CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Anísio Teixeira: Itinerários. In: Seminário "Um olhar sobre Anísio". Mesa Redonda "Política Educacional", Rio de Janeiro, 3 set. 1999. Rio de Janeiro, UFRJ/CFCH/PACC, Fundação Anísio Teixeira, 1999.

Anísio Teixeira: Itinerários*.

Um sem número de depoimentos e de estudos compõem Anísio Teixeira como a figura ímpar de intelectual que hoje é objeto de nossas homenagens. Apesar de todos esses retratos, sua figura me desafia, pois acompanhar a sua trajetória de intelectual e homem público é marcar a irredutível diferença de suas concepções pedagógicas e políticas, experimentando a irrisão do contato com as ruínas de um futuro que poderia ter sido e não foi.

Eu ouvi falar de Anísio Teixeira desde menina. As referências que meu pai fazia ao "Dr.Anísio" talvez tenham sido até certo ponto responsáveis pelo fascínio que tem para mim sua figura. O "Dr Anísio" que se fixou na minha cabeça de menina era alguém especialmente admirado e respeitado por meu pai. Fui reencontrá-lo depois, sempre cercado de uma admiração similar, quando o descobri referido nas falas de seus companheiros de campanha educacional, mergulhada nos arquivos da Associação Brasileira de Educação. Fui redescobrir um outro Anísio nos papéis do seu arquivo pessoal, guardados no CPDOC, e nos estudos de Clarice Nunes e Maria Lúcia Schaeffer, que rastrearam o itinerário do jovem Anísio, refazendo o seu percurso intelectual e afetivo, os seus dilemas existenciais, o seu processo de formação e de constituição de uma identidade profissional. É nesse território híbrido, tecido de memórias da infância, de práticas de arquivo e de múltiplas leituras, que a figura de Anísio Teixeira se desenha para mim. A experiência dos arquivos ressignificou as memórias de infância (e de juventude) e desenhou o espaço de conhecimento no qual a figura de Anísio se movimenta. Esse espaço é o das estratégias políticas e pedagógicas que partilhou com sua geração, nas décadas de 1920 e 1930. A mesma experiência desafia-me aqui a realizar o duplo e contraditório movimento de explorar, por um lado, as afinidades conceituais e perceptivas que o uniram a seus companheiros de campanha educacional naquelas décadas e, de outro, a singularidade e a irredutível diferença de seus projetos e concepções pedagógicos. Como dar conta de um discurso e de uma prática que foram, ao mesmo tempo, tão singulares e tão similares aos anseios de toda uma geração?

Assíduos viajantes e leitores ávidos, os intelectuais que, nas décadas de 1920 e 1930, de algum modo tomaram a si a tarefa de remodelar o imaginário e as práticas pedagógicas no país são personagens-chave na elucidação dos processos materiais de produção, circulação e uso dos saberes pedagógicos no Brasil. Os crivos que configuraram a apropriação que fizeram do que leram, viram, ouviram e vivenciaram, na sua privilegiada itinerância por circuitos culturais estranhos à grande maioria das populações brasileiras, foi determinante na configuração de suas estratégias de reconstrução do país pela cultura, na qualidade de autores, editores, organizadores de coleções, tradutores, professores ou reformadores dos sistemas públicos de ensino. Identificar os modelos culturais inscritos nas suas práticas de apropriação e transitar pela complexa rede de relações culturais tecida nos seus itinerários pedagógicos é questão de interesse central para a história da educação no Brasil.

Refazer o itinerário de Anísio Teixeira é um percurso privilegiado para dar conta desse programa. Os trabalhos de Nunes e Schaeffer já o refizeram, a partir de férteis e instigantes perspectivas de análise, interessadas no processo de auto-construção identitária do sujeito Anísio. Nos limites deste texto, pretendo revisitar alguns dos momentos do itinerário do jovem Anísio, deslocando milimetricamente a tônica dessas análises para o campo de uma história cultural dos saberes pedagógicos.

Como toda história de conversão a uma fé, a história do percurso que transformou Anísio no democrata convicto e no apologista da educação norte-americana nos anos finais da década de 1920 é instigante. E é interessante retomá-la nos múltiplos registros que o jovem Anísio deixou dispersos. Quero percorrer aqui alguns destes registros.Entre eles, especialmente, o diário de bordo da primeira viagem que empreendeu aos Estados Unidos em 1927; o Relatório dessa viagem editado como livro - Aspectos Americanos de Educação. Nestes registros, pode-se surpreendê-lo no movimento da sua conversão a uma nova fé: a fé de um homem público que abraça a causa educacional de sua geração, imprimindo-lhe uma marca singular. Para tanto, julgo importante, inicialmente, situá-lo relativamente à campanha educacional desencadeada, na década de 1920, a partir da Associação Brasileira de Educação, fundada em 1924.

Reformando a Instrução Pública na Bahia

É com intuito principal de sensibilizar as "elites" para a "causa educacional", promovendo uma mudança de mentalidade, que se institui e ganha visibilidade nos centros urbanos do país, na década de 1920, a campanha cívico-educacional promovida pela Associação Brasileira de Educação (ABE). Apresentando-se como elites responsáveis pelos destinos nacionais, cuja missão era regenerar o país pela educação, os organizadores da ABE lançam-se à propaganda da causa educacional". Procuram ganhar a adesão da opinião pública por meio da imprensa e do rádio e, no espaço das cidades, promovem festas, exposições e competições escolares no intuito de arregimentar adeptos. Nos congressos que organizam, sedimenta-se certo consenso quanto às mudanças que a escola era chamada a promover.

A crítica às campanhas de alfabetização promovidas pelas Ligas Nacionalistas foi um dos objetivos centrais da ABE, desde a sua fundação. Centradas na questão do voto secreto, essas campanhas pretendiam expandir o corpo de eleitores e tornar o seu voto "esclarecido", entendendo que, com isso, tornavam-no independente da pressão e do controle exercidos pelos coronéis. Era desse modo que acreditavam poder combater as oligarquias, republicanizando a República. Para os organizadores da ABE era preciso, ao invés de "apressadamente ensinar a ler, escrever e contar aos adultos iletrados, cuidar seriamente de educar-lhes os filhos fazendo-os frequentar uma escola moderna que instrui e moraliza, que alumia e civiliza" . No calor dos debates e da propaganda promovida, sedimenta-se na ABE a convicção de que não cabia "ao analfabetismo a culpa do atraso, do desgoverno, da anarquia e dos muitos males" que afligiam o país. Eram mais "nocivas, culpáveis e condenáveis as elites mal preparadas que nos governam e as legiões sempre crescentes de semi-alfabetos que as sustentam" Reconfigurava-se, dessa forma, a avaliação dominante que fazia consistir os empecilhos à consolidação da República na ausência de instrução ou no analfabetismo. Operava-se, assim, um deslocamento na equação - difusão do ensino = consolidação da República. Sua pertinência passa a ser condicionada à qualidade do ensino ministrado. A "instrução pura e simples" passa a ser vista como "uma arma" que era, "como toda arma, perigosa". Colocá-la nas mãos da população era estratégia a requerer medidas que habilitassem a "manejá-la benfazejamente para si e para os outros". Só esse cuidado poderia garantir que a escola funcionasse como dispositivo de manutenção da ordem "sem necessidade do emprego da força e de medidas restritivas ou supressivas da liberdade". Educação dos sentimentos, dos gestos, do corpo e da mente, assim se diferenciava a educação preconizada - capaz de "transformar cada indivíduo em fator social útil, de elevá-lo moralmente, de fornecer-lhe melhores elementos de conforto e felicidade"- da "instrução pura e simples", arma perigosa.

Essas críticas ao fetichismo da alfabetização intensiva e os argumentos em favor do que era entendido como educação integral compõem o caldo de cultura que vai legitimar as reformas dos sistemas de instrução pública na segunda metade dos anos 20. A ênfase na promoção de uma mudança de mentalidade no trato das questões nacionais será uma constante nessas reformas, implicando estratégias de impacto na opinião pública. Essas estratégias se ajustavam perfeitamente aos intentos políticos dos governos estaduais que promoviam a remodelação de seus sistemas de instrução pública. Envolver professores, inspetores, diretores de escola em iniciativas de impacto como Inquéritos, Conferências, Cursos de Férias, Congressos; ganhar visibilidade junto à opinião pública através da imprensa; envolver pais de alunos através de círculos de pais e mestres eram procedimentos que faziam ecoar, para além do universo burocrático das providências legais, o apelo modernizador das reformas. Tal apelo era dividendo político que seus promotores pretendiam capitalizar no jogo da disputa oligárquica, dividendos maximizados na campanha pela causa cívica de redenção nacional pela educação que se processava nos grandes centros urbanos, tendo como eixo principal a Associação Brasileira de Educação. Era assim que a pedagogia dos técnicos convidados para intervir nas rotinas escolares, reformando os sistemas de instrução pública, embutia promessas de modernização social, política e econômica.

A reforma da instrução pública na Bahia empreendida por Anísio Teixeira na década de 1920 é balizada pela mesma crítica ao fetichismo da alfabetização intensiva que vinha aglutinando na ABE educadores de todo o país. Na lógica da Reforma, era preciso superar a solução paulista ao problema da educação popular expressa nas medidas da Reforma Sampaio Dória. Apesar de concebida nos marcos spencerianos de uma educação intelectual, moral e física, essa Reforma havia incorporado as metas da Liga Nacionalista de São Paulo, de que Dória era fundador e destacado militante. Em nome da urgência da erradicação do analfabetismo, a Reforma Sampaio Dória reduziu a escolaridade primária obrigatória de 4 para 2 anos Distanciando-se dessa "solução paulista", Anísio Teixeira propunha tratamento diferente para o "caso bahiano". Ele entendia que o problema do ensino na Bahia era o de todo o país: a "mesma vastidão da terra, o mesmo disseminado da população diversa e desassimilada, o mesmo número vertiginoso de analfabetos" e as mesmas limitações de ordem econômica. Esse problema brasileiro se traduzia em um dilema: "ensino primário incompleto para todos ou ensino integral para alguns". Segundo a ótica da reforma baiana, a solução paulista, expressa na primeira dessas alternativas, era inaceitável. Válida talvez para São Paulo, tal solução não respondia, nos outros Estados, ao imperativo de institucionalizar "uma educação popular eficiente, capaz de reerguer o nível do país, tornando cada cidadão um valor novo da produção nacional". Em São Paulo, onde "circustâncias especiais" haviam criado um "ambiente de progresso geral", seria possível esperar bons resultados da difusão de uma "instrução incompleta". Mas em um meio pobre e inculto, como o baiano, não era possível contar com o auxílio das "mil e uma forças circundantes" que em São Paulo podiam fazer da "simples alfabetização" o "degrau indispensável" e eficaz de um processo de "desenvolvimento intelectual" posterior. No meio brasileiro do Nordeste, ao contrário, a iniciação "no jogo, mais ou menos complicado , das vinte e seis letras do alfabeto e o conhecimento rudimentar da aritmética, da geografia e da história" deveriam ser evitados. Tal iniciação forneceria apenas, ao "homem inculto e primitivo" do Nordeste, "um instrumento cujo uso não lhe foi ensinado." Além disso, a solução paulista devia ser evitada, pois, armado por uma instrução incompleta, esse "homem inculto e primitivo" se tornaria "mais frágil e mais desadaptado às condições de vida". Retirado do seu "mundo elementar e sem asas seguras para atingir os progressos que o fizeram antever" ele seria "um elemento de desequilibrio social". Por isso, nos termos da Mensagem dirigida à Assembléia, o Governo entendia que ministrar um "ensino primário incompleto" seria o modo mais eficaz de preparar "um ambiente propício à explosão socialista ou bolchevista."

No consenso que se vinha sedimentando nacionalmente em torno da crítica ao "fetichismo da alfabetização intensiva" operavam-se mutações nas representações da escola e de sua função social. Nessas representações, a escola devia deixar de ser um "aparelho formal de alfabetização" para tornar-se, como registraria Lourencó Filho, um "organismo vivo, capaz de refletir o meio", que devia "afeiçoar a inteligência infantil aos problemas de seu ambiente próprio", radicando o "aluno ao seu pequeno torrão" e tornando-se "um órgão que coordene, no sentido de implantar os ideais nacionais de renovação". Na implementação política dessa nova escola, as proposições da pedagogia da Escola Nova começam a ser consideradas mais eficientes do que as proposições da pedagogia moderna que, condensadas no "método de intuição analítica", haviam-se constituído na fórmula de sucesso da política educacional republicana no Estado de São Paulo. Sob o impacto da extraordinária difusão internacional da chamada pedagogia da educação nova - essa pedagogia gerada no seio das usinas, como pontua Ferrière - as concepções de educação e de escola vão sendo gradativamente reconfiguradas. Para essa transformação, muito concorreu a difusão que teve o livro de Omer Buyse, Méthodes Américaines d’Éducation. Nele, muitas fotografias punham em foco o dia-a-dia escolar das crianças: seus corpos empenhados em múltiplas atividades, a concentração e a habilidade de seus gestos, o produto do trabalho de suas mãos, os instrumentos e os materiais com que trabalhavam. Nesses registros, opera-se uma tranformação sutil nas representações das práticas escolares, pois neles se configura uma nova percepção dos corpos infantis e do potencial educativo de novas modalidades de organização do tempo e do espaço escolares. Mas, sobretudo, no livro se materializam os códigos culturais incritos na representação fotográfica dos corpos, sinalizando uma direção para o "programa de reforma da sociedade pela reforma do homem" que começa, então, a se configurar.

É como um entusiasta leitor de Omer Buyse que Anísio Teixeira viaja aos Estados Unidos. O jovem bacharel egresso do colégio jesuíta de Salvador começa a rever suas convicções pedagógicas, até então balizadas pela ortodoxia católica , a partir da leitura do livro de Buyse. Maria Lúcia Schaffer sustenta que a leitura deste livro teria correspondido a uma primeira "viagem" de Anísio, a um primeiro contato com a cultura norte-americana. Antes de embarcar para os Estados Unidos, regulamenta a reforma do ensino baiano e faz traduzir o livro de Buyse, mandando distribuí-lo pelas bibliotecas e escolas do Estado e propondo-o aos professores como guia de suas práticas na sala de aula. Manda vir de São Paulo novo mobiliário e novo material escolar. Introduz o Desenho, a Geometria e os Trabalhos Manuais nos programas, convencido de que a excelência da educação primária norte-americana se assentava no princípio froebeliano: educar pela ação. As crenças do jovem reformador na excelência da escola primária norte-americana são incorporadas na Mensagem que o Governador do Estado envia à Assembléia Legislativa, justificando o "intento de dar ao ensino primário a sua expressão atual de ensino educativo", pela inclusão do "ensino de Geometria, Desenho e Trabalhos Manuais" :

" A escola primária de hoje procura desenvolver na criança a sua personalidade, cultivando-lhe a vontade e a inteligência e armando-a para a vida com um senso prático de coragem, de iniciativa e de independência. A escola americana prepara a criança para a vida como se adextra um lutador para a arena. Forte, confiante, a criança americana deixa a escola como um pequenino e empreendedor homem de trabalho, cheio de iniciativa., ‘levando mais em conta os resultados materiais de sua atividade do que os cuidados com a sua cultura intelectual Ora, na América, os trabalhos manuais e o desenho têm sido a grande escola de desenvolvimento da personalidade pelo cultivo intensivo da vontade e do pensamento. Enquanto as escolas teóricas e livrescas desenvolvem a inteligência e a imaginação, descurando a vontade, a educação americana fortifica sobretudo esta pela ação."

A bordo do Pan American

Essas observações do reformador sobre as virtudes atribuídas à escola norte-americana se rebatem nos registros do seu diário de viagem, a bordo do navio Pan American, dois anos depois. Neles, o jovem faz-se etnógrafo, lendo, com estranhamento, inscrita nos corpos, nos gestos e nos hábitos de seus companheiros de navio, as marcas de uma cultura muito distinta daquela em que havia se formado. Aqui, registra a presença dessa senhora dotada da "energia amarga de uma raça forte e positiva"; alí a "tranquila alegria" de um senhor; acolá um velho "de rosto liso e energia intacta, de riso contente e fácil".Em todos, "essa alegria um nadinha mecânica e como artificial (…) que lhes dá um ar de simpatia, de vitória"; em toda parte, "a eterna mola que faz com que tudo seja exato, automático, maquinal". Em nenhum deles, "esse fundo de sonho, de hesitação, de inconsciência, de mistério que nos faz a nós latinos – cismadores e tristes …" O lado positivo, o fato da vida, os absorve e basta.". Conclui: tratava-se de "uma raça unificada", de "um grande povo, que vive a vida com a precisão e a dignidade de uma máquina". Nesse povo, depositava uma enorme expectativa: "A América – dizia – vai ser para mim uma cura da vontade". Que outro país melhor do que a América poderia renovar-lhe "as fontes de ação, de energia e de apostolado (…) ?" Que outra cultura senão a "desse povo essencialmente forte" que em tudo e para tudo leva "esse superávit de energia e essa ausência de falso sentimentalismo, que não é senão frouxidão do nervo latino? " Dizendo-se fatigado, Anísio espera que a viagem lhe dê "esse amor à luta tão americano, a infatigabilidade do querer". Mas não transige:

"Santo Deus! Há os ciclistas, os casacos de sports mais variados, os coletes de lã a dispensarem casacos, há as combinações mais insolentes e mais grotescas que se podem imaginar!Hoje havia um que trazia smoking e calça branca enxovalhada. Assim em tudo. Aos jantares é comum tomar a palavra um dos senhores e dizer pilherias, sob pretexto de anunciar qualquer coisa, que ficavam perfeitamente em um palhaço. Outro lembra-se de cantar qualquer coisa, em pleno jantar e é vivamente aplaudido."

Apesar desse distanciamento crítico, continua a suportar a "facilidade infantil de se distrair"de seus companheiros de viagem, registrando a sua "completa ausência de espírito, no sentido latino da palavra". Suporta ainda as "pisadas de soldado em marcha" diante de sua cadeira no convés, convencido de que lhe seria possível "conhecer alguma coisa dessa extraordinária alma americana", alma que tem a liderança do mundo, "pelo dólar, pelo trabalho, pelo progresso."

O conhecimento "dessa extraordinária alma americana" já lhe é anunciado, ainda a bordo do Pan American, pela leitura do livro Ford, My Life and Work. Seus registros de leitura são taxativos: não conhecera, até então, outro livro que lhe produzisse "uma mais profunda e positiva impressão de otimismo e confiança". Nele não havia lugar para fraseologias, sentimentalismo ou hesitações. O livro tinha a seu ver tal consistência que lhe aparecia como "um desses tratados definitivos sobre determinados assuntos, um desses livros de que jorram uma tal quantidade de luz e verdade incontestáveis, que para sempre ficam como a pedra angular do assunto, que poderá ser enriquecida de comentários , acrescida de detalhes – mas, sobre que sempre se há de apoiar a razão humana". Como ele somente um outro livro lhe dera a mesma "sensação de plenitude, de profundo acordo, de inexistência de dúvida": Os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola. Os dois livros o impressionaram tanto pois tinham em comum "esse traço carcterístico de unidade, de equilíbrio de ligação que marca as obras que descobriram o contato com a realidade." Partilhavam ambas as obras desse "realismo essencial, indestrutível que define a verdade e lhe dá essa força de golpe, de arremesso…" Ninguém além de Ford havia tratado da "prosperidade material da humanidade com maior pureza, com maior retidão". Nada no livro revelava o "desvio, a superposição do homem à obra divina". Havia nele uma confiança evangélica. Sem falar de Deus, o livro, mas também toda a obra industrial de Ford respiravam o "Seu espírito", de tal forma estava ela impregnada de "ordem, de desprendimento, de humildade, de subordinação do homem a qualquer coisa maior do que ele." Em nenhuma outra obra o homem estava "mais subordinado, mais ligado, mais no seu lugar".Como o Evangelho, a obra de Ford trazia "verdades tão elementares quanto formidáveis". Ela revelava a verdade que estava "na superfície das coisas", a verdade que já estava "na vida de todos" sem que ningém a visse. A verdade que só agora se revelava: a "indústria como serva do bem estar coletivo".Essa "lúcida concepção sobre a vida" era "confiança evangélica" de que havia "lugar para todos no mundo", de que estava próxima a supressão da miséria. E isso, sem "revoluções", "sobressaltos" ou "reviravoltas". Estaria aí o "segredo da verdade fordiana": "Nós não progredimos por saltos". Tal era o impacto dessa verdade sobre Anísio que ele confessava não ter terminado a leitura do livro sem ter-se obrigado "ao mais vasto, mais confiante e mais generoso ato de fé na vontade e na obra humana" que já havia feito, fixando no seu diário de viagem essas suas impressões de leitura.

A "verdade fordiana"

"Não progredimos por saltos". Essa "verdade fordiana" tem para Anísio o peso de uma revelação, de uma experiência religiosa. Mas ela é também uma das crenças constitutivas do chamado entusiasmo pela educação nos anos 1920. Na campanha educacional desencadeada pela Associação Brasileira de Educação o projeto de reforma da sociedade pela reforma do homem é proposto como caminho alternativo à "via revolucionária".

O movimento católico, que se organizou no Centro D. Vital de Jackson de Figueiredo, postulava a missão das "elites" católicas numa campanha de reação idealista contra tudo o que era identificado como tentativa de conturbação da ordem social: "...a Revolução é nos seus princípios mesmos"- ardia Jackson de Figueiredo em Colunas de Fogo- "tão hostil, tão contrária à felicidade humana, à vida em sociedade, que, para combatê-la, é necessário pregar-se não já a contra-revolução, mas o contrário da Revolução". Se esse radicalismo ultra-conservador tinha sua vigência confinada a alguns círculos católicos, a urgência de uma reação pelo "progresso dentro da ordem" era firmada como convicção da autodenominada "geração dos homens nascidos com a República", convencida que estava de que "em sociologia o caminho seguro para andar mais ligeiro é aquele que evita os desatinos das correrias revolucionárias perigosas e intempestivas".

Em Jackson de Figueiredo, o caminho da Ordem organizava-se como movimento de reação de "elites" consubstanciado como "fé na idealidade construtora, na força do espírito". Os ideais, pregava Jackson de Figueiredo, "vivem de dois modos: conscientes num pequeno número de homens, como sentimento, como expressão dogmática, na maioria dos indivíduos". Fazer com que os ideais de uma minoria impregnassem a massa como "pura força sentimental" era a missão que propunha aos católicos. Nisto não se distanciava de outros intelectuais que, principalmente com Gustave Le Bon, haviam recitado catecismo semelhante a respeito da "psicologia dos povos", entendendo a ação das multidões na história como irrupção de forças sentimentais fermentadas e dirigidas por idéias de uma "elite" condutora. Nisto não se afastava também de intelectuais que, empenhados em "pensar o Brasil" com o recurso a modelos organicistas, tendiam a superestimar a importância de "elites", pensando sua organização como grupo e sua formação ideológica como constituição de um "cérebro diretor" da transformação "orgânica" do país.

No discurso dos entusiastas da educação aglutinados na ABE, a reforma da sociedade pela reforma do homem era obra de constituição do "povo" brasileiro. A representação privilegiada desse "povo" é a de uma população doente e improdutiva que, vegetando na imensidão do território do país, era matéria informe e plasmável pela ação educacional projetada. Condensando os males do Brasil na metáfora de um brasileiro doente e indolente e as esperanças de erradicação desses males na ação de uma "elite" dotada de poderes demiúrgicos, esse discurso propõe a educação como intervenção profilática. Nessa obra de profilaxia, a ignorância é comparada ao "câncer que tem a volúpia da tortura de corroer célula a célula, fibra por fibra, inexoravelmente, o organismo", levando a nação à "subalternidade e à degenerescência".

A amorfia e a doença atribuídas ao "povo" brasileiro dimensionam o papel diretor que é conferido a "elites" e, com ele, o próprio espaço delineado para a educação. Obra de moldagem, a educação era o instrumento com que podiam e deviam contar as "elites" para unificar, disciplinar, moralizar, homogeneizar e hierarquizar as populações brasileiras, com vistas à efetivação de um particular projeto de sociedade. Esse trabalho diretor era pensado como "obra de organização nacional". Ao construir um modelo de análise da ideologia autoritária na Primeira República, Bolívar Lamounier examina algumas das concepções vinculadas ao uso de metáforas organicistas por intelectuais brasileiros do período. Salienta a "conotação forte" do termo "organização" quando utilizado, por exemplo, por Alberto Torres ou Oliveira Vianna, autores de enorme vigência na ABE: "Trata-se de imprimir forma, de produzir estrutura e diferenciação funcional numa sociedade percebida como amorfa, amebóide" . Esta foi uma das conotações do termo "organização", de larga circulação no movimento educacional. Em um de seus usos mais frequentes, o termo era dispositivo de encenação de uma catástrofe iminente a rondar a "nação" concebida como organismo em estágio de indiferenciação funcional e amorfia. Constituir o país como "nação", "organizá-lo", era tarefa de "elites", pensadas como cérebro que dirige o desenvolvimento orgânico. Era tarefa inadiável. O dilema nacional sintetizado por Euclides no lema - progredir ou desaparecer - é tomado como um desafio de proporções descomunais pois os "milhões de analfabetos de letras e ofícios", que "vegetavam", desamparados, nos "latifúndios enormíssimos do país", eram "peso morto" a consumir as escassas energias do incipiente organismo nacional, retardando perigosamente a marcha do Progresso. Fala-se insistentemente em crise, em horas gravíssimas, significando-se algum enorme perigo que ameaça o país se suas elites não superarem o pessimismo, a passividade e a indiferença, lançando-se à campanha de regeneração nacional pela educação. "Vitalizar pela educação e pela higiene"- prescrevia Miguel Couto, personagem-símbolo do entusiasmo pela educação- "toda essa gente reduzida pela vérmina a meio homem, a um terço de homem, a um quarto de homem" era a única "salvação". A incumbência de educar os "sub-homens" era alçada por Fernando Magalhães a missão sagrada a ser executada "à beira do abismo, ante o precipício". Cobrava-se então o preço da incúria política dos republicanos históricos; a massa popular, o núcleo da nacionalidade, esses milhões de analfabetos de letras e ofícios relegados a condições sub-humanas de vida maculavam a assepsia burguesa de que vinham sendo tecidos os sonhos de Progresso na República.

No programa de organização nacional inscrito no projeto de reforma da sociedade pela reforma do homem, o país era representado como um "organismo de vida estéril", sem "continuidade de seiva", "ritmo de vida", "seqüência de energia". Nele, o discurso organicista era eficaz para efetuar um vazio - a ausência de um "corpo social" organicamente articulado - delineando um espaço de intervenção de dispositivos de vitalização, energização, integração. Nos quadros desse organicismo, a educação é intervenção corretiva sobre um "corpo social" . Essa metáfora organicista era eficaz para legitimar intervenções saneadoras do ambiente social de inequívoca matriz autoritária, produzindo o "corpo social" do país sob o signo da carência. No entanto, tal eficácia tinha limites, pois nos quadros desse organicismo, os entraves ao processo de modernização do país eram obstáculos quase intransponíveis, pois que também pensados como determinações de natureza orgânica que limitavam, quando não inviabilizavam, as possibilidades de progresso social. Por isso, a empresa regeneradora não era fácil. O balanço feito da República instituída era, para a autodenominada "geração dos homens nascidos com a República", pessimista:

"A grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na certeza de que já tínhamos vencido certas etapas. A educação, a cultura ou mesmo um princípio de experiência nos tinham revelado a pátria como uma terra em que a civilização já resolvera de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a tragédia da nossa alma foi sentir quanto de falso havia nessas suposições. O tempo nos preparava uma volta implacável à realidade. E essa realidade era muito outra, muito outra, do que aquela a que o nosso pensamento nos preparara e que a imaginação delineara. Rencontramo-nos bruscamente, ao abrir os olhos da razão, perante uma pátria ainda por fazer, ainda informe, ainda tolhida em sua ação e sem vitalidade, sem alma, sem ideal, uma pátria que o lirismo tinha decantado em cores falsas e que a indiferença agora sorria ou o pessimismo negava grosseiramente"

A "grande reforma dos costumes"

Um dos principais ideólogos dessa geração nascida com a República, Vicente Lícinio Cardoso, foi também, alguns anos antes de Anísio Teixeira, um leitor entusiasta do livro de Ford. Como Anísio, Lícinio também faz dos registros de sua leitura um ato de fé e de aposta otimista.. O livro o distancia do pessimismo de sua geração, convencendo-o de que a "era mecanizante" começava "a oferecer perspectivas luminosamente esperançosas" e que a "Atlântida" poderia tornar-se realidade na América.

Licínio produziu a respeito do livro um ensaio - Ford: o operário que venceu o capital . A "verdade fordeana" de Lícinio não tem o sentido de uma revelação, mas de uma confirmação. Desde 1916, quando viajara aos Estados Unidos em viagem de estudos, Licínio esperava pelo aparecimento de um "homem que representasse de verdade a vitoria da inteligência tentando revolucionar a humanidade pela indústria". Encontrou esse homem-síntese do americanismo em Ford, no seu livro e na sua obra. Ford lhe evidenciou que a "salvação da humanidade" não estaria "nem na palavra, nem no livro, nem na lei". Estaria "na máquina, numa eficiência indefinidamente acrescida de produção e nos recursos infindáveis de fontes novas e ineditas de energia por utilizar que nos oferece a terra". Emergia das páginas do livro de Ford uma confiança tão grande no poder de transformação social condensado na máquina que Licínio concluía que a América era "de fato um mundo novo em face de um mundo europeu envelhecido". Ford via na máquina "a realização concreta de uma teoria que tende a fazer deste mundo um lugar de habitação melhor para o homem". Ford teria, mais do que Taylor ou do que qualquer outro homem, levado "o espírito científico a cada um dos cantos de suas usinas e oficinas", organizando o trabalho de modo que o operário fosse "dirigido pela máquina", evitando, com isso, que ele fizesse "qualquer coisa senão completar o serviço realizado pela máquina que lhe é solidariamente conjugada".

Algumas das reflexões de outro intelectual contemporâneo de Anísio Teixeira e de Vicente Licínio Cardoso, Antonio Gramsci, podem fornecer o contraponto crítico necessário a essas profissões de fé americanistas. Nos ensaios Americanismo e Fordismo e Rotary Clube, Maçonaria e Católicos Gramsci analisa a relação de determinação entre o processo de racionalização da produção tal qual se desenrolava na América e a "necessidade de elaboração de um novo tipo humano", observando que "os novos métodos de trabalho estão indissoluvelmente ligados a um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida". Gramsci exemplifica com o controle da "moralidade"dos operários levado a efeito, na América, por serviços de inspeção das empresas. Tais serviços eram "necessidades do novo método de trabalho". Quem risse dessas iniciativas e visse nelas, somente, "uma manifestação hipócrita de ‘puritanismo’ estaria desprezando qualquer possibilidade de compreender a importância, o significado e o alcance objetivo do fenômeno americano, que - prossegue - é também o maior esforço coletivo realizado até agora para criar, com rapidez incrível e com uma consciência de fim jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e de homem" Esse novo industrialismo só tinha o "objetivo de conservar, fora do trabalho, um determinado equilíbrio psicofísico que impeça o colapso fisiológico do trabalhador, premido pelo novo modo de produção". Nesse sentido, as iniciativas "’puritanas’" dos industriais americanos tipo Ford, no seu aparente humanismo, não faziam senão reforçar o cinismo brutal das proposições de Taylor sobre o operário como "’gorila domesticado’". Cinismo este que exprimia o objetivo da sociedade americana: "desenvolver ao máximo no trabalhador, as atitudes maquinais e automáticas, romper o velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado que exigia uma determinada participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao seu aspecto maquinal". Era esse mesmo americanismo que tinha uma de suas expressões máximas no Rotary Club, cujo programa era a "difusão de um novo espírito capitalista, na idéia de que a indústria e o comércio, antes de serem um negócio, são um serviço social; ainda mais, são e podem ser um negócio na medida em que representam um "serviço".

No final da década de 1920, alheio a perspectivas críticas como a de Gramsci e embalado por profissões de fé americanistas como as de Anísio e de Licínio, o discurso dos entusiastas da educação se transmuda em otimismo pedagógico. Nesse novo discurso, eficiência é o topos que articula os enunciados pedagógicos em que a máquina é metáfora que condensa as aspirações de progresso social como modelo regulador de um novo ethos. Nesse processo, os saberes pedagógicos deixam-se impregnar pelos novos ritmos da sociedade da técnica e do maquinismo. Esse "otimismo pedagógico" conta com a natureza. Nas representações que o articulam, a natureza infantil é matéria plástica e plasmável, desde que respeitada em seu vir-a-ser natural. A nova pedagogia conta com a plasticidade da natureza infantil, com sua adaptabilidade, com sua capacidade natural de ajustamento. Por isso, esse otimismo conta, mais do que com a natureza, com o poder disciplinarizador das novas exigências postas nos novos ritmos que a técnica e a máquina imprimem à sociedade.

É assim que uma nova percepção do potencial disciplinarizador da educação começa a ganhar forma.. A equação estabelecida por Lourenço Filho entre disciplina e eficiência é talvez a fórmula que melhor a expressa. . A crença que se dissemina é a de que os novos métodos, saídos do seio das usinas, como dizia Ferrière" eram dispositivos de organização do meio escolar nos termos das novas máximas que vinham reorganizando o trabalho industrial. Prometendo obter melhores resultados com menos esforços, os novos métodos seduziam por sua eficácia. Era a partir dessa perspectiva que providências como testes, organização das classes, atendimento aos interesses e habilidades individuais dos alunos eram valorizadas. " No momento em que o mundo proclama métodos de organização do trabalho como fator essencial de prosperidade econômica", - propunha, por exemplo, o engenheiro Barbosa de Oliveira - a escola deveria dar aos alunos "desde os primeiros passos (...) uma diretriz segura para a 'racionalização' unanimemente prescrita em todos os ramos da atividade humana", ". Enraizava-se assim, no discurso pedagógico, o que Lourenço Filho identificou como uma das tendências principais da nova pedagogia - o "taylorismo na escola": "inovações ou sistemas" que visavam "dar maior rendimento escolar do ponto de vista da organização das classes ou cursos".

Mas a mutação que se opera no campo pedagógico é mais ampla do que faz crer a definição de taylorismo na escola formulada por Lourenço Filho. Para além dos circuitos e dos objetos em que, de forma mais visível, o taylorismo educativo teve sua difusão e aplicação, disseminaram-se representações da vida moderna que, condensadas no modelo da fábrica, produziam novas sensibilidades. Nesse processo, a pedagogia deixava-se impregnar pelos novos ritmos da sociedade da técnica e do maquinismo. Ritmos que faziam entrever modalidades inéditas de intervenção disciplinar. Assim, por exemplo, caberia ao professor "guiar" a "liberdade" do aluno de modo a garantir que o "máximo de frutos" fosse "obtido com um mínimo de tempo e esforço perdidos". Assim, também, urgia evitar que o "interesse" do aluno - peça fundamental na nova pedagogia - se transformasse em "paixão", princípio "intempestivo" de "escolhas caprichosas".

Regrar a liberdade e coibir a paixão eram práticas sutis de dosagem que se ordenavam pelo primado de ajustar "os homens a novas condições e valores de vida", promovendo, como queria Lourenço Filho, "uma grande reforma dos costumes"

Aspectos Americanos de Educação

É no fluxo desse movimento de reconfiguração dos discursos e das práticas pedagógicas que o americanismo exerce o seu fascínio sobre Anísio Teixeira. Mas seu americanismo tem uma marca singular. Se nele se expressam muitas das afinidades conceituais e perceptivas que uniram o jovem reformador a seus companheiros de campanha educacional nos anos finais da década de 20, os crivos que configuram os seus projetos e concepções pedagógicos são marcados por uma irredutível diferença.

A viagem de Anísio não é uma viagem qualquer. A bordo do Pan América, confessava:

"Sigo para a América com o espírito de um estudante. Renovo as minhas disposições de curiosidade, de entusiasmo pelo novo e pelo inédito. Não prevejo qual seja o meu depoimento sobre o povo que é hoje objeto de tanta curiosidade e fonte de tantas lições.

Tenho tanto que aprender. O sentido da viagem por turismo, por prazer, é que me falta. As viagens terão sempre para mim esse travo sério de de um alto exercício espiritual. O desemraizamento penoso de nossos costumes, nossos amigos e nossas coisas – de nossa terra – e o cultivo novo em terra alheia é para mim sempre uma ginástica custosa do espírito"

O viajante era, como já disse, um entusiasta leitor do livro de Omer Buyse que mandara traduzí-lo para distribuição nas escolas. A tradução corresponde à primeira parte do livro, e recebe o título: Métodos Americanos de Educação Geral e Técnica. Na Apresentação que, em nome do Governo do Estado da Bahia, faz do livro traduzido, Anísio Teixeira afirma o propósito do Governo de com ele "difundir os admiráveis métodos americanos de ensino elementar". Com a tradução, o Governo esperava "concorrer para que se instalem aqueles processos tão úteis e eficientes, com as modificações que o meio exigir, na escola bahiana". A tal ponto a obra traduzida lhe parecia completa que não acreditava necessário prefaciá-la. No seu entender, a Introdução escrita por Buyse analisava com tal "penetração, o espírito dos métodos americanos de educação", que se tornavam dispensáveis palavras adicionais de esclarecimento em um Prefácio. As palavras de Buyse forneciam - complementava o reformador – "a chave para a perfeita inteligência dos processos pedagógicos americanos e prescindem de quaisquer complementos".

Na "Introdução" de Buyse, que Anísio reputa a "chave"de compreensão dos métodos americanos de educação, dispõem-se as tópicas repetidas pelo Diretor da Instrução Pública baiana nas justificativas que apresentou das medidas legais implementadas pela Reforma. Nela, também, as mesmas tópicas são as que organizam as disposições e expectativas do jovem viajante a bordo do Pan America. Estão lá as mesmas referências a um ethos norte-americano, marcado pela energia, pelo vigor, pela iniciativa, pelo esforço pessoal. Lá estão as tópicas do fortalecimento da vontade, da indissociabilidade entre pensamento e ação, do "self made man" e do "learning by doing". Estão lá também a valoração da energia, da iniciativa, do esforço, e "da individualização da instrução de molde a encontrar as necessidades precisas e a desenvolver as faculdades e a capacidade de cada personalidade, em cada etapa do desenvolvimento". Está lá o princípio de que o trabalho do aluno é "a base dos estudos e a única fonte de conhecimentos".Está lá o registro de que, na América "não se encontra nenhum traço de preconceito contra o trabalho manual". E estão lá, também, aspectos da escola americana que surpreendiam até mesmo um observador europeu como Buyse:

"A escola pública é gratuita. Tudo é, nela, fornecido sem despesas para ningúem. Não é necessário fazer declaração alguma de indigência.

Nas escolas elementares e secundárias, os pobres e os ricos sentam-se nos mesmos bancos e são alvos dos mesmos cuidados, da mesma afeição e tidos no mesmo pé de igualdade e consideração.

Esta igualdade desperta a dignidade pessoal. Não se percebem traços de fortuna no aspecto, na vestimento , no porte"

Equipado com semelhantes referências sobre a escola norte-americana é que Anísio irá assistir aos cursos da Columbia University e visitar várias instituições educacionais. Terá os olhos aguçados para aspectos da escola americana que o livro de Buyse lhe apresentara. Entre eles, esse carater de uma escola pública gratuita onde pobres e ricos eram vistos sentados nos mesmos bancos e onde trabalho manual e trabalho intelectual eram igualmente dignos e indissociáveis.

Ao regressar, Anísio dá publicidade às suas impressões de viagem, fazendo editar em livro o seu Relatório de viagem.

Aspectos americanos de educação é distribuído pela Diretoria Geral da Instrução, no intuito pedagógico de "despertar um interesse concreto pela revisão de nossas próprias concepções" educacionais. Com 166 páginas, o livro se estrutura em duas partes. Seu título corresponde, efetivamente à Parte II. Na primeira – Fundamentos da Educação - Anísio apresenta " em um breve resumo tão fiel quanto…possível as idéias com que Dewey fixa o atual sentido de educação". O resumo, com 40 páginas, divide–se em 4 capítulos: 1-Sentido Atual de Educação; 2 – Educação e Democracia; 3 – Do Método em Educação; 4– A reconstrução do curriculum escolar.

A Parte II é que efetivamente relata a viagem e registra os aspectos americanos de educação que deram título ao livro. Apresentando-a, o autor informa:

"Antes de deixar os Estados Unidos da América, como ilustração complementar aos cursos que me foi dado fazer, na Columbia University, empreendi uma excursão de estudos visitando diversos estabelecimentos de ensino, em vários pontos do país.

Dou, a seguir, de minhas observações, nessa excursão, um breve relato. "

Nesse, as propaladas maravilhas de um mundo regulado pela máquina não passam desapercebidas aos olhos de Anísio:

"O contato com uma cidade como Cleveland – diz ele - é útil por colocar o visitante estrangeiro em condições de observar a unidade com que o mundo americano se desenvolve. Os métodos que governam a indústria, os métodos de precisão, rendimento e organização são os mesmos que governam as escolas. As duas máquinas, a industrial e a escolar, marham paralelas, mutuamente se enriquecendo e uma sobre a outra exercendo salutar e inteligente influência."

O relato não se deixa, entretanto, absorver pela espécie de "delírio fordista" que assolava os partidários do americanismo. Na qualidade de intelectual empenhado na "reforma da sociedade pela reforma do homem, Anísio Teixeira é analítico, buscando entender o funcionamento das instituições visitadas. É também como reformador interessado em promover uma mudança de mentalidade no trato das questões educacionais que publica em livro o seu Relatório, com o intuito pedagógico de fazer ver e de fazer compreender. Assim, o relato da excursão de estudos que faz se organiza de modo a tornar visíveis as condições intelectuais e materiais do sucesso das escolas norte-americanas, assim como os seus traços mais salientes. Na seleção do que vê e faz ver, Anísio é o observador sagaz que persegue soluções adaptáveis ao meio brasileiro e que busca determinar as condições que fazem funcionar as instituições visitadas.

É assim, por exemplo, que se interessa pelo sistema Platoon, e visita Detroit para conhecer a experiência de uma cidade que se havia encontrado diante do problema de substituir a "sua velha e convencional escola de um professor e uma sala" por uma "escola moderna", graduada, com diversas salas adaptadas ao ensino das diversas disciplinas e diversos professores. É assim também que não vai se interessar apenas pelas instituições mais ricas, organizadas e conformes aos modernos preceitos pedagógicos, mas será atraído também para as escolas rurais de um só professor. É interessante acompanhar o relato de sua visita a uma dessas escolas:

"No dia seguinte, - diz ele - visitei duas escolas rurais, uma com um só professor para os seus oito graus e outra com dois professores e pude observar de que modo o mestre americano consegue contrabalançar as dificuldades e as deficiências de tal organização com os atuais programas de ensino.

Uma das escolas que possuía apenas uma sala, com cerca de quarenta alunos, ofereceu-me um tipo de trabalho notável. A professora organizou esses alunos em quatro grupos, representando cada um dois graus…..

Todos os alunos estão sempre em trabalho. O desenvolvimento especial da leitura silenciosa e a grande quantidade de material para trabalhos manuais, exercícios e toda sorte de atividade qu o aluno pode ter sozinho (seat-work), torna possível esse fato.

…..

A biblioteca dessas pequenas escolas é particularmente interessante. O que me pareceu, porém, em conclusão ser o segredo que explica como essas escolas isoladas na América, podem prover uma educação que não é, sensivelmente, inferior às escolas urbanas, é o inteligente sistema de inspeção. O inspetor está continuamente nas escolas, estuda e discute com os professores, reúne-os semanalmente para balanço das atividades, organiza conferências, enfim auxilia e assiste tecnicamente e moralmente oao professor…".

Os registros marcam contrastes, comparam, destacam diferenças. Esses contrastes são especialmente marcados com relação à extensão popular das escolas secundárias.

"A escola secundária aqui está penetrada da mesma idéia de educação popular que reveste totalmente a idéia de educação primária. Não é a escola de cultura no velho sentido da palavra, nem a escola de classe. É a escola que, como a elementar, se destina à imediata preparação para a vida".

São observações como essas que marcam o relato, pondo em relevo uma escola pública gratuita onde, - como lhe antecipara Buyse -, pobres e ricos eram vistos sentados nos mesmos bancos e onde trabalho manual e trabalho intelectual eram igualmente dignos e indissociáveis. Essa maneira de conceber a escola era uma grande novidade no Brasil. Ela irá marcar a gestão de Anísio Teixeira como reformador no Distrito Federal e ressoar no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O seu impacto na redefinição do campo dos debates educacionais será enorme. O que, antes, na década de 1920, era convergência em torno da "causa cívico educacional" passa a explicitar-se como confronto de posições no qual a oposição escola única x escola dual se configura e ganha centralidade.

Mas não é somente pela concepção de escola, que difunde, que o americanismo de Anísio fratura a zona de consenso de que se nutria a campanha cívico-educacional da ABE nos anos 20.

É no capítulo 1 da Parte I de Aspectos Americanos de Educação que se dedica a "resumir" as idéias de Dewey entendendo, como já se viu, que tais idéias fixavam "o atual sentido de educação". A empresa é justificada pelo autor na página de rosto:

"John Dewey é, na América, o filósofo que mais agudamente traçou as teorias fundamentais da educação americana. A nenhum outro pensador é dado ali um lugar tão saliente na sistematização da teoria moderna de educação".

O "breve resumo" sobre Dewey que apresenta na Parte I de seu livro é o primeiro trabalho de sistematização do pensamento deweyano publicado no Brasil. Com sua publicação, evidenciava entender que as explanações de Buyse na Introdução do livro que mandara traduzir na Bahia não eram mais "a chave para a perfeita inteligência dos processos pedagógicos americanos". Justificava-se, portanto, uma exposição que fornecesse essa chave, recorrendo-se a Dewey para falar do "sentido atual da educação".

Duas são as operações principais desse capítulo em que, apropriando-se de Dewey, busca fixar o "sentido" da educação que conhecera institucionalizada na América e criticar concepções então dominantes no Brasil de modo a "despertar um interesse concreto pela (sua) revisão". A primeira dessas operações é uma investida de natureza filosófica e psicológica contra a teoria das faculdades mentais, que propunha a educação como espécie de "treino do ginasta para adquirir certa e determinada habilidade." Com essa crítica, Anísio se distanciava de Buyse, cujo livro ainda concebia a atividade do aluno nesse quadro teórico. Mas distanciava-se também das concepções pedagógicas vigentes no Brasil, mesmo entre os partidários da chamada "escola ativa". A essa teoria era preciso opor uma outra, que abolisse a "distinção arbitrária entre atividade e capacidade e os seus respectivos objetos". A segunda operação do texto é a de firmar a concepção deweyana de que o "processo educativo é um contínuo processo de crescimento e desenvolvimento tendo como fim uma maior capacidade de desenvolvimento e crescimento". Tal concepção devia ser contraposta a diversas noções vigentes: a "noção meramente privativa de imaturidade, a noção de educação como o ajustamento estático a um ambiente fixo ou a noção de hábito rígido e imutável…" Todas essas noções se filiariam ao "falso conceito de desenvolvimento e crescimento", como movimento para um alvo ou finalidade fixa.

Essa recusa em pensar o processo educativo como movimento para um alvo ou finalidade fixa singulariza a posição de Anísio Teixeira no movimento educacional. Não somente porque tal concepção era inaceitável para a militância educacional católica que, alguns anos mais tarde, faria dele um inimigo a ser combatido. A leitura que Anísio faz de Dewey na Parte I de Aspectos Americanos de Educação põe em cena uma concepção de educação que desloca convicções solidamente arraigadas no movimento educacional dos anos 20. Concebendo a educação como "processo de contínua transformação, reconstrução e reajustamento do homem ao seu ambiente social móvel e progressivo" o americanismo de Anísio incide sobre os fundamentos do programa de regeneração nacional pela educação defendido por sua geração. Nesse programa de organização da nacionalidade, a educação era – como se viu - obra de moldagem de um povo amorfo e doente que urgia regenerar; era intervenção profilática no organismo nacional. Em Anísio a reforma da sociedade pela reforma do homem desloca o foco de atenção. Nela, a metáfora sanitária deixa de dar conta da política, pois na apropriação que faz do conceito de educação progressiva não há lugar para a representação de um país doente passível de ser proposto como alvo fixo, como objeto passivo de estratégias de intervenção regeneradora.

As concepções pedagógicas e políticas que começavam a configurar a trajetória de Anísio Teixeira como homem público não lograriam, no entanto, impor-se nos anos 30. Marcar a sua irredutível diferença é evidenciar como discrepam do molde autoritário que conformou o "entusiasmo pela educação" e o "otimismo pedagógico" e como, nelas, um novo desenho da escola e da sociedade se esboçou, projetando-se como arquitetura de um futuro possível, mas não realizado.

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