileiros que atuaram na construção de um campo laicizado de educação colaborando ativamente nas reformas de instrução pública das décadas de 20 e 30, como Antonio Carneiro Leão, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira, tiveram sua formação de nível superior nas faculdades de Direito livres ou oficiais no Recife, São Paulo e Rio de Janeiro. Todos excluíram da sua trajetória profissional a carreira jurídica, encaminhando-se para atividades intelectuais diversificadas: Carneiro Leão, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho iniciaram-se profissionalmente como jornalistas e professores. Tiveram boa parte de suas obras traduzidas em diferentes línguas e a sua ampla produção extrapola, em boa medida, o âmbito pedagógico. Dentre eles, Anísio Teixeira destaca-se pela fidelidade à temática educacional: fundamentos, organização, ensino secundário e superior, relato de experiências e, sobretudo, política educacional.

Antonio Carneiro Leão, além dos livros e artigos sobre educação, escreveu poesia, crítica literária, crítica histórica e obras sobre o ensino de francês, do qual foi um dos introdutores no país. Fernando de Azevedo produziu não só textos relativos à educação, mas alentadas obras sociológicas, além de crítica literária e histórica. Lourenço Filho, ao lado da importante produção pedagógica, elaborou trabalhos no âmbito da Psicologia, da crítica literária e da literatura infantil.

Esta diversificação no âmbito da produção intelectual, matizada pelos interesses pessoais e pelas circunstâncias do exercício profissional, pode também ser explicada, em boa parte, pelas características dos cursos jurídicos enquanto escolas de formação. As Faculdades de Direito, à exceção da Academia do Recife, não produziram conhecimento vigoroso. Pelo contrário, profissionalizaram bacharéis que se dispersaram pela vida pública nas carreiras políticas, nas artes e no jornalismo. A importância da imprensa acadêmica dos cursos jurídicos, com tudo o que ela significou em termos de experiência e tessitura de uma rede de relações pessoais, teve peso na iniciação profissional dos educadores citados que foram colaboradores regulares de jornais e periódicos (caso de Anísio Teixeira e Carneiro Leão) ou profissionais assumidos da imprensa (caso de Fernando de Azevedo e Lourenço Filho) nos maiores centros urbanos do país.

Como mostra Sérgio Adorno, no estudo de caso que realizou sobre a Academia de Direito paulista, a imprensa acadêmica aí praticada pelos estudantes foi mais significativa do que as aulas dadas. Basta dizer que, nessa Academia, o positivismo foi antes introduzido pelo jornal A República (1876) para depois chegar aos conteúdos do currículo escolar. A vaguidão do ensino jurídico na sala de aula foi suprida via institutos e associações acadêmicas, com suas publicações periódicas, que funcionaram como tribuna livre, debatendo os problemas nacionais e veiculando modelos de pensamento que formalizavam a discussão sobre o que girava em torno do mundo acadêmico: problemas da agricultura, vida partidária, prática eleitoral, condições de subsistência dos trabalhadores do campo e da cidade, questões educacionais.123 Ainda como estudante de Direito, Antonio Carneiro Leão participou, em 1909, do Primeiro Congresso Brasileiro de Estudantes, no Ginásio São Bento, em São Paulo, onde pronunciou conferência que, ampliada, foi publicada, constituindo seu primeiro livro, Educação (1909). Nele, as marcas do pensamento do seu tempo, da Escola Crítica de Recife em sua defesa da "regeneração das classes e das crianças miseráveis".

O espaço jornalístico, dentro da Academia paulista, como observa Adorno, propiciou uma espécie de auto-aprendizado do Direito, da moral e da política, ao mesmo tempo que teve importância decisiva no processo de homogeneização da elite política. Constituiu um instrumento eficaz de educação cívica e moral, além de moldar certos traços de personalidade do bacharel: o culto à erudição lingüística, o cultivo do intelectualismo, a perseguição de uma arte civilizatória, a fé pedagógica na razão expressa pelo proselitismo das letras, a prudência e a moderação políticas. Os bacharéis aprenderam na militância acadêmica o segredo da luta pelo desenvolvimento das estruturas de poder emergentes com o Estado Nacional, isto é, aprenderam a atuar no interior das instituições políticas. Aprenderam a arte de governar o Estado e administrar a cidadania.124

Os efeitos da influência do publicismo acadêmico, que Adorno retrata ao focalizar a Academia de São Paulo, podem ser notados, com maior ou menor aproximação, na trajetória dos educadores focalizados, mesmo que não tenham sido formados nesta instituição específica. Talvez o principal efeito desse publicismo possa ser sintetizado na aprendizagem de uma militância política que repudiava tanto a tradição quanto a revolução; que não visualizava o Estado como instrumento de coação; que estetizou o pensamento político e ao conferir o privilégio ao uso da palavra falada e escrita como condição sine qua non desqualificou politicamente os analfabetos e os excluiu dos processos eleitorais, dentre outros aspectos. Em suma: a formação do bacharel em Direito teve muito mais um sentido político do que propriamente jurídico.125

Vale a pena salientar que a questão da moralidade pública é um tema-chave do publicismo acadêmico estudado por Adorno. Ao reunir questões de diferente natureza, como criminalidade, prostituição, loucura, lazer, etc., os periódicos criam um universo de representações legitimadoras da necessidade de disciplinar contatos, estabelecer regras de sociabilidade, sanear zonas de circulação, prevenir focos "patológicos" de agrupamento populacional e hierarquizar a proximidade e a distância entre pessoas, famílias, grupos e classes sociais. O tratamento dado a estas questões deixa entrever um processo no qual os conflitos sociais se privatizam e onde se estabelece um código cultural comum, locus de convergência entre política e moral e fundamento último da obediência política.126

Em nosso ponto de vista, a questão educativa vem a reboque deste tema-chave, despertando no bacharel o desejo da missão pedagógica, motivando-o à realização de conferências públicas pelos vários estados brasileiros e à redação de cartas abertas às autoridades políticas do país, como as efetivou Antonio Carneiro Leão na década de 10, ou à realização de inquérito sobre o ensino brasileiro, como o concretizou Fernando de Azevedo no jornal O Estado de São Paulo, na década de 20, além de criar um terreno comum de aproximação com os intelectuais padres, engenheiros e médicos. Nos cursos jurídicos os educadores aprenderam, portanto, a deflagrar campanhas e movimentos sociais, ainda que essa característica não fosse privilégio apenas de tais cursos. Também a Igreja, no seu dinamismo antimoderno, permitiu experiências semelhantes.

Os educadores brasileiros aprenderam também, nos cursos jurídicos, a manipular a forma específica do discurso aí produzido e tornaram-se legisladores, isto é, exerceram a autoridade jurídica no âmbito de órgãos pertencentes ao Poder Executivo. Seus arquivos privados geralmente possuem acervos preciosos que testemunham o extraordinário impulso realizador e organizador que buscou na revisão e criação da legislação escolar condições de institucionalizar-se e, para tanto, utilizou uma série de práticas jurídicas cuja finalidade foi delimitar, algumas vezes sem sucesso, o espaço dos possíveis e, com ele, um conjunto de soluções propriamente jurídicas para problemas postos pelo contexto pedagógico.127

A prática e o discurso jurídicos conheceram, no momento mesmo de autonomização do campo educacional, uma aplicação a ele especifica. Dentro dos governos municipais e estaduais, as Diretorias de Instrução Pública configuraram-se como locus privilegiado de definição de Direito Escolar, criando um conjunto de textos predominantemente normatizadores (os decretos), justificadores (as exposições de motivos) e operacionais (as instruções, regulamentos, as portarias, os editais, os ofícios) das modificações pretendidas. Este trabalho de formalização e racionalização foi contínuo e contou com a colaboração de profissionais com larga experiência no campo pedagógico. A farta regulamentação aí produzida, com conteúdos práticos, codificou espaços, saberes e poderes, definindo o que era considerado justo. A importância desta iniciativa salta aos olhos quando percebemos que a maioria, senão a totalidade, das reformas educacionais, na República, foi elaborada pelo Executivo. É o caso das reformas do ensino primário realizadas em diversas capitais do país e no Distrito Federal nas décadas de 20 e 30.

O domínio da prática e do discurso jurídicos, nessas décadas, foi fundamental diante da responsabilidade dos educadores na construção do Estado e lhes permitiu não só ampliar seu exercício de poder para além do fechado território político partidário, mas também estabelecer fronteiras entre a educação e os demais campos do conhecimento, ao mesmo tempo em que eram criadas instâncias legitimadoras dessa separação. Coube a eles ainda, através de procedimentos jurídicos diversos, ligados à regulamentação da carreira profissional, construir um público com demandas pedagógicas específicas. É o caso dos diretores, orientadores, inspetores e outros especialistas em educação, que passariam a ocupar e a desempenhar funções especialmente desenhadas e orientadas por legislação específica.

Os procedimentos citados fizeram parte de um amplo processo de depuração e autonomização do campo educacional que garantiu a sua "especificidade" e criou o entendimento de que ele não se configurava como extensão do campo religioso, médico ou jurídico. O saber jurídico foi o veículo para a afirmação de uma determinada trajetória do educador profissional, ao delimitar as exigências de ingresso na profissão, as condições de trabalho, a regulamentação da carreira, os incentivos e as penalidades, os espaços de atuação e até o valor social do educador, claramente definido pela atribuição (ou não), diante de certos requisitos, do direito de usar títulos escolares e profissionais.

No cotidiano dos espaços de trabalho, principalmente dentro das Diretorias de Instrução Pública, os educadores esbarraram, o tempo todo, com o desencontro entre a minúcia da prescrição reguladora e a "confusão" da prática pedagógica sobre a qual se legislava. O desafio a esses códigos que manifestavam o poder do Direito expresso no campo educacional também esteve presente em respostas inesperadas, muitas vezes até surpreendentes. No momento de institucionalização do moderno é possível perceber a íntima relação entre as fórmulas jurídicas e as relações de poder implícitas no conjunto dos movimentos de grupos e instituições cujas oscilações traduziram uma pluralidade de visões de mundo e de interesses em disputa. De fato, os instrumentos jurídicos não só atravessaram o cotidiano, mas criaram certos hábitos mentais cujos efeitos se prolongaram e atualizaram com a passagem do tempo. Um deles, bastante combatido pela literatura pedagógica do final dos anos 70 e início dos anos 80, é a aquiescência do educador a uma história da educação apoiada sobre uma legislação que aparece desprovida do seu conteúdo histórico e social, isto é, uma legislação descontextualizada.

O formalismo foi o vício mais evidente da manipulação do discurso jurídico na prática, não só porque o representou como independente do contexto social que o gerou, mas ainda porque expressou o monopólio de certos agentes quanto à competência de definição de direitos no campo educacional. Se, de um lado, o viés formalista reduziu a cultura jurídica para atender à necessidade de domínio e sua legitimação, a desfiguração e a ampliação dessa cultura, nas práticas das Faculdades de Direito, criaram formas de pensar o país e seus problemas. Esta vertente interpretativa constituiu uma postura humanista que pretendeu explicar histórica e socialmente nossas principais questões.

Conclusão

O processo de urbanização no país, como mostra Octávio Ianni, redefiniu os núcleos intelectuais e políticos que se multiplicariam e se diversificariam na década de 30 e cuja preocupação era explicar o presente, exorcizar o passado e imaginar o futuro. Os discursos dos intelectuais brasileiros sobre a cidade nos anos 20 e 30 revelavam que, ao lado do movimento intelectual, ocorrera um deslocamento do centro da vida nacional. Entre fins do século XIX e a primeira metade do século XX, este centro deslocava-se do Nordeste (simbolicamente Recife), para o Centro-sul (simbolicamente São Paulo). Não é por acaso que já em 1920, um membro da Escola de Recife, Graça Aranha, em Estética da Vida, ressaltava o fato de que homens despreparados para governar uma nação de destino industrial governavam essa nação enquanto por toda parte o pragmatismo suplantava o intelectualismo no Brasil. Felizmente, acrescentava ele, São Paulo era governada por homens antigos, mas não estranhos à indústria, o que adequava a capacidade dirigente ao destino social da cidade. Em sua análise esta era a razão do progresso paulista.128

Na década de 30, por influência de Fernando de Azevedo em São Paulo e Anísio Teixeira no Rio de Janeiro, se abriria a possibilidade, através da criação da Universidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, de se efetivarem condições de uma relação orgânica entre Estado e intelectuais. No Rio de Janeiro a desvinculação entre intelectuais e Estado e os problemas da sua incorporação, tardia quando comparada à de São Paulo, muito se devem ao processo de boicote e reorientação, numa perspectiva autoritária, da iniciativa de Anísio.129

Esta situação, com reflexos posteriores ao período que estamos estudando, obriga-nos, no entanto, a visualizar as relações que se estabeleceram, nas décadas de 20 e 30, entre os administradores da instrução pública no Distrito Federal (um pernambucano, um mineiro e um baiano), com uma concepção de Estado, sociedade e educação corporificada por setores da classe dominante paulista que faziam de São Paulo "um outro país" e o tornavam o protótipo da modernidade desejada e possível. São Paulo era o modelo de construção do mundo do trabalho que afirmava a ordem capitalista e procurava a ela incorporar grandes massas, através de um processo de interiorização de novas regras de socialização dos trabalhadores elaboradas não apenas pelos educadores, mas também pelos engenheiros, médicos, romancistas, juristas, a instituição policial e pelos empresários industriais.

Se parece plausível supor a íntima relação entre o modelo de modernidade encarnado pela cidade de São Paulo e as reformas de instrução pública do Rio de Janeiro, no sentido de que tais reformas eram apresentadas como paradigma dos novos rumos da instrução pública do país e, ao mesmo tempo, tinham São Paulo como paradigma, é também importante salientar que a peculiaridade da práxis urbana da cidade carioca não só resistiu o quanto pôde à reprodução de um modelo paulista de cidade e de escola, já que, nesse espaço, os valores e as práticas que prevaleciam não tinham na lógica do mercado seu princípio organizador, mas também reapropriou-se daquele modelo com outros objetivos, mais de acordo com as características da história e da "vocação" da própria cidade. Por isso, como afirmamos em artigo recente, o estudo da escola pública carioca necessita de um acompanhamento crítico das imagens da cidade forjadas desde o começo do século quando a construção de uma civilização urbana foi o principal desafio dos nossos educadores.130

A fragmentação social é o enigma da cidade carioca para seus educadores, na medida em que é lida como sinônimo de desordem e miséria. Ela estava no fundo das suas inquietações com relação à necessidade de se auto-reproduzir e de realizar as composições exigidas pela manutenção do poder na capital republicana. Esta fragmentação se expressava nas características da clientela da escola pública, nos diferentes tipos dessa escola, nos problemas pedagógicos que emergiam e eram examinados como resultantes das seqüelas da pobreza: a irregularidade das condições orgânicas da criança, das suas reações psicológicas, do aproveitamento dos estudos, da distribuição caótica da idade por ano letivo, da permanência no curso, da flutuação escolar. Urgia mudar a face desta escola e, portanto, da cidade. O exemplo da possibilidade dessa mudança era São Paulo.

O desejo dos educadores, intelectuais e políticos de espalhar como azeite a modernidade paulista parecia tornar-se viável com o efeito mais evidente da centralização dos serviços prestados pelo Estado, após a Revolução de 30. No entanto, esta institucionalização do moderno que examinamos, priorizando certos aspectos neste trabalho, pode ser olhada como caricatura de uma revolução total que de fato não aconteceu. A representação de uma revolução total trouxe, no entanto, como desdobramento, representações de cisão, de renovação, de aceleração do tempo, cuja projeção no espaço urbano carioca chocou-se contra a manutenção de práticas dos governos republicanos que antecederam a famosa revolução e que evidenciaram uma forma de ver as classes populares e de ver a manifestação da vida própria da cidade.

Se não admitimos a ruptura política levamos em conta, no entanto, a possibilidade efetivamente aberta de uma ruptura ideológica, o que constitui o lado fecundo da crise da modernidade brasileira. Acrescentamos, neste ponto, um argumento caro a Konder e do qual nos apropriamos para construir nosso ponto de vista:

O fato mesmo de o movimento de 1930 ter sido considerado como 'revolução' contribuiu para que o conceito de revolução deixasse de se referir a uma realidade abstrata, remota e se ligasse a uma experiência concreta, próxima (...)131

Mesmo que esta experiência concreta não pudesse ser considerada radicalmente revolucionária, a possibilidade de reinvenção da revolução se acentuou. Nesta linha de raciocínio cresce em importância a análise do uso da pedagogia pelos educadores modernos numa tríplice dimensão: a construção de uma ordem espacial, de uma ordem produtiva e de uma ordem política. Neste caso, consideramos as reformas da instrução pública no Distrito Federal nos anos 20 e 30 como significativas para apreender uma teia de relações contraditórias que matizam o conjunto de práticas da Escola Nova revelando sua dupla condição, tanto no sentido de antecipar a revolução como de reinventá-la.

A Escola Nova é lida como antecipação da revolução por educadores como Paschoal Lemme. Afinal, as reformas de Antonio Carneiro Leão (1922-26) e Fernando de Azevedo (1927-31) consolidaram uma proposta de gestão que não só teve continuidade, apesar das mudanças políticas, mas que se ampliou e se redirecionou quando seus primeiros frutos, nem tanto doces, foram saboreados. O fato é que a gestão de Anísio Teixeira (1931-35) passou por uma espécie de depuração que fez dela a experiência mais radical dentre aquelas executadas pelos educadores no próprio Distrito Federal e em vários estados brasileiros.

A possibilidade de reinvenção parece-nos inscrita na unidade dialética entre a necessidade política e o acaso, o acaso entendido não como irracionalidade ou absurdo, mas como resposta diferente do previsível já que na gestação de uma nova educação estão em ação várias estratégias em conflito, cada uma com suas probabilidades de tornar-se viável. Estas estratégias constituem uma zona de informação, de exploração e de escolhas do campo dos possíveis. A disputa entre elas pode favorecer a emergência da diversidade e da surpresa. O imprevisível carrega, portanto, a possibilidade do novo.132

O deslocamento do olhar da organização escolar para a cultura escolar amplia o objeto de investigação histórica, assim como redefine a organização escolar enquanto expressão e, ao mesmo tempo, um dos elementos produtores dessa cultura, entendida como conjunto de normas e práticas produzidas historicamente por agentes (sujeitos e/ou grupos) determinados, com finalidades específicas. Essas finalidades estão relacionadas à definição dos saberes a serem ensinados, das condutas a serem modificadas e de todo o processo não só de transmissão de saberes, mas principalmente de modificação do habitus pedagógico.133

Trabalhar sobre o entrechoque da cultura escolar com a cultura urbana é partir de um pressuposto teórico: o de que embora a cultura escolar seja reveladora das práticas culturais urbanas e seja também por elas produzida, possui uma peculiaridade. Esta peculiaridade está inscrita na margem de manobra que se expressa na elaboração, pelos sujeitos da ação educativa, de respostas diferentes daquelas programadas ou previstas por certos agentes e projetos racionalizadores e controladores das atividades escolares. Essa margem de manobra só se revela em táticas circunstanciais quando os sujeitos que sofrem a ação educativa dela se apropriam e modificam o seu significado, o que acarreta a própria remodelação ou recriação da ação em execução. Para recuperar essas táticas é imprescindível visualizar a política educacional no âmbito da sua elaboração cotidiana, com seus avanços, recuos e redirecionamentos. É justamente nessa elaboração que se dá a mediação entre as "certezas" e propostas do pensamento pedagógico e as duras pressões do contexto social.

A trajetória da escola pública carioca, tal qual a expusemos neste trabalho, teve, no seu horizonte, uma história das práticas pedagógicas. Não trabalhamos com categorias fechadas. Procuramos repensá-las em função da necessidade do nosso objeto. Ousamos enfrentar a simultaneidade dos processos políticos, culturais e pedagógicos, destacando certos aspectos. Não tivemos a pretensão de privilegiar o domínio cultural sobre os demais, mas nas nossas inferências tivemos a intenção de apresentar a cultura como problema. Esta maneira de visualizar a escola pública carioca permite que, ao final, retomemos num esforço de síntese os seguintes aspectos:

1 - O enfoque dos modelos dominantes de escolarização (Escola Tradicional x Escola Nova) é empobrecedor da realidade pedagógica. Seria oportuna, portanto, sua substituição nas pesquisas de história da educação pelo enfoque das múltiplas e diferenciadas práticas de apropriação desses modelos nas quais a ênfase da problematização recaia sobre os diversos usos que os agentes escolares fazem da instituição escolar, sobre a apropriação de práticas não escolares no espaço escolar e os múltiplos usos não escolares dos saberes pedagógicos.

2 - As reformas de instrução pública da década de 20 e 30 no Rio de Janeiro (e no país) constituíram estratégia de institucionalização da modernidade e tiveram como alvo, através da reorganização escolar, a mudança do habitus pedagógico e, por extensão, da mentalidade coletiva. Neste sentido, os Institutos de Educação, sofrendo a influência de instituições concorrentes da Universidade existente, os laboratórios, procuraram substituir a Igreja na tarefa de normatização e enquadramento dos costumes urbanos no trato do corpo, no uso do espaço e do tempo e na convivência social.

3 - O caráter inovador dessas reformas ocorridas em âmbito nacional foi o alargamento da concepção da linguagem escolar, superando o tradicional domínio oral e escrito e buscando a construção de todo um sistema de produção de significados de interação comunicativa.134 Os conteúdos da nova pedagogia que esta interação gerou e das estratégias de sua implantação na rede pública pelo Estado foram construídos principalmente por duas vertentes de interpretação da realidade: a histórico-sociológica, forjada pela matriz jurídica e que tinha na Escola de Recife sua inspiração, e a psicológica, forjada pelas teses produzidas nas faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia e pelas pesquisas produzidas nos laboratórios de Psicologia Experimental, existentes no país desde a década de 10.

4 - A secularização, que está no cerne destas reformas, levantou para os agentes da renovação escolar um problema: em contraposição ao significado integrador da religiosidade ela deveria ser capaz de propor um outro que se tornasse totalizador da experiência e do conhecimento pedagógico dos seus agentes e, portanto, produzisse novos valores. Neste sentido, o afastamento de uma interpretação sacralizada da vida social, no âmbito da escola, foi peculiar: manteve o apelo soteriológico, articulando-o às racionalizações trazidas pelas Ciências Humanas e técnicas de controle social em desenvolvimento nas primeiras décadas do século XX.

5 - As reformas de instrução pública do Rio de Janeiro foram apresentadas como paradigma dos novos rumos da instrução pública no país, ao mesmo tempo que tiveram São Paulo como paradigma. A peculiaridade da cultura urbana da cidade carioca, no entanto, não só resistiu à reprodução de um modelo de cidade, mas também reapropriou-se desse modelo com outros objetivos e mais de acordo com as características da história e da "vocação" da própria cidade.

6 - As propostas de modernidade pedagógica realizadas nas gestões de Antonio Carneiro Leão (1922-26) e Fernando de Azevedo (1928-30) expressaram seu compromisso com as oligarquias agromercantis do centro-sul que, elegendo presidentes Arthur Bernardes e Washington Luís, mantiveram o controle do sistema oligárquico durante a última década da Primeira República. Essas oligarquias, abertas a rearranjos econômicos e políticos, controlavam não apenas as atividades agroexportadoras, mas o próprio avanço da urbanização. As reformas de instrução pública que conduziram foram programadas para difundir as ideologias oficiais ameaçadas pela circulação de contra-ideologias, presentes nas fileiras da reação antioligárquica na vida da cidade. A gestão de Anísio Teixeira (1931-35) foi a mais discrepante do molde autoritário que, gestado em 20, teve sua culminância em 37. Por este motivo configurou-se, para os grupos hegemônicos no poder, uma estratégia de oposição dentro da estratégia oficial, já que questionava a noção de uma desigualdade inevitável e residual, presente, naquele momento, na visão da própria sociedade e expressa no projeto repartido de educação do governo federal (para as massas e para as elites).

7 - A escola carioca, no período estudado, manifesta ao mesmo tempo a negação, a afirmação e a reinvenção da modernidade da cidade numa trajetória que a retirou da esfera familiar, privada e religiosa para a esfera pública. Se nessa trajetória a preocupação disciplinar esteve presente, através de medidas diversas, elas nem sempre surtiram efeito. A insuficiente ampliação da rede escolar, apesar da sua notável expansão até meados de 30, e as resistências da sua cultura relativizaram todo esse esforço disciplinador.

8 - Sob uma atuação comum, a geração de educadores que se autodenominou "pioneira" e como tal foi vista incorporou e conviveu com concepções diferenciadas do moderno que ora se tocam, ora se afastam e ora se imbricam. Sua escolha existencial pela tarefa educativa é um nó onde se enlaçam a história pessoal, a experiência geracional e a produção intelectual. Desse nó parte um feixe de visões de mundo e de opções que denunciam o cruzamento de várias redes de significados construídos pela pertinência de classe, pela sua inserção social marcada por uma profissionalização adquirida num conjunto de opções limitadas, mas alargadas pela sua intensa e constante circulação espacial, institucional,(...)

9 – (...) campo educacional ocorreu através dessa geração que se apropriou dos saberes provenientes do campo religioso, jurídico e médico, recriando-os a partir das pesquisas educacionais realizadas em países europeus e americanos. Dessa forma, a especificidade epistemológica do campo educacional provém justamente do seu caráter compósito. Esta conjunção de saberes revela dentro do campo criado não só a complexidade das fronteiras entre os seus saberes, mas também o estabelecimento de relações de oposição, complementaridade, e/ou hegemonia entre eles. As décadas de 20 e 30, época da sua definição e consolidação, marcam o momento de maior prestígio político e social dos educadores profissionais, considerados vanguarda da intelectualidade e, de fato, introdutores e criadores das Ciências Sociais no país. Este momento, no entanto, expressa também o início de uma trajetória de decadência explícita não só no afastamento gradativo da pedagogia dos saberes que a constituíram, criando e reforçando uma imagem dos educadores como intelectuais de segunda categoria, mas também de uma efetiva perda do seu poder político, pois gradativamente foram afastados dos cargos decisórios e executivos afetos ao próprio campo.

10 - Nas décadas de 20 e 30 o campo educacional reuniu aspectos do saber religioso e jurídico subordinando-os a certos conhecimentos provenientes do saber médico. Este movimento, manifestou-se, sobretudo, na concepção da formação docente e de sua expressão sobre o "ser professor" realizada por homens e, sobretudo, às mulheres educadoras. O professor emergiu como uma figura híbrida, construída com as virtudes do médico, do guerreiro e do sacerdote. Esta, alimentada pelas interpretações do país que mostravam a necessidade de um educador nacional e de uma produção didática razoavelmente lida, que difundia um nacionalismo moralista, chocava-se, no entanto, com a rebeldia de uma realidade bastante adversa de sobrevivência que fez do professor e da professora não propriamente os heróis mas, sem dúvida, os seus representantes. O enigma da heterogeneidade, que encostou sempre contra a parede os sonhos, matizou o heroísmo épico e trágico dos líderes educacionais com o anti-heroísmo característico das condições da escola e do seu funcionamento cotidiano.

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Notas:

79 Luis Reznick. Tecendo o Amanhã (A História do Brasil no ensino secundário: programas e livros didáticos/1931 a 1945). Niterói, UFF, Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas em Filosofia, 1992, pp. 27-28. Dissertação de Mestrado.
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80 Antonio Candido, A Revolução de Trinta e a Cultura. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 2 (4): 27-36, abril de 1984, p. 33.
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81 Idem, p. 34.
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82 Luis Reznick, op. cit., pp. 49 e 55, 56.
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83 Jônathas Serrano (1855-1944) já era um intelectual consagrado na década de 30. Como vários professores de História, era formado em Direito. Possuía uma trajetória respeitável no magistério: professor catedrático do Colégio Pedro II de 1926; da Escola Normal do Distrito Federal (entre 1916 e 1937) e da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Destacou-se por sua ativa participação nos debates do momento e pela produção de livros de metodologia do ensino de História. Autor de inúmeros artigos e livros de História, Educação e Catolicismo, foi o principal formulador dos programas de 42 e ainda da reformulação de 40, quando da inclusão da História do Brasil como disciplina autônoma, além de participar nessa época como conselheiro da Comissão Nacional do Livro Didático. Ver Luis Reznick, op. cit., pp. 157-158. As reflexões de Jônathas Serrano sobre cinema aparecem na primeira edição da Epítome da História Universal, F. Briguiet & Cia., 1913, e em Metodologia da História na Aula Primária, Ed. Alves, 1917, p. 20 em nota e p. 51 em texto e nota.
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84 Juracy Silveira, "Relatório apresentado pela diretora da Escola Vicente Licínio Cardoso (3-8) ao Exmo. Sr. Superintendente da 3ª circunscrição de Ensino Elementar", 1933, in: Arquivo Anísio Teixeira, série produção intelectual, AT Silveira, J pi 33.00.00, CPDOC/FGV.
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85 Julieta de Godoy, Ladeira, em carta datada de 10/10/93 à autora deste texto, faz um interessante depoimento sobre a prática escolar da redação a partir de gravuras, geralmente estampas publicadas pela Editora Melhoramentos. Diz ela: "(...) Quanto a data das ilustrações, o que sei é que uma pessoa da minha família, nascida em 1926, entrou para a escola aos 7 anos (1933) e estudou linguagem como chamavam então a redação, nesses quadros da Melhoramentos. Eram rotogravuras. Ficavam, nas classes, em cavaletes, como os que usamos agora para a exposição de charts, por exemplo. Quando os alunos entravam na classe já encontravam o quadro do dia exposto. Iam se familiarizando com ele até a hora de fazer a narrativa. As ilustrações devem ter vindo da Alemanha (não têm nada de brasileiras) - mas isso não fazia diferença para as crianças que adoravam vê-las. Diante desse depoimento faço os cálculos: se em 1933 as ilustrações estavam nas escolas, já sendo usadas por professores, devem ter começado a aparecer uns cinco anos antes, não acha? Temos então sua implantação por volta de 28. Final dos anos 20. Será isso? Deduções. Não adianta se perguntar para a Melhoramentos - lá ninguém sabe informar nada disso. Coisas do Brasil. Uma pena pois muitos escritores devem ter aprendido Linguagem através desse método que foi precursor do uso da imagem." Ao relembrar o seu processo de criação através da escrita, vários autores, estimulados pelas estampas guardadas no arquivo da Editora Melhoramentos e usadas nas escolas primárias brasileiras, na década de 30, fizeram renascer suas memórias de infância em poesias e contos repletos de delicados sentimentos e rica inventividade. Ver Julieta de Godoy Ladeira, Lições de Casa - Exercícios de Imaginação, São Paulo, Cultura, 1979.
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86 Ver documentos relativos ao inquérito sobre propaganda comunista no IERJ in: Documentos (507) referentes ao Instituto de Educação, Arquivo Lourenço Filho, série temática, LF/Instituto de Educação, Pasta XII, documentos nº 1, 2, 3, 4, 5 e 11, CPDOC/FGV.
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87 Depoimento dado pela professora Stella Guedes Muniz em outubro de 1983. Ela trabalhou com as primeiras séries primárias das escolas situadas em Deodoro e Gávea, num período de 14 anos, a partir de 1928. Apesar das reformas educacionais, continuou alfabetizando suas turmas pelo método da silabação e o único material didático que usava eram letras ou sílabas recortadas.
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88 Sobre os testes de classificação nas escolas primárias, sua concepção e seus problemas na gestão de Anísio Teixeira ver Clarice Nunes, op. cit., (1991), pp. 251-270.
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89 A Federação Vermelha dos Estudantes desenvolveu suas atividades entre 1932 e 1935. Procurou congregar estudantes secundaristas e universitários, um dos quais, Jacob Warchawsky, seria assassinado pela Polícia do Estado Novo. A atuação dessa Federação permaneceu na ilegalidade. Artur José Poerner, O Jovem Poder - História da Participação Política dos Estudantes Brasileiros. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 132.
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90 Gilda de Agostini Luizzi, apud Liéte de Oliveira Accácio, op. cit., p. 198.
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91 Ver texto de crítica à experiência do self-government aplicada à Escola Amaro Cavalcanti por Anísio Teixeira e Venâncio Filho. Arquivo Anísio Teixeira, produção intelectual, AT/S Ass. Pi 32/36.00.00, CPDOC/FGV.
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92 Melquíades Pereira Jr. "Fatores de retardamento da vitória completa da Escola Nova" in: Revista de Educação. São Paulo, (5): 156-159, março de 1934. Não era só Melquíades Pereira Jr. que apontava o descompasso entre o estágio das normalistas na Escola de Aplicação do Instituto de Educação e a "realidade" das escolas isoladas. As alunas normalistas do Instituto de Educação do Distrito Federal, concluintes no ano de 1939, queixavam-se da dificuldade de trocar o ambiente da escola primária do Instituto pelo das escolas suburbanas em que iam trabalhar ao iniciar sua carreira como professoras primárias. Liéte de Oliveira Accácio, op. cit., pp. 26 e 131.
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93 Roberto Romano, op. cit., pp. 26 e 131.
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94 Jacques Le Goff, "Antigo/Moderno" in: Enciclopédia Einaudi. Porto, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p.374.
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95 Marta Maria Chagas de Carvalho, "Notas para reavaliação do movimento educacional-brasileiro (1920-1930)" in: Cadernos de Pesquisa. São Paulo (66): 3-12, agosto de 1988, p. 6.
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96 Mariza Correa, As Ilusões da Liberdade: a Escola Nina Rodrigues & a Antropologia no Brasil. São Paulo, FFCLCH/USP, Departamento de Ciências Sociais, 1982, p. 258, tese de Doutoramento.
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97 Sérgio Adorno, Os Aprendizes do Poder - Bacharelismo Liberal na Política Brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. Ver especialmente as conclusões, pp. 235-246.
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98 M. B. Lourenço Filho, "A Psicologia no Brasil" in: Fernando de Azevedo, As Ciências no Brasil. São Paulo, Melhoramentos, s.d., v. 2, pp. 263-296.
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99 Idem, p. 267.
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100 Segundo Lourenço Filho, Antonio Sampaio Dória, bacharel em Direito, foi o primeiro na bibliografia pedagógica brasileira a mencionar os testes mentais embora não os houvesse praticado sistematicamente. Considerando-se seu discípulo é que faz, na trajetória histórica que constitui sobre a Psicologia no Brasil, menção a sua formação médica interrompida. "A Psicologia no Brasil" in; Fernando de Azevedo, op. cit., s.d., pp. 275-276.
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101 O livro recebeu críticas elogiosas no plano nacional e internacional. Foi calorosamente saudado por Rocha Pombo, Pandiá Calógeras, Afonso Taunay, Gustavo Barroso, Linn Smith, Vera Kelsey, Ray Josephs, Roger Bastide, Donald Pierson e Earl W. Thomas, entre outros. Ver Prefácio da Editora Melhoramentos in: M. B. Lourenço filho. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo, Melhoramentos, 3ª ed., s.d., p. 11. Hélio Silva faz uma análise interessante da obra com a qual concordamos em muitos pontos assumidos neste texto. Hélio Silva et alii. Os Pioneiros da Educação Brasileira - Atualidade de Lourenço Filho. Rio de Janeiro, FGV/IESAE, 1983, pp. 1-80. Relatório de Pesquisa.
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102 Hélio Silva, op. cit., p. 6.
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103 Idem, pp. 1-39.
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104 Hélio Silva, op. cit. , p. 60.
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105 O modelo indiciário foi baseado na semiótica, cujas raízes eram muito antigas, pois o patrimônio cognoscitivo nele presente já podia ser encontrado no homem caçador e seu modelo venatório de conhecimento do mundo. As analogias entre este modelo e o dos textos divinatórios das antigas civilizações também são efetivos, segundo Carlos Ginzburg, Mitos, Emblemas e Sinais - Morfologia e História. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 143-180.
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106 Sobre o papel de Afrânio Peixoto como médico e intelectual ver Micael M. Herschmann. Os Poetas do progresso: o discurso médico e a construção do Brasil moderno. RJ, 1992, 26 p, mimeo, e Joaquim Antonio Cesar Mota et alii, Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947): ensaio biográfico. Belo Horizonte, 1992, 52 p., mimeo.
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107 M. B. Lourenço Filho. Testes ABC para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita. São Paulo, Melhoramentos, 1933, pp. 12 e 13.
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108 M. B. Lourenço Filho, op. cit., (1933), pp. 55-89.
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109 Hélio Silva, op. cit., p. 75.
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110 Lourenço Filho, in: Fernando de Azevedo, op. cit., s.d., passim.
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111 Clarice Nunes, op. cit., 1991, pp. 277-278.
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112 Lourenço Filho, in: Fernando de Azevedo, op. cit., s.d., p. 274.
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113 Mesmo que outros trabalhos no plano da Psicologia Educacional tenham sido produzidos nas cidades brasileiras ao mesmo tempo ou tenham até, em casos isolados, precedido o trabalho paulista, embora com publicação anterior (parece ser o caso de Isaías Alves, na Bahia), pela amplitude, consistência e força de irradiação é inegável a presença e a hegemonia de São Paulo e, obviamente, de Lourenço Filho no grupo gestor deste impulso da área.
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114 Como demonstra Mariza Correa, na segunda metade do século XIX o laboratório passou a ter importância crescente na formação do especialista, antecipando-se nesse aspecto às próprias faculdades de Medicina. Segundo a autora, os trabalhos sobre moléstias tropicais da "escola tropicalista baiana" (Patterson, Wucherer e Silva Lima), as investigações da "trindade oftalmológica nacional" (Moura Brasil, Gama Lobo e Hilário Gouveia) e a pesquisa experimental de Manguinhos foram realizadas em laboratórios, obtendo notoriedade. Em contrapartida ao ensino teórico das faculdades, os laboratórios desenvolviam a pesquisa tendo influído, apesar das resistências, para a renovação das faculdades de medicina. O histórico da Psicologia no Brasil, elaborado por Lourenço Filho, oferece uma idéia detalhada da presença dos laboratórios no desenvolvimento da Psicologia Educacional. Mariza Correa, op. cit., 1982, pp. 70-71, e Lourenço Filho, in: Fernando de Azevedo, op. cit., s.d., pp. 268-280.
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115 A análise deste dossiê foi realizada em nossa tese de Doutoramento e aqui retomada. Clarice Nunes, op. cit., 1991, pp. 362-363. Ver também Instituto de Educação (destaque para os documentos de autoria de Anísio Teixeira). Documentos (54) produzidos e utilizados pelo corpo docente do Instituto de Educação. Arquivo Anísio Teixeira, série Produção Intelectual, AT I.E. pi 32.00.00, CPDOC/FGV.
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116 A crítica dos professores ao enfrentar problemas de compreensão e de aplicação dos testes aparece em nossa tese de Doutoramento, op. cit., 1991. Especialmente o item 4.1.1. Uma questão de classe pp. 251-289. Sobre esta crítica relativa às experiências paulistas ver Onofre Penteado Jr., "Os testes ABC como meio de seleção de classes" in: Revista de Educação, Órgão do Departamento de Educação do Estado de São Paulo (I): 185-193, março de 1933.
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117 Sobre a ruptura entre a Medicina e a Antropologia, ver Mariza Correa, op. cit., p. 170.
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118 Idem, ibidem.
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119 Afrânio Peixoto introduz o conceito de medicamentação do crime na sua tese inaugural intitulada Epilepsia e crime, apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia, no ano de 1897. Nela afirma que o epilético seria predisposto ao crime, sendo este uma continuidade lógica da sua moléstia, razão pela qual sugeria considerar o epilético um ser criminalmente irresponsável que deveria ser internado em colônias penais para a proteção da sociedade. Leonídio Ribeiro endossa a postura de Afrânio e a radicaliza. Em 1936 ele cria, no Rio de Janeiro, o Laboratório de Biologia Infantil, com o fim de analisar as causas físicas e mentais da criminalidade juvenil e, ao mesmo tempo, apurar as técnicas do tratamento de menores delinqüentes. Joaquim Cesar Mota et alii, op. cit., Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947): Ensaio Biográfico. Belo Horizonte, 1992, mimeo, pp. 10 e 11, e Lourenço Filho, In: Fernando de Azevedo, op. cit., s.d., p. 273.
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120 Idem, pp. 191-194.
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121 Não apresentamos neste texto a contribuição de Arthur Ramos dentro do "psicanalitismo". Sobre este intelectual e sua produção no âmbito da pesquisa pedagógica, ver nossa tese de titular, já citada, pp. 151-157.
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122 Mariza Correa, op. cit., 1982, pp. 68-70.
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123 Sérgio Adorno. "Os Aprendizes do Poder - Bacharelismo Liberal na Política Brasileira", op. cit., pp. 154-155.
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124 Idem, pp. 91-155, 160, 233 e 234.
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125 Idem, pp. 235-246.
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126 Idem, p. 243.
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127 Clarice Nunes, "A Cultura Jurídico-Política e a Educação Brasileira: um Campo de Estudos em Aberto." in: Educação em Revista, Belo Horizonte (18/19): 6-14, dez./93-jun./94.
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128 Octávio Ianni. "A idéia do Brasil Moderno" in: Resgate. Campinas (1):19-38, 1990, p.32.
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129 Como adverte Antonio Candido, a criação da USP, iniciativa da cultura burguesa, abriu a oportunidade para a formação moderna de um grupo inconformado em vários níveis, constituído de burgueses inquietos e pequenos-burgueses (professores primários comissionados, filhos de fazendeiros falidos), que formaram uma visão radical modesta, cujos frutos foram positivos e se constituíram numa tradição. Seu molde era progressista, quando comparado ao das velhas faculdades existentes nas quais os estudantes, independente de sua origem social, eram formados numa visão estritamente conservadora. Cf. Antonio Candido, Teresina e etc. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. Pp. 95-106.
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130 Clarice Nunes, "História da educação brasileira: novas abordagens de velhos objetos" in: Teoria e Educação. Porto Alegre (6): 151-182, 1992, p. 155.
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131 Leandro Konder, A Derrota da Dialética. Rio de Janeiro, Campus, 1988, p. 183.
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132 Henry Lefebvre, op. cit., pp. 201-202.
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133 Nesta afirmação estamos realizando uma leitura particular de dois conceitos básicos: o de cultura escolar, de Dominique Julia, e o de habitus, de Pierre Bourdieu. Ao reuni-los numa formulação comum, modificamos, quanto à ênfase no habitus pedagógico e não quanto à substância, para os fins de nossa análise, a concepção de Dominique Julia. Dominique Julia. "La culture scolaire comme objet historique" in: Conferência de Encerramento do XV ISCHE, Lisboa, 1993, mimeo, 21 p., e Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico. Lisboa, Difel, 1989, pp. 59-73.
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134 Esta é a tese de Nicolau Sevenko no artigo "Transformações da Linguagem e Advento da Cultura Modernista no Brasil." Estudos Históricos - os anos 20, Rio de Janeiro, 6(11): 78-88,1993.
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