MARINHO, Josaphat. Um formador de consciências livres. In: Um Olhar para o Mundo - Contemporaneidade de Anísio Teixeira, Rio de Janeiro, 2 set. 1999. Rio de Janeiro, UFRJ/CFCH/PACC, Fundação Anísio Teixeira, 1999.

Um Formador de Consciências Livres*

O homem livre

Relembrar Anísio Teixeira, em manifestação cultural adequada, e sobretudo no pórtico das comemorações do centenário de seu nascimento, é revelação de justiça da posteridade a figura singularmente expressiva de seu tempo.

Desde a mocidade foi um homem livre. A poder de reflexão, ajudado pela resistência paterna, venceu a inclinação de ingresso na Companhia de Jesus, cuja influência experimentou no Colégio Antônio Vieira, em Salvador. Atuando na vida pública, no campo educacional, desde 1924, no governo Góes Calmon, na Bahia, até a proximidade de sua morte em 1971, com intervalos correspondentes aos eclipses da legalidade no país, o caminho de sua consciência foi um só: o da preservação da personalidade humana.

Pensando, educando, administrando, buscou invariavelmente resguardar a sua e a individualidade das pessoas com quem convivia: sem preconceitos, sem dogmas, sem submissão, nem vaidade. Era escrupulosamente atento à liberdade daqueles com quem dialogava, concordando ou divergindo. Com freqüência discutia suas próprias idéias e provocava controvérsia sobre elas, para encontrar ponto de equilíbrio com a realidade. Não aprisionava o pensamento no fetichismo das verdades mágicas, nem no pragmatismo de interesses circunstanciais. O norte de sua estrada era o serviço à sociedade, inclusive por intermédio do Estado como instituição produtora de bem-estar coletivo, e não na imagem de poder transitório, parcial e multiplicador de desigualdades.

Por isso mesmo, quando a vaga reacionária dominou a sede da ordem administrativa, em 1935, e dele suspeitou, pediu demissão ao prefeito Pedro Ernesto, do cargo de Secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal. Na carta edificante, com que espancou a insídia, escreveu, firme e sereno: "Não sendo político e sim educador, sou, por doutrina, adverso a movimentos de violência, cuja eficácia contesto e sempre contestei. Toda a minha obra, de pensamento e de ação, aí está para ser examinada e investigada, exame e investigação que solicito, para que se lhe descubram outras tendências e outra significação, senão as de reconhecer que o progresso entre os homens provém de uma ação inteligente e enérgica, mas pacífica". E reivindicava para a obra, que acentuou não ser somente dele, mas do "magistério do Distrito Federal", "o seu caráter absolutamente republicano e constitucional e a sua intransigente imparcialmente democrática e doutrinária".

Incompatível com o regime do arbítrio, isolou-se na atividade particular: ora traduzindo livros, ora lavrando mistério, já que não podia cultivar as inteligências em formação. Perseguido e despresado pela força autoritária, convocou-o a UNESCO, situando-se, como lhe cabia, no plano da cultura com liberdade. Repudiando o obscurantismo, rasgou-se-lhe, naturalmente, a claridade do convívio democrático, civilizado e inspirador de esperança. De novo o homem livre exercitava a inteligência no propósito d bem servir a coletividade.

O homem de pensamento e de ação

Como homem de pensamento era também uma vocação de executivo, circunstância histórica o fez retornar ao Brasil, e para a Bahia. Beneficiada a terra com a eleição de Otávio Mangabeira para governador, este levou o filho de Caitité a dirigente, outra vez, da educação no Estado, no posto de Secretário. Com a experiência e a cultura aprimoradas, Anísio Teixeira cuidou de renovar os serviços da educação, de os libertar da rotina e de imprimir-lhes a perspectiva correspondente aos ideais provindos do após-guerra. Para fazê-lo seguramente, era preciso extirpar velhas práticas políticas, o que só seria possível se a própria Constituição do Estado conferisse autonomia à direção principal da educação. Propôs, então, os lineamentos essenciais do capítulo da Educação, para a Carta Política em preparo. Sugeriu a criação do Conselho Estadual de Educação e Cultura, "órgão autônomo, administrativa e financeiramente", não podendo seus membros "exercer atividades político-partidária". Previu a existência dos conselhos Municipais de Ensino e instituiu o fundo de educação, formado por dotações orçamentárias do Estado e dos Municípios, e por outras receitas legalmente previstas.

Foi tal a reação que houve de comparecer à Assembléia Constituinte estadual para explicar as inovações. Deputado, eu o vi na tribuna, exprimindo-se como um educador na democracia, conquistar desconfiados e adversários, e abrir o leito seguro para a aprovação das idéias libertadoras da educação, na velha Província.

Trnsformando as idéias criadoras em realizações, entre outras projetou e fez construir a Escola Parque - um estabelecimento modelo - num bairro proletário, a Estrada da Liberdade. Serviu assim aos fracos, e não os privilegiados. Ali os alunos permaneciam todo dia, aprendendo letras e artes, habilitando-se para a vida. E com alimentação. Referiu a professora Sylvia Ganem Assmar, em entrevista recente ao Jornal do Brasil, que Anísio Teixeira recomendou: "não queria os meninos comendo em fila, queria todos em mesas, com pratos de louça, garfo e faca". Por sua vez, acrescentou, com justeza, a ilustre mestra: "e isso era educação também". O espirito do educador completava-se com o de justiça social. Aplicava na prática o que ensinava na doutrina: "educação não é privilégio", "é direito".

O educador e a Universidade

O educador de espírito social tão vivo, havia de desenvolver suas concepções no plano universitário, e de modo tanto mais significativo porque essa modalidade de ensino ainda não estava cristalizada no país. Já então, entre 1931 e 1935, vai por mais de 60 anos, ele sustentou que a Universidade não é apenas um centro de ensino regular, mas uma forja de aperfeiçoamento da individualidade e da cultura. Professor, e fiel ao método pedagógico, reconheceu que "a Universidade é, em essência, a reunião dos que sabem com os que desejam aprender". Aí, porém, não se circunscreve seu horizonte. Saber e aprender, nesse espaço de coincidências e de contrastes, implica renovar constantemnte o conhecimento, no exercício da liberdade plena. É a conquista do ele chamou "um novo saber". Desenvolvendo o pensamento científico no confronto das idéias, o convívio universitário vence o "isolamento espiritual". Situa o indivíduo no status social. Po isso Anísio Teixeira concluiu que "a Universidade socializa a cultura, socializando os meios de adquiri-la. Essa socialização não se processa pacificamente, entretanto, senão no respeito comum de tendências, de opções, de conflitos das idéias. Onde a inteligência não puder expandir naturalmente seus anseios, mesmo contrários aos da maioria, não há espírito universitário. Daí a sentença do notável educador: "a Universidade é, e deve ser, a mansão da liberdade".

O pensador social

Assim opinava, quando dirigente da educação nesta culta e envolvente cidade do Rio de Janeiro, - então sede do governo da República - porque o professor e educador era, em realidade, lúcido pensador social. Para interpretar e resolver os problemas da educação, aprofundava-se na análise das questões básicas da sociedade, de suas inclinações, assimetrias e injustiças. O conjunto de sua obra intelectual reflete essa visão excepcional. Alguns documentos, porém, investigam de modo especial, na extensão do universo, o drama da sociedade humana. Em dois deles, da madureza, buscou gizar os relevos e as consequências da "revolução dos nossos tempos". Num, de 1949, quando Secretário no governo Mangabeira, dirigido aos estudantes reunidos no XII Congresso Nacional. Considerou, sem receio nem apelo, antes com ânimo de investigação: "Não estamos preperando, nem estamos evitando a revolução. Estamos em plena revolução social e estamos nela desde, pelo menos, os fins da década anterior a trinta. Nosso problema não é, pois, o de fazer a revolução, mas o de orientá-la para o maior bem do homem e o menor sofrimento possível da coletividade".

Despertando a consciência do jovens contra a hipocrisia dos que negavam o curso da "revolução", afirmou que "não lhe alternamos o contorno por lhe dar o nome verdadeiro": é, queiramos ou não, a revolução social". Procurando tranquilizar os mais assustados, observou que "se a revolução é inevitável a forma que pode ela assumir". Fixou o restabelecimento da ordem democrática no Brasil, os seus acertos e os desvios mais visíveis, como daquelas "cenas de situação e oposição, tão comuns ao período de simples democracia política do século dezenove ou começo deste século". E, como quem sente o rumor da tempestade, advertiu: "Toda a nossa vigilância tem que se exercer contra os que nos queiram desviar do regime democrático para nos lançar em aventuras de perigosa divisão das forção nacionais". Tinha como se vê, penetrante percepção da realidade.

Como a revolução prosseguiu e as cautelas não foram adotadas, aqui e no mundo, ao paraninfar os professorandos de 1967, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia, voltou ao tema, com preocupação maior. Examinou "a longa revolução do nosso tempo" - "longa e interrompida revolução industrial e democrática", seguida, "com o progresso da ciência e da tecnologia", de "enorme concentração organizacional da sociedade contemporânea". Resumiu as mudanças que se desdobraram e a que não se ajustou, suficientemente, o "comportamento" do homem, no universo de hoje positiva - que se caminhava para tornar o "estudo crítico" dos meios de comunicação um dos pontos fundamentais da educação escolar", inclusive diante da informação extra-classe do aluno, pela "difusão oral e visual da cultura ambiente".

A par dos outros fatos, assinalou com agudeza o que seria fator da crise presente: "os que ainda não são privilegiados lutam para que a situação perdure, a fim de que possam, por sua vez, ser os privilegiados". Os muitos que assim pensaram e agiram, repelindo a ponderação dos que aconselharam a visão das desigualdades, sentem hoje o peso do desequilíbrio globalizado. Ao apontar o erro do século dezenove, no "acreditar que as idéias uma vez expostas tinham, por si mesmas, o poder de se efetivarem", parece que a percuciência de Anísio Teixeira divisava o equívoco do século vinte. Em verdade, como ele ensinou, "as idéias se efetivam quando incorporadas aos meios de ação instituídos para o fim de transformar ou conduzir a mudança social".

Visto que não houve, adequadamente, essa incorporação para a mudança em marcha, nem, conseqüentemente, o cuidado de conduzi-la, quando sobreveio o desmoronamento do socialismo real, prejudicando a imagem e os fundamentos do socialismo democrático, inúmeros povos sofreram a influência nociva do neoliberalismo e de seus efeitos danosos ao poder legítimo do Estado. As consciências não estavam devidamente preparadas para resistir à variação de cursos da sociedade e de Estado.

Mas, já em 1956, reunindo em livros estudos diversos que se completam, Anísio Teixeira avaliou, objetiva e especialmente, "A educação e a crise brasileira". É impressionante a coerência de seu pensamento ao passar do geral para o particular. Salientou que "a diversificação é a condição de florescimento da cultura, e a uniformidade a condição de sua morte e petrificação". Nesse julgamento como que retratava a necessidade de considerar diferenciadamente as regiões brasileiras, de economia e cultura distintas, e, portanto, de problemas singulares, que reclamavam soluções equivalentes a seus carecteres. Superpondo o interesse coletivo ao interesse individual, já defendia - como hoje se vai adotando - que o ensino superior "não poderia ou não poderia dar o direito ao exercício profissional. Diplomados os brasileiroos, mesmo em escolas superiores, deveriam passar por um regime de exames perante os órgão de direção das respectivas profissões, para conquistar o direito final de exercício da profissão". E, embora resguardasse a "liberdade e responsabilidade, em vez de regulamentação e privilégios". O doutrinador e o homem experiente casavam os conhecimentos adquiridos para servir a sociedade, e não a iludir, ou desfigurá-la

Essa fidelidade aos princípios e o culto à verdade acompanharam-no até o fim de seus dias. Provavelmente na sua última entrevista, que o jornal da Bahia publicou em edição de 28-29 de março de 1971 - morrera a 11 -, não ocultou a tensão que envolvia as salas de aula, e que agora cresce assustadoramente, com violência. Observou sem fingimento que "a escola é hoje uma perturbada fronteira da vida humana, debruçada sobre o futuro e embaraçada e aflita com as perplexidades do presente".

Ele soube atravessar essa "perturbada fronteira da vida humana", sepultando suspeitas mesquinhas, prosseguindo no trabalho útil e recolhendo, com humildade, o reconhecimento de muitos a seu esforço insuperável.

Formador de consciências livres

Tentei reteaçar, senhoras e senhores, com júbilo e gratidão de baiano, ensinamentos gerais e básicos de Anísio Teixeira, os quais constituem, em verdade, neste ano, a "fala do centenário", apenas traduzida por minha voz. Educadores eminentes analisarão com saber e propriedade, ao longo das justas comemorações ora iniciadas, o pensamento especializado e a obra imorredoura do "Estadista da Educação" - um formador de consciências livres e democráticas.

*Palestra proferida na abertura das comemorações do centenário de nascimento de Anísio Teixeira, na UFRJ, Rio de Janeiro, em 2 de setembro de 1999.

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