NUNES, Clarice. Um Olhar Sobre Anísio. In: Seminário "Um olhar sobre Anísio". Mesa Redonda "Política Educacional", Rio de Janeiro, 3 set. 1999. Rio de Janeiro, UFRJ/CFCH /PACC, Fundação Anísio Teixiera, 1999.

MESA REDONDA: UM OLHAR SOBRE ANÍSIO

3/09/1999

"São as sombras que põem relevo às luzes e às cores da existência"

Anísio Teixeira

A trajetória e o legado de Anísio Teixeira para a cultura e educação brasileiras foram construídos através de múltiplas instituições de educação, cultura, ciência e tecnologia que criou no país, em âmbito municipal, estadual e federal. Ressalto a permanente atualidade das grandes questões com as quais se debateu pela defesa da escola pública, luta principal de sua vida como ser humano, intelectual e educador. Tal atualidade está presente nos mais diversos temas da política da educação, tais como financiamento da educação, a organização de um sistema público de ensino, formação e aperfeiçoamento docente, gestão da educação pública, deveres da União e dos Estados com relação à educação, constituição da universidade pública e sua autonomia, democratização das oportunidades de acesso e permanência na escola fundamental, planejamento da educação, descentralização do sistema educacional, a qualidade e a avaliação dos serviços educacionais, a criação e valorização de cursos de pós-graduação, dentre outros. Em suma, é possível dizer, num esforço de síntese, que todos esses temas confluem para dois ângulos privilegiados de análise: o da educação popular, voltada para crianças, jovens e adultos e o da formação dos intelectuais.

Sob o ângulo da educação popular, Anísio Teixeira realizou, como secretário da educação e saúde, sobretudo no Rio de Janeiro, nos anos trinta, e em Salvador, nos anos quarenta, uma intervenção sobre a educação das classes populares no espaço da cidade. O caráter dessa intervenção é de capital importância para compreender a sua defesa da democracia, já que ao lidar com a heterogeneidade não o fez, como alguns de seus colaboradores e contemporâneos, de forma a identificá-la como decorrente da carência de atributos intrínsecos do sujeito pobre. Pelo contrário, Anísio Teixeira deslocou a carência do indivíduo para a omissão dos governos na direção da reconstrução das condições sociais e escolares e isto fica patente nas medidas concretas que assumiu para alargar as chances educativas das crianças das classes populares e para dotar a escola pública de um ensino de qualidade.

Numa espécie de voluntarismo calculado, construído pela crítica das condições escolares, pela crítica do privilégio das elites e pela auto-crítica e crítica da sua gestão, Anísio Teixeira concebeu a escola como um espaço real no qual a criança do povo pudesse praticar uma vida melhor: livros, revistas, estudo, recreação, saúde, professores bem preparados, ciência, arte, clareza de percepção e crítica, tenacidade de propósitos. Tanto nos anos trinta no Rio de Janeiro, como nos anos quarenta, em Salvador, ainda que pesem as diferenças de região e de momento histórico, Anísio Teixeira preocupou-se com a elaboração de um plano de edificações escolares que permitisse não apenas a ampliação do número de matrículas, mas que também levasse em conta um projeto pedagógico voltado para o aluno na escola.

Na reforma do Distrito Federal, a ampliação do atendimento das crianças, a melhoria da sua freqüência e do seu rendimento, que incluía a cuidadosa preparação do professor e acompanhamento das suas atividades docentes, criou um ambiente em que os agentes escolares cultivavam o sentimento da responsabilidade pela escola enquanto instituição pública. Do ponto de vista dos adolescentes, alunos das escolas técnicas secundárias, a heterogeneidade foi trabalhada dentro da concepção de uma política de ampliação das elites, o que significava também o aumento do número de matrículas e a defesa de que não bastava reunir disciplinas de cultura geral com práticas em oficinas, mas se exigia alargar o conteúdo de cultura geral, recolocando a prática de trabalho como complemento à prática da classe e do laboratório. Do ponto de vista da educação de adultos ampliaram-se consideravelmente as oportunidades de freqüência aos cursos de extensão e aperfeiçoamento. Todas essas iniciativas sinalizaram uma posição corajosamente combativa no campo de lutas pela extensão dos serviços educativos, o que remetia, mesmo contraditoriamente, para um movimento de redistribuição dos bens sociais. Porquê a contradição? Porque, ao mesmo tempo em que a gestão de Anísio Teixeira criava uma política de conjunto, centralizava os serviços educativos. Esta centralização reforçou a leitura da importância das iniciativas do Estado e, concretamente, facilitou o desmantelamento dos seus serviços com seu afastamento e o da sua equipe em 1935.

Já na sua atuação como Secretário da Educação e Saúde, nos anos quarenta, na Bahia, concebeu a criação dos Centros de Educação Popular e implantou, no bairro operário da Liberdade, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro ou, como ficou popularmente conhecido, a Escola Parque. Nela, as práticas escolares estavam organizadas no setor de trabalho destinado às artes aplicadas, industriais e plásticas; no setor recreativo ou de educação física: jogos, recreação e ginástica; no setor artístico: teatro, música e dança; no setor de extensão cultural e biblioteca: leitura, estudo e pesquisa e no setor socializante: grêmio, jornal, rádio-escola, banco, correio e loja.

A concepção que sustenta essas iniciativas é a compreensão de que o ensino primário como o secundário tem uma finalidade cultural e deve atingir idealmente todas as crianças até a idade de 18 anos. Dentro dessa perspectiva ampla é que, para Anísio Teixeira, se colocaria a preparação das elites em todas as atividades e classes e não apenas nas atividades intelectuais. Essa postura é que o leva à proposta de articulação do ensino secundário com o ensino primário e superior, e à defesa de transferências razoáveis de alunos entre os vários ramos do ensino secundário existente à época. Em suma, o que sempre defendeu na sua obra escrita e administrativa é a educação comum a todas as crianças pelo maior tempo possível, a ampliação de facilidades educativas para os alunos talentosos, a variedade e flexibilidade do sistema educativo para atender às diferenças de capacidade e interesses. Com relação a esse último aspecto, os cursos destinados aos adultos foram um sucesso, pois atendiam ao desejo e necessidade de aprimoramento de conhecimentos desses estudantes.

Essas iniciativas constituem medidas concretas de redistribuição da educação como bem social. Do ponto de vista da consolidação de um sistema de educação fundamental, o seu pensamento e a sua prática foram cruciais para construir, na cultura política e social deste país, a consciência de que a educação é um direito, direito inseparável das várias fases da vida de um ser humano, cada uma com um conjunto de significados que lhe é próprio e que pode ser trabalhado numa escola capaz de acompanhar essas mudanças com critérios mais finos de compreensão e que ele denominou de uma escola progressiva.

Do ponto de vista da formação dos intelectuais, o projeto de Anísio Teixeira passa pela criação de instituições, universitárias ou não, que formulem intelectualmente a cultura humana, sejam capazes de incentivar (no caso de órgãos de fomento à pesquisa ou ao aperfeiçoamento docente) e funcionar (no caso das universidades ou dos centros de pesquisa) como pólos de irradiação científica, literária e filosófica, tenham a pesquisa como um valor e a vinculem à docência. A trajetória de Anísio Teixeira em defesa da universidade pública e de instituições públicas de pesquisa ou de financiamento à ela tem implícita a convicção de que não há país capaz de sobrevivência digna sem instituições, sobretudo como a universidade, capazes de produzir conhecimentos e propor soluções próprias às questões que o afligem.

Ao refletir sobre a contemporaneidade de Anísio Teixeira, Jorge Hage enfatiza que o grave e preocupante é que ele permaneça, ainda hoje, à frente do nosso tempo". No espaço limitado desta mesa redonda pareceu-me oportuno destacar um tema, dentre muitos sobre os quais Anísio Teixeira oferece sua contribuição de homem público, com o intuito de reafirmar a importância dos educadores retornarem à tradição democrática que ele nos legou no sentido de pensar algumas questões do presente. Uma das grandes preocupações para os educadores, na atualidade, é a novidade em termos de formação docente que a nova Lei de Diretrizes e Bases (9394/96) trouxe ao determinar a criação dos Institutos Superiores de Educação (ISE), que, ao lado das universidades, deverão se responsabilizar pela formação de professores da educação infantil ao ensino médio. O que a lei propõe é uma nova instituição formadora que funcionará paralelamente às que já existem. No último dia 10 de agosto, o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer e Anteprojeto de Resolução que regulamenta os Institutos Superiores de Educação. Este parecer, segundo pronunciamento da ANFOPE em seu último boletim, referenda as propostas do Ministério da Educação e Cultura de separação entre instituições de ensino e instituições de pesquisa na formação de profissionais da educação, reduzindo os professores a agentes práticos de problemas, alijados no entanto da investigação sobre as condições concretas que os produziram.

Sem entrar no mérito dessa apreciação saliento que a discussão em torno da formação dos professores envolve vários e complexos elementos como o planejamento, que atinge não apenas essa escola formadora, mas todo o sistema de ensino; os salários e a carreira do magistério, enfim, os recursos públicos para educação, as instâncias de decisão das questões educacionais, a avaliação da qualidade do ensino oferecido pelas escolas públicas e particulares, dentre outros aspectos. Não é possível tratar todos eles nesta oportunidade, mas é oportuno frisar que tanto hoje, como ontem, os grandes problemas da educação exigem uma abordagem de conjunto, e sobretudo uma definição acerca do que supomos que seja esse profissional . Hoje, possivelmente mais do que ontem, os professores apresentam uma crise de identidade muito séria. Eles estão submetidos a processos cuja tendência é a mesma para a maioria dos trabalhadores, mas não se consideram apenas e exclusivamente trabalhadores assalariados.

Todo o trabalho dos educadores da geração de vinte e trinta foi justamente o de enfatizar a profissionalização do magistério, combatendo, embora tantas vezes sem sucesso, toda e qualquer medida que pudesse descaracterizá-lo, isto é, que lhe retirasse aqueles elementos básicos que tornam um profissional reconhecido enquanto tal: a competência, isto é, o domínio de um certo campo de conhecimentos, que lhe é específico, fruto de uma formação determinada, geralmente em nível universitário; a vocação entendida como prestação de serviço; a licença, isto é, a existência de um campo demarcado de atuação, exclusivo e reconhecido em lei, protegido pelo Estado contra a intrusão alheia. Supõe-se que esta licença é a contrapartida de uma competência técnica e de uma vocação de serviço. Essa idéia se expressa em termos como licenciatura, licenciado, faculdade, etc.; a autonomia, isto é, os profissionais são autônomos frente às organizações e aos usuários dos seus serviços. Tem ampla capacidade de decisão frente aos problemas, necessidades e urgências daqueles a quem serve; a auto-regulação, isto é, a existência de um código ético entre os participantes do grupo profissional e órgãos próprios para a resolução de conflitos.

Hoje a competência do professor, apesar de reconhecida, tem menor prestígio dentro da universidade, a vocação foi abalada pelo assalariamento, o campo de atuação é parcialmente demarcado, já que o ensino informal existe e para ele não há a exigência da qualificação formal. Ele é parcialmente autônomo já que outros profissionais, no interior da escola, interferem sobre o seu trabalho. Pode ter associações, mas essas não apresentam a mesma relevância dos sindicatos. Enfim, o professor se move imprensado pela autoridade da burocracia, seja pública ou privada, recebe um salário baixo e perdeu a capacidade de determinar os fins do seu trabalho. No entanto, algumas tarefas que desempenha são consideradas de alta qualificação se comparadas com as exercidas por outros trabalhadores assalariados e ainda conserva parte do controle sobre o seu processo de trabalho. As mudanças propostas para os professores podem ser interpretadas dentro desse zigue-zague profissionalização e pauperização. Os concursos públicos e a exigência da formação de nível superior para o professor primário atendem ao polo da profissionalização.

A formação do profissional da educação sempre foi preocupação de Anísio Teixeira. O que ele afirma sobre essa questão? Poderíamos obter alguma resposta examinando alguns textos por ele produzidos dos anos trinta aos anos sessenta. Advirto que não estou considerando este tema no conjunto da sua vasta obra nem trazendo, nesta oportunidade, uma análise acurada das iniciativas que, de fato, implementou, o que demandaria um estudo de maior fôlego e um tempo bem maior de exposição.

Em Pequena introdução à filosofia da educação. A escola progressiva ou a transformação da escola, Anísio afirma que " alguns professores serão tão bons que qualquer determinação externa pode vir a prejudicá-los, e alguns serão tão deficientes, que a exclusiva orientação pessoal conduzirá inevitavelmente a desastre " (1968: 64) Isto quer dizer que, o diploma do docente, como o diploma de qualquer outro profissional ou grau escolar é apenas uma presunção de preparo e não um atestado de preparo (Educação não é privilégio, 1994: 98). O que determina a diferença apontada? Anísio focalizava o paradoxo de que, nessa formação, como em todas as outras, ocorre um processo personalíssimo onde tudo o que se pode fazer é sugerir, facilitar, dirigir e corrigir (1968: 92). Embora ninguém possa educar-se pelo outro, a atividade de educar é por excelência social, no conteúdo, nos modos de ensinar e aprender, nos objetivos e nos resultados (1968:63).

Como formar um bom professor? Bons professores são formados com ciência e arte. Anísio entendia que o professor necessita dos conhecimentos técnicos no campo da Pedagogia e nos campos disciplinares que lhe são exigidos no ato de ensinar, da atitude do artista para quem o trabalho é a sua própria alegria e realização, da inquietação do filósofo para quem "nada do que é humano (lhe) é estranho". O professor, em sua concepção, é um pesquisador dedicado e agudo dos problemas modernos, um estudioso da sociedade, da civilização, do homem (1968: 149 e 150). Um problematizador e organizador da cultura.

Para Anísio Teixeira, o professor não é apenas aquele que trabalha em sala de aula. É um profissional da educação, formado pelas escolas públicas com recursos públicos, já que para ele educar não é processo que se improvisa, mas "processo especializado, variado em velocidade e perfeição a ser aferido por meio de outros processos (também) especializados, sujeitos ao delicado arbítrio de profissionais e peritos e não a meras regras legais ou regulamentares aplicáveis por funcionários" (1994: 97). É um campo de aplicação das ciências, sobretudo da psicologia, da antropologia e da sociologia (Ciência e arte de educar, 1992: 261), o que exige do professor uma substantiva preparação intelectual para que pense com discernimento e, dessa forma, possa ensinar a pensar. Ao lado dessas ciências conta muito a prática educativa. Em Ciência e arte de educar afirma: "(Ainda que essas ciências - as citadas -) estivessem completamente desenvolvidas, nem por isso teríamos automaticamente a educação renovada cientificamente, pois (...) nenhuma conclusão científica é diretamente transformável em regra operatória no processo de educação. (Nesse domínio) o campo específico é a sala de classe, onde oficiam os mestres, eles próprios investigadores desde o jardim de infância à universidade" (1992: 261-262). Embora focalize a ciência na formação do profissional da educação, admite Anísio que a função desse educador é mais ampla do que toda a ciência capaz de utilizar (1992: 271).

Toda a preparação do magistério se faria em nível superior. Afirma ele em Educação não é privilégio, que cabe à universidade ser transformada na casa de formação dos mestres de todos os níveis e dos quadros técnicos, profissionais e científicos no campo da Pedagogia e em outras áreas de conhecimento em todo o país. Sem professores capazes todas as reformas fracassarão (1994: 117).Em minha leitura, o movimento de Anísio Teixeira, nesses textos que citei, ocorre na direção de garantir uma formação do magistério em nível superior, que não separe o ensino da pesquisa nem o locus da formação do professor e do especialista. E isto se explica pela concepção que apresenta de uma escola para o brasileiro, tal qual a define em Educação é um direito (1996) . Trata-se de uma escola unificada, que receberia alunos no jardim de infância e os conduziria por um caminho comum de progresso intelectual, o da escola primária a prolongar-se pelo da escola média, redistribuindo-os, no curso dessa marcha, por toda uma gama de atividades, das menos às mais qualificadas do trabalho humano. A formação diversificada desses quadros seria contínua pois as diferenças de formação de uns e outros seriam de quantidade e ênfase em certos aspectos especiais de interesse e de tipo de atividade, mas nunca propriamente de natureza intelectual ou não intelectual (1996: 58-59).

Do ponto de vista das suas iniciativas, a criação da Universidade do Distrito Federal pretendia, nos anos trinta, ser esse locus de formação de todos os professores, ser ela mesma uma Escola de Educação. Esta experiência foi abortada pelos interesses nacionalistas e católicos. Nas décadas seguintes, ao mesmo tempo em que se consolidava o sistema de educação fundamental, essa consolidação foi se apoiando na especialização de funções e tarefas pedagógicas e segmentou o ato de educar, as responsabilidades educativas, as áreas de atuação do profissional da educação, levando-o a criar e reforçar representações muito fortes de divisão interna na própria prática profissional.

A Escola Normal cuja tradição, em termos de organização e funcionamento, coube aos estados, descaracterizou-se numa escola secundária feminina, preparatória ao ensino superior. O que predominou, portanto, foi a integração das escolas normais no sistema de educação secundária, perdendo-se suas características profissionais. As Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, por sua vez, também trataram a formação docente de forma residual. Nos anos cinqüenta, sessenta e setenta aunidade escolar foi cumulativamente enfraquecida, desvalorizou-se o professor em contraposição ao especialista, houve um processo crescente de perda do poder aquisitivo do salário do docente além de, via de regra, reforçar-se uma gestão autoritária nas escolas públicas. Mas enquanto ocupou postos públicos de destaque, sobretudo como Diretor do INEP, Anísio lutou contra essa realidade com as possibilidades que criava como, nos anos cinqüenta, os Centros de Treinamento de Professores, articulados aos Centros Regionais de Pesquisa Educacional. Vejo nessa aproximação uma tentativa de reunir os cientistas sociais e os educadores num diálogo mutuamente fecundo do ponto de vista acadêmico, com o intuito de examinar à luz dos diagnósticos regionais e da história os problemas enfrentados pelas escolas. Como essa aproximação se deu de forma concreta é assunto a ser melhor estudado através do exame das experiências realizadas, sobretudo dos seus conflitos e de como foram (ou não) resolvidos.

Tanto hoje, como ontem, não há receita para construir um bom professor. Nós nos tornamos professores em circunstâncias nas quais se cruzam diferentes tipos de saberes e de propostas educativas que nos influenciaram e nos moldaram. O saber do professor é um saber plural, estratégico e desvalorizado.

É um saber plural que provém da formação profissional (escolas normais ou faculdades de educação), dos conteúdos disciplinares, dos currículos e da própria experiência. O professor mantém relações diferentes com esses saberes. No caso da formação profissional, as ciências da educação têm um papel fundamental e o que ocorre, no seu estudo, é uma divisão entre os que, a partir dela, saem formados para as salas de aula das escolas primárias e os que irão se dedicar à pesquisa, sobretudo na universidade. A relação entre esses dois grupos se insere numa lógica da divisão de trabalho que separa produtores do saber e executantes ou técnicos. Por este motivo, é difícil que teóricos e pesquisadores atuem diretamente no meio escolar em contato com os professores. Os saberes das disciplinas correspondem aos diversos campos do conhecimento transmitidos nos programas e departamentos universitários que são provenientes da tradição cultural dos grupos que os produziram (português, matemática, etc...). Os saberes curriculares são aqueles com os quais os professores entram em contato no seu trabalho e que correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos da instituição escolar na qual eles se encontram inseridos. Estes saberes encontram-se expressos nos programas escolares. Os saberes da experiência são aqueles que o professor desenvolve no cotidiano e no conhecimento do meio em que atua. Esses saberes nascem da experiência e são por ela validados. Portanto, o ofício de professor apresenta o estatuto de uma prática intelectual que articula, simultaneamente vários saberes. A capacidade do professor reside em grande parte do seu exercício de investir nesses saberes, integrá-los e mobilizá-los na sua prática de forma adequada.

É um saber que se torna estratégico com o advento das nações republicanas, no século XIX. A formação do professor como problema só emerge quando os sistemas de ensino são criados e a educação popular é colocada no centro dos debates das elites dirigentes. Na república brasileira, todo o movimento dos educadores liberais, dos anos trinta aos sessenta, com a criação dos Institutos de Educação e das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras foi o de afirmar o caráter profissional do professor que sofreu, no entanto, uma constante descaracterização dessa direção. O reconhecimento de que o professor exerce um papel estratégico está presente na própria existência de uma rede de ensino e de práticas que exigem agentes formadores em diferentes níveis. No entanto, à medida em que a produção de novos saberes tende a se impor como um imperativo do desenvolvimento tecnológico as atividades da formação e de educação passam para um segundo plano. Na verdade essas atividades ficam subordinadas às atividades de produção de novos conhecimentos. A formação recebida inicialmente pelo docente na escola precisa continuar, através de esforços de atualização. Quanto mais desenvolvida uma profissão sua aprendizagem exige mais tempo e é de uma complexidade maior. Logo, não dá para se improvisar professor. É preciso ter em mente que formação nos saberes e produção dos saberes são pólos complementares e inseparáveis. Trabalhar na difusão do saber é trabalhar na construção de uma opinião pública que tem importância decisiva do ponto de vista político e sócio-cultural.

Se a posição do professor é estratégica porque é socialmente desvalorizada? Já vimos a questão dos salários, da ambigüidade do status profissional e ocupacional do docente, mas não é só isso. Destaco a relação que o professor mantém com os saberes que adquiriu. Se ele assume o papel de "agente de transmissão", de "depositário" de um saber ele mantém uma relação morta com o conhecimento que lhe é externo, e sobre o qual ele não só não tem controle no seu exercício profissional, mas também não construiu de fato uma convicção, uma posição própria. O professor depende do seu corpo de formadores, do Estado. Os saberes que integram sua formação, em grande parte, não são provenientes da sua própria prática. No entanto, o saber que lhe é transmitido não contém, em si próprio, nenhum valor formativo. Somente adquire esse valor na atividade de transmissão. Por isso se fala tanto em repensar a prática, em reconhecê-la e validá-la, através da crítica constante. Por isso é tão importante que o professor tenha sua própria idéia sobre os saberes curriculares das disciplinas e, sobretudo, sobre a sua própria formação profissional. E isso não acontece se ele não produzir conhecimento e se a escola na qual estuda e na qual trabalha não se preocupar em construir o seu projeto pedagógico.

Escola que tem projeto pedagógico tem um corpo docente crítico, tem memória, tem um vivo sentimento de pertencimento e de orgulho do exercício profissional docente. Foi isso que Anísio nos ensinou. Já pude verificar esse fato numa pesquisa sobre o perfil dos professores de segundo grau em escolas públicas e particulares do Rio de Janeiro no início da década de oitenta. Hoje, mais do que nunca, nós professores precisamos dessa consciência e de instituições que a reforcem. Esse é o caráter transformador da nossa prática e aí pode-se perguntar: se a educação é tão condicionada social e culturalmente, se é tão reprodutora de desigualdades e diferenças hierarquizadas, como é possível que seja transformadora?

A possibilidade da transformação só emerge quando consideramos a complexidade da educação no nosso cotidiano. Os ritmos do cotidiano não coincidem e até colidem com outros ritmos. Não existe uma coincidência entre a política educacional, as idéias pedagógicas e as práticas escolares e é com isso que se pode contar para recriar a visão e a produção da escola pública hoje. As mudanças que ocorrem nesses níveis, com exceção do nível da política, são graduais, menos pretensiosas e mais táticas. Elas nos ajudam a verificar a singularidade de cada escola pública e a ver uma especificidade que não se apaga ou submerge no âmbito do jurídico, do normativo. É uma dimensão menos evidente, mas também determinante na produção da educação e da escola.

Pensar dessa forma nos responsabiliza mais. Obriga-nos, como educadores, professores e cidadãos, a construir dentro das nossas escolas um projeto de trabalho e ensino que nos torne menos subserviente aos interesses dominantes presentes no Estado. Não é só uma questão de defender a participação. É também de avaliar em que condições esta participação pode tornar-se realidade, o que pressupõe a investigação tanto das potencialidades quanto dos obstáculos à participação presentes tanto na unidade escolar quanto na comunidade em que está inserida. Isto exige que repensemos a democracia Parece-nos mais fácil sempre saber o que ela deve ser do que aquilo que pode ser. No cerne dessa apreensão está a discussão do consenso e do conflito. Há consensos que facilitam a democracia, outros a entravam. A questão é que tipo de consenso é desejável ou indispensável para uma prática democrática. O consenso desejável é aquele formado por uma opinião pública autônoma, o que só é possível com uma educação não doutrinária, uma educação capaz de ajudar a cada um a se emancipar intelectualmente e com uma estrutura ampla de centros de influência e força plurais e diversos.

Essas idéias parecem óbvias, mas sua realização não é. Mais do que nunca, hoje, precisamos enfrentar os dilemas no presente. Para enfrentá-los há que abrir mão da escola idealizada A opção existencial pela educação ainda é uma questão atual. Essa opção existencial esteve presente em Anísio Teixeira. Ele afirmava: "(...)Não se pode fazer educação barata – como não se pode fazer guerra barata. Se é a nossa defesa que estamos construindo, o seu preço nunca será demasiado caro, pois não há preço para a sobrevivência" (1994: 175-176). Chamo a atenção para o fato de que, hoje, mais do que nunca, o comprometimento da sociedade e dos poderes públicos com a educação brasileira é uma questão de sobrevivência, tal qual assinalava Anísio. Recolhamos da tradição democratizante que ele nos deixou a sua concepção de uma política educacional que execra a uniformização, o descompromisso do Estado com a escola comum e a separação que, nele, os administradores executam entre meios e fins. Na sua concepção também está presente uma tensão não resolvida entre a tentativa de resgatar para a sociedade o papel determinante da tarefa educativa e uma realidade, como ele a percebia, que impunha a exigência de um Estado com função ativa na construção da democracia. Somente o professor bem preparado poderá dar consistência e sentido às tendências de universalização da educação primária e às transformações da escola média e superior. Talvez valha a pena recordar a sua advertência:

"A questão é sobre a escola e não a educação. É sobre a escola que o ceticismo nacional assesta os seus tiros tão certeiros e eficazes. O brasileiro não acredita que a escola eduque. E não acredita, porque a escola que possuiu até hoje, efetivamente não educou" (1994: 175-176). Como romper esse círculo vicioso? Criando escolas que não sejam apenas formalidades sociais, mas experiências significativas de vida. Não há receita para tal resultado, mas sem dúvida, o primeiro passo é a consciência mais ampla possível das questões com as quais nos deparamos.

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