GÓES, Moacyr de. Do pensamento de Anísio Teixeira à prática de De Pé no Chão também se Aprende a Ler. In: Seminário "Um olhar sobre Anísio". Mesa Redonda "Gestão da Educação", Rio de Janeiro, 3 set. 1999. Rio de Janeiro, UFRJ/CFCH/PACC, Fundação Anísio Teixeira, 1999.

Do pensamento de Anísio Teixeira à prática de
De Pé no Chão também se Aprende a Ler

O objetivo desta reflexão é estabelecer alguns pontos comuns entre o pensamento de Anísio Teixeira e a prática do movimento de educação popular De Pé no Chão também se Aprende a Ler ( Natal - RN - 1960-64).

I - A GESTÃO PÚBLICA DA ESCOLA

1. - O pensamento de Anísio Teixeira: a defesa da escola pública, democrática e laica.

2. - A prática de De Pé no Chão:

a) - Gestão pública da escola.

O movimento de educação popular (oriundo dos Comitês Nacionalistas, organizações políticas que deram sustentação à eleição de Djalma Maranhão para Prefeito de Natal, 1960) integra-se à secretaria Municipal de Educação (Natal, fevereiro de 1961) e é através desta que a proposta de educação é exercida. Esta especificidade de De Pé no Chão diferenciam-no dos demais movimentos fundacionais da educação popular dos anos 60, uma vez que, em relação a estes, há uma transferência de recursos públicos para instituições privadas que desenvolverão a política educacional. Assim ocorre com o Movimento de Educação Popular (MCP - Recife, maio de 1960), com o Movimento de Educação de Base (MEB, março de 1961) e o Centro Popular de Cultura (CPC - abril de 1961). Estes três movimentos fundacionais da educação popular se desenvolvem com recursos públicos, transferidos, respectivamente, para uma pessoa jurídica de direito privado (MCP), para a Igreja Católica (MEB) e para uma entidade de classe (UNE). De Pé no Chão, ao contrário, é através do poder público, através da Secretaria Municipal de Educação de Natal, que a educação pública, democrática e laica é exercida na administração do prefeito do Prefeito Djalma Maranhão. Por isso, quando se trata dos movimentos de educação popular dos anos 60, consideramos De Pé no Chão como a prática mais próxima ao pensamento de Anísio Teixeira.

b) - Escola democrática.

- Entre 1940 e 50, Natal tivera um incremento de 88,22% de população (de 54.836 para 103.215 habitantes) e as oportunidades de matrículas haviam diminuído (um grupo escolar fora transformado numa Faculdade de Direito). Os índices de analfabetismo eram alarmantes.

- Em fevereiro de 1964, após três anos de funcionamento de De Pé no Chão, a Prefeitura, pelos jornais e cartazes, fazia a Chamada Escolar Constitucional, pois havia matrícula para todos e isso ocorria numa sociedade pobre do Terceiro Mundo. Os Acampamentos Escolares e o treinamento de quadros para o magistério haviam baixado os custos da educação. A escola poderia ser democrática - já não era mais privilégio, como recomendava Dr. Anísio.

c) - Escola laica.

Funcionando numa rede de escola pública, De Pé no Chão preservava a laicização da educação, o que o diferenciava do MEB, por exemplo, de conotação confessional católica.

II - O PAPEL DOS PROFESSORES

1. - O pensamento de Anísio Teixeira: a escola são seus professores.

2. - A prática de De Pé no Chão: diante da precariedade do ensino normal, o município de Natal assume a formação do magistério e cria o Centro de Formação de Professores (Lei 1.301/62). Face à realidade de um magistério leigo, o CFP não é instituto de educação comum. Ele é diversificado em seus objetivos:

a) - Cursos de Emergência (destinados ao treinamento de Regentes de Classes);

b) - Curso Ginasial Normal (para treinamento de Instrutores de Ensinno preparando pessoal para a alfabetização, primeira e segunda séries da Campanha);

c) - Curso Colegial Normal (para a formação de professores);

d) - Escola de Demostração (para ensino da prática didática).

A Coordenação e a Supervisão eram exercidas por pessoal diplomado na Escola Normal do Estado e Faculdade de Filosofia da Universidade. Característica de De Pé no Chão era o acompanhamento: cada grupamento de vinte docentes leigos (treinados pelo CFP) trabalhava sob a supervisão de um profissional qualificado.

Dados estatísticos - docentes qualificados: 243 monitores, em 1961; 410 monitores em 1962, e 500 monitores, 1963. Quadro de 32 orientadores/supervisores. Discentes: 8.000 alunos, em 1961; 15.000 alunos, em 1962 e 17.000 alunos em 1963. (Matrícula acumulada de 40.000 alunos, numa população de 160.000 habitantes em Natal, à época). Índices de aprovação: 60%, 74% e 85% em 1961, 62, 63, respectivamente.

A valorização do docente, com destaque para sua função social, foi a prática de De Pé no Chão, afinada com o pensamento de Anísio Teixeira (exemplos: visitas semanais do Prefeito Djalma Maranhão aos Acampamentos Escolares; reuniões técnicas semanais em todos os níveis decisórios da Campanha; articulações da escola com as Praças de Cultura, com as bibliotecas e os círculos de leitura, com a cultura popular e os autos folclóricos, com o funcionamento dos Círculos de Pais e Mestres que se transformaram em canais de mobilização e organização para reivindicações de melhor qualidade de vida para as comunidades pobres.

III - EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO

Consolidada a política de erradicação do analfabetismo, a Prefeitura acrescentou à sua proposta a Campanha De Pé no Chão também se Aprende uma Profissão (julho de 1962), com o funcionamento de 17 cursos de iniciação profissional e que diplomaria 700 alunos (crianças, adolescentes e adultos) em setembro de 1963. Grandes discussões precederam essa decisão, pois, De Pé no Chão também se Aprende a Ler sempre defendera para suas crianças uma escola lúdica, daí a importância curricular da recreação, dos cânticos e danças folclóricas.

Assim, em seu exílio do Uruguai, em Montevidéu, Djalma Maranhão teria morrido mais tranqüilo, em 1971, se tivesse tido a oportunidade de ouvir Anísio Teixeira afirmar, em oração de paraninfo na Universidade da Bahia, em 1967: "O essencial é que o conhecimento já não é apenas necessário para melhor compreender a vida, mas é instrumental para o próprio trabalho, que se vai fazer cada vez mais científico e tecnicamente qualificado. A educação passa a ser fundamentalmente a educação para ensinar a trabalhar desde o nível primário ao superior. As formas de trabalho, sejam as de produção ou de serviço, passam todas a exigir treino escolar e saber de tipo intelectual e técnico".

Por essas e outras é que não fica difícil estabelecer pontos convergentes entre o pensamento de Anísio Teixeira e a prática de De Pé no Chão. Sejam os ocorridos na claridade dos anos 60, quando do período do fazer, da ação, e também, posteriormente, quando da avaliação dos resultados, essa já no período do obscurantismo, após o Golpe de 1964.

IV - A CONCEPÇÃO DA ESCOLA

São múltiplos os textos nos quais Anísio Teixeira revela sua concepção da escola. Num deles - seu pronunciamento na III Conferência Nacional de Educação, 1966 - ele explicita o papel do aluno quando propôe: o estudante na escola-classe; o trabalhador nas oficinas das atividades industriais; o cidadão nas atividades sociais; o esportista no ginásio; o artista no teatro e nas demais atividades de arte.

Esses espaços culturais foram ocupados pela prática de De Pé no Chão e visíveis nos momentos em que a campanha evolui da simples alfabetização para o ensino das primeiras quatro séries do ensino primário; quando ao lado desta escola cria-se a Campanha De Pé no Chão também se Aprende uma Profissão; quando o exercício da cidadania de professores e estudantes cria, nos círculos de Pais e Mestres, um canal reivindicante de melhoria das condições de vida das comunidades pobres; quando nos Acampamentos Escolares, nas classes de recreação intensiva, é aberto o caminho para as práticas esportivas; e, finalmente, quando a criança evolui do lúdico João Redondo (mamulengo) para o aprendizado e demonstração do teatro dos autos populares e folclóricos (bambalôs ou cocos de roda, fandangos e lapinhas, pastoris, cheganças, congos etc.), além do convívio freqüente com os artistas e suas organizações locais.

V - PRATA DE CASA

Na III Conferência Nacional de Educação, realizada na Bahia, em 1966, deverá ter ressoado o clamor de denúncias aos MEC-USAID, impostos pela militarização do Ministério da Educação após o Golpe de Estado de 1964. Talvez seja isso que motiva o ânimo de Anísio Teixeira ao enfatizar, falando de seu Centro Educacional Carneiro Ribeiro: "Tudo isso se fez com a prata de casa. Não houve para esta experiência nem auxílio nem assistência técnica estrangeira de qualquer natureza".

E, aqui, mais um ponto em comum do pensamento de Anísio Teixeira e o Governo de Djalma Maranhão. A gestão da educação pública em Natal se fez sob pesado cerco financeiro e ideológico da Aliança para o Progresso, antecessora dos acordos MEC-USAID. A política americana no Brasil, em preparação ao Golpe de 1964, reforçou as lideranças anti-jango de Lacerda e anti-Arraes de Aluízio Alves, no Rio Grande do Norte. Foi tão alto o financiamento e a chamada ajuda técnica da Aliança para o Progresso ao Governo do Estado que Djalma Maranhão chamou a última fase de Pé no Chão de Escola brasileira construída com dinheiro brasileiro para diferenciar os serviços de educação do município dos do estado. Como no Centro Educacional da Bahia, em Natal, "tudo se fez com a prata da casa".

VI - ESCOLA RECRIADA

Ensina mestre Anísio, em 1962, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos: "A verdade é que a escola, como instituição, não pode verdadeiramente ser transplantada. Tem de ser recriada em cada cultura, mesmo quando essa cultura seja politicamente o prolongamento de uma cultura matriz".

Estas palavras absolvem De Pé no Chão daquelas ousadias para as quais alguns conservadores burgueses torciam o nariz. A gestão da educação municipal em Natal, de novembro de 1960 a abril de 1964, em pelo menos quatro momentos, recriou a escola tradicional, de acordo com a cultura local, sem perder de vista, evidentemente, a universalização e o conhecimento historicamente acumulado. Vejamos:

1 - O partido arquitetônico da escola. Na impossibilidade financeira da construção de prédios de alvenaria, a solução encontrada foi a construção do Acampamento Escolar: conjuntos de cobertura de palha de coqueiro, sem paredes laterais, em cima de piso de barro batido, de 30m. por 8m. onde se abrigavam quatro salas de aula. Cada Acampamento variava de dois a quatro desses conjuntos que se completavam com um pavilhão redondo para as práticas de recreação e esportes e funcionamento dos Círculos de Pais e Mestres e teatro de arena. Integravam, ainda, o Acampamento, aviários e hortas. De alvenaria, apenas, os sanitários, as duas pequenas salas para a direção, a secretaria, o almoxarifado e as caixas da biblioteca rotativa para empréstimos de livros e docentes e discentes.

2 - Formação de quadros. Considerando, à época, a insuficiência de uma magistério diplomado, De Pé no Chão qualificou seus próprios quadros e criou um Centro de Formação de Professores, assumindo o ensino normal, que trabalhava a curto, médio e longo prazos, conforme já vimos.

3 - Criou seu próprio discurso pedagógico. Face ao material didático alienado, predominante no mercado de então, o CFP passou a criar seus próprios textos didáticos que seriam aplicados nas escolas - inclusive um "Livro de Leitura de Adultos", uma adaptação do equivalente ao do MCP, do Recife.

4 - A sala de aula jamais foi largada à própria sorte: o acompanhamento técnico - pedagógico se fez na proporção de um supervisor para vinte monitores.

Essas quatro especificidades em De Pé no Chão fazem deste movimento de educação popular, com gestão pública, uma prática da proposta de Anísio Teixeira, em 1962 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, isto é, uma escola recriada.

VII - MUNICIPALIZAÇÃO

Diz Anísio Teixeira em seu conhecido livro Educação não é privilégio (1967, segunda edição) que "a grande reforma da educação é, assim, uma reforma política, permanentemente descentralizante pela qual se criem nos municípios os órgão próprios para gerir os fundos municipais de educação, estes modestos mas vigorosos, no sentido da implantação local de sistemas educacionais".

Aqui, mais um ponto convergente do tema que vimos trabalhando até agora. A educação municipal em Natal foi criada por Djalma Maranhão ainda em seu primeiro mandato de prefeito nomeado pelo governador (1956-59). Até então a escola pública era exclusivamente a gerida pelo Estado. E a partir de seu segundo mandato, agora já eleito pelo povo (1960-64), é desencadeada a Campanha De Pé no Chão também se Aprende a Ler - cronologicamente o segundo movimento de educação popular dos anos 60 e o primeiro sob gestão pública. Assim, aqui cabe como uma luva a pregação de mestre Anísio.

VIII - A FUNÇÃO DO INTELECTUAL

No seu texto conhecido como A Longa Revolução do Nosso Tempo, separata da Revista de Informação Legislativa (Brasília, 1968), diz Anísio Teixeira: "A história do desenvolvimento da sociedade conteporânea é uma ilustração do modo por que as idéias atuam no desenvolvimento social. Em períodos de mudanças social, a função do intelectual é descobrir e formular as idéias capazes de dar direção e articulação às mudanças em curso. Se essas idéias não refletirem movimentos nascentes no meio ambiente não se transformarão em forças atuantes."

Este, para terminar, é mais um registro de que a prática da gestão da educação pública municipal em Natal, no início dos anos 60, é, às vezes, antecipatória e, sempre, confirma a teoria de Anísio Teixeira, esta, exposta em 1967 aos professorandos da Universidade da Bahia. É atraves desse olhar do mestre Anísio que nó percebemos que De Pé no Chão se transformou em força atuante justamente porque refletiu idéias de movimentos nascentes no meio ambiente. Como emerge essa força? Passados quarenta anos a História nos diz: Quando Djalma Maranhão ssuma seu segundo mandato, seu programa de governo já fora escrito pelas discussões e convenções dos cento e sessentas Comitês Nacionalistas que lhe deram sustentação à campanha eleitoral para prefeito em 1960. Assim, quandode sua posse, ele já sabe que a educação e a cultura será a Meta Número Um de sua administação. O que fazer já estava dito. Cumpria-lhe responder: o como fazer.Esta será a tarefa da Secretaria Municipal de Educação que, voltando às discussões com os Comitês Nacionalistas, começa a desenvolver a Campanha De Pé no Chão também se Aprende a Ler, alavanca principal de uma política de valorização da educação e da cultura popular.

A função do intelectual em tempo de mudança social, como adverte Anísio Teixeira, foi igualmente percebida por Djalma Maranhão que se revelou, na administração municipal de Natal, um intelectual orgânico na melhor lição de Gramsci.

IX - CONCLUSÃO

Finalmente, para concluir, tenho uma grande satisfação em informar a este auditório que recuperei e organizei, recentemente, dois livros, inéditos, deixados por Djalma Maranhão no exílio de Montevidéu que se chamam A Campanha De Pé no Chão também se Aprende a Ler e Memórias de 1964, que já estão no prelo e serão lançados pela Prefeitura de Natal, em novembro próximo, incluídos em seu calendário de festividades pela passagem dos 400 anos de fundação da Cidade. O primeiro dos livros é dedicado a Anísio Teixeira, a Makarenko, a Jesualdo, a Pestalozzi, ao MCP e ao MEB. Diz Djalma Maranhão: "Dedico a Anísio Teixeira - símbolo da luta desigual contra o analfabetismo em um país de desgraçada e desgradante maioria de analfabetos. As falsas elites, mediocridade, a burrice, o reacionarismo insistiram sempre na tarefa inglória de obstacularizar o plano genial deste lúcido professor que sonhou em libertar o Brasil das trevas da ignorância e culminou perseguido e exilado da Pátria".

Minhas senhoras e meus senhores: reaproximando, hoje, aqui, Anísio Teixeira e Djalma Maranhão, estamos continuando a abrir os seus caminhos pioneiros e democráticos e reafirmando a confiança em um Brasil que, historicamente tem vencido o arcaico, e que não abre mão de sua vocação e destino de promover a mudança social.

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