SCHERER,Vicente, Arcebispo. Memorial dos bispos gaúchos ao Presidente da República sobre a Escola Pública Única. Vozes. Petrópolis, v.52, maio 1958. p.362-364.

Memorial dos bispos gaúchos aoPresidente da República sôbre a Escola Pública única.

Protestando contra a "revolução social, através da escola, preconizada pelos órgãos governamentais", o arcebispo d. Vicente Scherer e os bispos da Província Eclesiástica de Pôrto Alegre encaminharam ao presidente da República o seguinte memorial:

"0 Arcebispo Metropolitano e os Bispos da Província Eclesiástica de Pôrto Alegre pedem vênia a Vossa Excelência para representar acerca das gravíssimas conseqüências que, com repercussão sôbre tôda a vida nacional, advirão da insistência com que órgãos do Govêrno Federal propugnam a implantação exclusiva de sistemas de ensino oficiais em todo o País, do mesmo passo que hostilizam, e sem tréguas, a iniciativa particular nesse mesmo campo de atividade.

Essa atitude de órgãos do Govêrno Federal discrepa nitidamente dos princípios adotados a respeito pela Constituição Federal.

A Constituição, se declara que "a educação é direito de todos" (art. 166), declara também que "será dada no lar e na escola" (art. 166) e, por igual sublinha que "o ensino dos diferentes ramos... é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem (art. 157)".

A mesma Constituição reconhece a insuficiência dos sistemas oficiais de ensino, dispondo sejam "as emprêsas industriais e comerciais, em que trabalhem mais de cem pessoas... obrigadas a manter ensino primário gratuito para os seus servidores e os filhos dêstes" (art. 168, III). Tendo em atenção a mesma insuficiência do ensino oficial, já agora no plano do ensino técnico-profissional, a Constituição, ainda, prescreve que "as emprêsas industriais e comerciais são obrigadas a ministrar, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores, pela forma que a lei estabelecer" (art. 168, IV). A mesma insuficiência, enfim, do ensino oficial é causa de que, no texto constitucional, se estenda a garantia de vitaliciedade aos professôres do ensino superior livre (art. 168, VI). Essa garantia, peculiar ao cargo público, e dirigida contra possíveis atos de arbítrio do Poder Legislativo e do Poder Executivo, só se compreende seja estendida aos estabelecimentos particulares, tendo-se em consideração a manifesta e tradicional predominância dêstes últimos na organização permanente do nosso ensino superior.

E, se assim é, se a mesma Constituição da República não só proclama a liberdade de ensino em todos os ramos (art. 166 e 167), como reconhece a insuficiência da iniciativa oficial para assegurar a todos, de modo efetivo, o direito à educação (art. 166) – por discrepante da Constituição se há de ter a atitude daqueles órgãos governamentais que se orientam contra êsses princípios, ao rumo de crescente limitação coerciva do ensino privado, guerreando-o, e êste, como adverso aos interesses nacionais.

A idéia de que todo o ensino deve emanar do Estado não é nova, mas é certamente alheia à tradição brasileira e à mesma Constituição do País.

Na "República" de Platão, na "Civitas Solis" de Campanella, na "Nova Atlantis" de Bacon, não é difícil descobrirem-se antecedentes, mais ou menos definidos, ainda que nascidos de divagações de fantasia, para o princípio que se pretende impor ao nosso país. Trágico, porém, é que, fora das concepções utópicas dos filósofos, a idéia, cuja realização se persegue, entre nós, com tal pertinácia, é, já hoje, um dos postulados do socialismo militante e, em têrmos de execução, preparação necessária à gradativa implantação dêste. Escreveu, a propósito, um destacado escritor nacional: "Os extremistas pretendem que só pela desaparição dos elementos constitutivos das classes se poderá realizar a unidade dos tipos de escolas. A escola única só se faria como conseqüência. Seria improfíquo tentar-se a acessibilidade da escola por tôda a população, e a unidade de escola, antes de se nivelarem, violentamente, todos. A revolução, causa; a escola, efeito. Fora daí, tudo seria ilusório. Não é isso que pensam os socialistas. Querem a escola única como preparatória e executora da Revolução social". (Pontes de Miranda, Direito à Educação, Rio de Janeiro, 1933, p. 84).

Tal é o que prega abertamente entre nós o professor Anísio Teixeira, com a qualidade e responsabilidade de diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e de secretário-geral da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Ainda que inculque não advogar "o monopólio da educação pelo Estado" (Educação não é privilégio, Rio de janeiro, 1957, p. 114), – o que não admira, porque o socialismo, em suas correntes predominantes não é estatista – o professor Anísio Teixeira espera da escola pública ou comum, que tão ardentemente preconiza, os mesmos resultados pré-revolucionários, previstos, com ansiosa expectativa, pela doutrina socialista.

"Exatamente - escreve o professor Anísio Teixeira - porque a sociedade é de classes é que se faz ainda mais necessário que as mesmas se encontrem em algum lugar comum, onde os preconceitos e as diferenças não sejam levados em conta e se crie a camaradagem e até a amizade entre os elementos de uma ou de outra" (Educação não é privilégio, cit., p. 114 e 115). Tal conceito foi literalmente reproduzido pelo professor Anísio Teixeira, em entrevista publicada na imprensa do País (Correio do Povo e Diário de Notícias, de Pôrto Alegre, de 28 de fevereiro de 1958), com a qual o mesmo professor entendeu de replicar ao discurso, a propósito, pronunciado pelo arcebispo metropolitano de Pôrto Alegre.

Nenhuma dúvida pode haver acêrca da orientação, nesse respeito, do professor Anísio Teixeira. A sua escola pública ou comum é também oficial e única. "A escola primária seria uma só, administrada na ordem municipal e organizada pelo Estado, dentro das bases e diretrizes federais, e as escolas médias e superiores teriam instituições com administração autônoma, à maneira de autarquias também organizadas pelos Estados e sujeitas aos princípios da lei federal". (A Municipalização do Ensino Primário, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 27, n. 66, 1957, p. 24). O endereço político-social da escola oficial, pública ou comum é, à sua vez, segundo o professor Anísio Teixeira, o de preparar o povo para as reivindicações sociais.

Sinala êle, expressivamente, o seu pensamento ao ensejo: "Reivindicações sociais, para que a escola iria preparar o povo, amadureceram e estão sendo quiçá atropeladamente satisfeitas, com ou sem fraude aparente, dentro da aceleração do processo Histórico impedindo-nos de ver, com a necessária exatidão, quantas nos faltam ainda de reivindicações anteriores e condicionadoras, não satisfeitas no devido tempo e, por isto mesmo, mais difíceis ainda de apreciar e avaliar exatamente". (Educação não é privilégio, cit., pp. 81 e 82).

Não é lícito, porém, admitir-se que, mercê de inexplicável complacência, órgãos governamentais preparem, entre nós, uma Revolução social, através da escola, já porque as administrações públicas não se destinam por essência a preparar Revoluções sociais, já porque a tradição cristã do povo brasileiro frontalmente repele e repudia os mesmos fundamentos do socialismo como doutrina. "Socialismo religioso, socialismo cristão, - disse admiravelmente Pio XI, – são têrmos contraditórios: ninguém pode ser, ao mesmo tempo, bom católico e verdadeiro socialista" (Quadragesimo Anno, 46).

O povo brasileiro, na verdade, não quer que se transforme, por uma revolução social, a começar da escola, a República Brasileira em uma República Socialista. Que o queiram, e proclamem êsse desejo, servidores elevadamente situados do Ministério da Educação e Cultura, é fato, por isso mesmo, que deverá merecer especial atenção dos Altos Poderes da República.

IV

Tomam, pois, o Arcebispo Metropolitano e os Bispos, que êste subscrevem, a liberdade de solicitar a Vossa Excelência, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, após a exposição que ficou deduzida, as providências necessárias e inadiáveis, para a cessação dêsse estado de coisas, tão nefasto, a qualquer respeito, aos mais legítimos e excelsos interêsses nacionais.

Não ignora a Igreja a gravidade e a extensão do problema educacional brasileiro, particularmente quanto ao ensino primário, a reclamar urgentemente solução capaz de sobrepor-se às alarmantes deficiências, que tanto e tão fundamente afetam a vida nacional. A solução dêsse problema, dedica a Igreja o melhor de seu esfôrço, não recusando, para resolvê-lo, a colaboração de todos os homens de boa vontade. Nesse tentamem, não esmorecerá a Igreja, já que o feliz êxito, no realizá-lo, é, de manifesto, essencial, não só ao bem das almas, como ao progresso e ao futuro da Nação.

Valem-se os signatários da oportunidade para renovarem a Vossa Excelência, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, a expressão de seu profundo respeito e de sua perfeita estima e consideração.

Pôrto Alegre, 29 de março de 1958.

t Vicente Scherer, Arcebispo Metropolitano, de Pôrto Alegre.
t Antônio Reis, Bispo de Santa Maria.
t Antônio Zattera, Bispo de Pelotas.
t Benedito Zorzi, Bispo de Caxias.
t Cláudio Colling, Bispo de Passo Fundo.
t Luís de Nadal, Bispo de Uruguaiana.
t Frei Cândido Maria, Bispo Auxiliar de Caxias.
t Luís Vítor Sartori, Bispo Coadjutor de Santa Maria.
t Edmundo Kunz, Bispo Auxiliar de Pôrto Alegre".

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