TEIXEIRA, Anísio. Anotações de viagem à Europa. Lisboa: FGV/CPDOC. 1925. 54p.

Diário de Viagem à Europa em 1925

Novembro, 15, 1925

De volta ao Brasil! O meu último dia de Europa passou-se na sombra de um dia de inverno em Lisboa. Desembarquei vindo do Porto, ainda com os olhos cheios da delicadeza afetuosa da paisagem do Minho, tão azul, tão dourado nas horas rápidas que ali passei. O meu fatigado atravessar da França, da Espanha e de Portugal encontrou no Porto e no Minho uma pausa de luminosa serenidade. A quinta dos Ribeiros, os caminhos tortuosos e antigos, o contato com a gente tradicionalmente simples e boa dessa região de Portugal enchiam-me o coração de frescura.

Novembro, 16, 1925

De volta ao Brasil! O meu último dia de Europa passou-se na sombra de um dia de inverno em Lisboa. Desembarquei vindo do Porto, na velha Lisboa, por uma triste manhã de chuva, ainda com os olhos cheios da delicadeza afetuosa da paisagem do Minho, paisagem de ouro e de azul que me encantou como uma página rara de literatura.

Depois de sofrer as imposições de dois ou três chauffeurs, tomei um carro, com ares de limousine para casamentos, que me levou ao palacete do Conde de Mafra, por 30$00.

O Conde de Mafra é uma figura de simplicidade e distinção incomparáveis. Homem de inteligência e coração, a sua vida é hoje um culto interrompido às velhas e boas coisas portuguesas banidas pela república.

O seu palacete povoado de recordações de todos os reis da Europa e especialmente dessa corte portuguesa de que ele foi um dos grandes servidores é bem o quadro de sua vida. A saudade impregna tudo, mas nada entristece. O seu piedoso culto por tudo que a sua inteligência verdadeiramente aprecia e o seu coração verdadeiramente estima não entristece a sua vida, nem a faz sossobrar em uma inatividade reprovável.

Alegre, jovial, ele vive corajosamente a sua dor, que aflora aqui e ali, na conversa, no olhar, no gesto, mas logo apagada por um sorriso, por um disfarse amável com que incentiva o digno e sombranceiro pudor de sua alma.

A nossa prosa ia e vinha livremente como um animal livre em um campo. Afinidades de pensamento, recordações que ilustravam a nossa comum amizade a outro português de qualidades - o Padre Luís Cabral - davam à nossa primeira palestra o encanto de um velho encontro de amigos.

(Apenas a minha inclassificável delicadeza multiplicava grosseiramente agradecimentos sem sentidos)

E para terminar imaginamos ir juntos ao Colégio de Campolide, ao antigo colégio dos jesuítas. Chovia quando partimos. Descemos do bonde na rua Campolide. Caminhamos apressados e silenciosos como se acompanhássemos uma cerimônia fúnebre.

Depois defronte do colégio, a nossa contemplação tinha qualquer coisa de piedoso que nos punha lágrimas nos olhos.

O Conde de Mafra desde a revolução não havia querido voltar aqui, ele, cujo amor a esse grande colégio lhe valera o título de antigo aluno honorário.

Na tristeza daquela manhã o colégio de Campolide com os seus soldados em armas nas portas dava a idéia de uma casa particular vítima de uma ocupação militar recente. Porque era ainda o colégio que estava diante de nós. Com o seu observatório na torre, com a sua igreja, com o pedestal desarvorado de onde a Virgem presidia e abençoava o santo labor dessa casa... Apenas os fusis acentuavam insolentes que a ocupação continuava. De volta desse passeio?. Conde de Mafra contava-me como ele pudera, às escondidas, no período do governo do Sidônio Paes, transladar os restos mortais, que andavam abandonados não sei por onde, de Nuno Tavares para a igreja do Carmo, por cuja porta passávamos e que lhe sugeria o episódio.

Ao nos despedirmos eu repetia a frase que lhe escapou na conversa e que é bem o julgamento de uma época e dos seus homens. A República portuguesa exige, como condição para perceber os seus ordenados a todos os professores das Universidades, uma profissão de fé republicana.

O Conde de Mafra há quatro anos não recebe um cêntil porque se recusa à tal profissão. E concluía: como poderia eu, eu que sou de uma dinastia de servidores do rei, fazer profissão de fé republicana? Ah! o regime que permite que um homem repita, com orgulho, que pertence a uma dinastia de servidores, é um grande regime.

Novembro, 24, 925

O estado de espírito da humanidade hoje, nas grandes cidades é semelhante ao estado de espírito que costuma reinar na guerra. Um homem que esteja condenado ao drama formidável e que que faça a guerra com essa persuasão instintiva que é aquela a última cartada que ele joga, perde sistematicamente a esperança. As suas reservas de virtude e força se misturam no único esforço definitivo que exigem dele. Todas as preocupações de futuro desaparecem, para apenas predominar a preocupação do presente alucinante.

Nos momentos de permissão, esse homem não procura divertir-se. É muito vulgar a diversão para a sua vida tecida no drama e no sangue. Procura esquecer, anestesiar-se, usar de todos esses sucedâneos dos delírios justos das felicidades pacíficas e tranqüilas.

A noite do homem moderno é o seu momento de permissão na luta formidável. Por que admirar as alucinações dessas noites se sabemos quais são as realidades incruentas dos dias?

24 novembro 925

Quando eu procuro rever Paris e fecho os olhos com energia, num apelo a todas as forças misteriosas da lembrança, gira em minha imaginação um filme singularmente confuso, um filme cujas cenas criadas na dispersão do trabalho preparatório dos estúdios, não fossem postas em ordem, um filme a que faltasse a inteligência organizadora do diretor de cena ou que, por paradoxo, tivesse um metteur en scène genial. Todos os planos se confundem como em um pesadelo. O real e o imaginário fazem um só par singularmente afetuoso, como na vida.

O fantástico, o artificial enquadra os seres banais da vida cotidiana, elevando-os, consagrando-os. As pequeninas maravilhas das mil e uma noites têm o aspecto de brinquedo de crianças `a vista das realidades das grandes cidades de 1925.

Quando a sombra desce sobre a grande Babel, com a naturalidade que se extingue a luz em um cinema, é que a cidade toma todo o seu prestígio.

As primeiras cenas, como nos grandes filmes apresentam o quadro inimaginável. A eletricidade acende as flores inquietantes que decoram os cenários de fantasia e de sonho. E sob a carícia daquelas chamas impassíveis, o chão é uma superfície móvel de rodas e pés, que vão e vêm, sobem e descem, riem, fonfonam, gritam numa apresentação supremamente original dos personagens.

O ambiente requintadamente artificial de Paris aparece como um studio gigantesco, em que já não houvesse a preocupação pueril de ocultar os andaimes, os holofotes para a iluminação das cenas, e todas as pequeninas misérias dos bastidores e das coulisses.

A rua é dentro da vista um excitante para as imaginações mais desvairadas. O carnaval, com o seu efeito sobre a vontade e a mentalidade dos homens, é a sugestão constante dessas noites delirantes e modernas. Nesse quadro eminentemente pérfido e sugestivo da vida moderna, o Homem. Passeia a alma decapitada e cega. Não o guia nenhuma força lúcida. Não o guia nenhuma fortaleza. A matilha de todas as fraquesas e de todas as misérias envolve, morde, acúa esse rei destronado. Dentro do quadro dantesco da civilização o homem é um títere, grotesco como todos os títeres. Diverte-se. Diverte os outros. Chora. Comete todos os dramas. No mais dilacerante Grand Guiguol, no Grand Guiguol de uma noite em Paris.

*****

Por sobre o delírio dessas cenas do filme, au dessus de la meleê, a maioria da humanidade dorme tranqüila ao lado da Alucinação.

A curiosidade, o desejo, o fastio, o tédio, a atração da miséria tecem a teia inverossímel e luminosamente arquejante do espetáculo de Paris. Mas, o número de atores é sempre minúsculo e o teatro, bem entendido, está vazio. Os atores representam para si mesmos. E quando o dia renasce moralizador, honesto, natural, sacudimos a cabeça sufocados como se acordássemos de um sonho de ópio.

O espetáculo,porém, se repete em um só ato e milhares de quadros pela décima milionésima vez. O sucesso é de tal ordem que se não espera mudança de cartaz.

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O dia 11 de novembro foi um triste dia de chuvas em Paris. Passei-o no afadigado dos últimos preparativos de viagem e às 8 horas, depois de percorrer pela última vez a avenida dos Campos Elíseos e parar, a cabeça descoberta, diante do soldado desconhecido, sob o Arco do Triunfo, embarquei para [ ?] . O dia amanheceu pouco depois de [?]. Fazia um sol ameno de inverno e a paisagem nesse sul da França era ainda verde e linda como a que havia atravessado quatro meses antes. De [Irv ?] penetramos a terra espanhola. Só tivemos dia em Castela. A noite toda passamos em animada palestra: dois portugueses muito meridionais e uma italiana, bastante moderna fizeram do nosso compartimento um gabinete de conversa audaciosa e franca. Quando o dia começou a raiar para esses quatro farristas extravagantes de um trem, Castela estava sob os nossos olhos toda enfeitada de neve… Depois a neve foi aumentando, aumentando e a terra desolada de Castela era magnífica de alvura e de luz.

A italiana de mentalidade moderna havia nos deixado e os dois portugueses, um deles antigo ministro da república no governo de Sidônio Paes, discutiam comigo problemas difíceis de intercâmbio intelectual entre os nossos dois países e comentavam com seriedade os disparates políticos do seu país.

*****

Barca d’Alva nos anunciou Portugal. O Douro árido, torturado, montanhoso abria para nós os seus vales intratáveis.

O trem sobre as montanhas traçava curvas magníficas e a paisagem tinha a sedução de uma vista sobre precipícios. Pouco a pouco a natureza vai-se humanizando, a terra vai-se povoando e a entrada no porto é sob o regime do Minho todo verde, todo frescura.

Porto é uma cidade comercial aparentemente sem interesse.

No outro dia, tomava em Boa Vista um comboio para Póvoa. Um pequeno comboio sem pressa e que me permitiu apreciar demotradamente a paisagem.

A seguir, de automóvel fui a Famolicão, à quinta dos Ribeiros e depois voltei ao Porto.

Tudo está tão enraizado, gentes e coisas, nessa terra do Minho que se traz de lá uma saudável impressão de estabilidade, de segurança e de gosto. Depois a paisagem é afetuosa, é feminina nos seus contornos, nas suas cores, na sua luz. Do Porto para Lisboa gastei 12 horas. Uma noite. Amanheci na praça do Rocio e a velha cidade portuguesa não me dizia nada, depois que o Minho me presenteara com toda a frescura e todo o azul do país.

A visita a um amigo ia povoar-me esse dia de Lisboa e o torná-lo para mim um dos mais inesquecíveis da viagem.

*****

De Lisboa, sob um céu cheio de estrelas, partimos para bordo do Gelria. O Tejo era uma coisa informe e sombria, sobre que floresciam, como esóticas plantas aquáticas, as lâmpadas das embarcações espalhadas aqui e acolá e invisíveis.

Sobre essa água negra e em uma noite de breu, o nosso rebocador avançava hesitante. A partida e a paisagem tinham qualquer coisa de macabro e aumentava em mim essa pequenina impressão de angústia que nos dá o embarque em um porto desconhecido para uma grande viagem.

Afinal o Gelria apareceu iluminado como uma casa em dia de festa.

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A bordo. O mar tem sido inclemente. O vapor tem jogado a valer.

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16 novembro 925.

Relia hoje velhas coisas que havia escrito na minha viagem para a Europa.

Até que ponto os meus desejos e as minhas previsões se realizaram?

De modo geral devo dizer que o aprendizado foi muito curto e que é muito cedo para tirar conclusões.

Sob o lado técnico ganhei evidentemente alguns conhecimentos novos. Sob o lado de formação geral aumentei, é inegável, o meu cabedal de cultura.

Mas, a minha resposta sobre a influência dessa viagem sobre a qualidade do meu espírito, será tão positiva?

Se posso dizer que ganhei mais facilidade diante da vida, não deverei dizer que ganhei mais banalidade diante da existência?

E a minha fé, a minha compreensão metafísica da vida não está também cada vez mais afastada de mim, como um objeto que eu conservo culto mas de que já não uso?

Não foi essa viagem talvez outra coisa senão uma dissipação do espírito e da inteligência. O espírito dissipou-se na sua fé. A inteligência diluiu ainda mais a sua cultura. Ah! Como seria melhor do que essa vaidade de enriquecer o espírito com viagens e com espetáculos deslumbrantes e novos, possuir o amor tranqüilo de algumas coisas certas e profundamente enraizadas.

Paisagem do Minho como essa lição se desprende de suas árvores, de suas casas, de sua gente.

Perdem as coisas o valor se elas se põem a comerciar as suas qualidades. Mais vale isolar-se e cultivar fervorosamente as suas modestas virtudes.

Ter pouco, mas seguro, forte, inarrancável é melhor do que esse brilho de mil facetas de cores cambiantes com que se enfeita um espírito viajado, brilho fatigante porque lhe falta a profundidade, porque não é luz própria.

Pequenas e humildes qualidades do meu espírito, eu me volto para vocês de retorno dessa longa viagem.

Esse ar dos grandes países é muito rarefeito. Na Bahia, eu vou tratá-las como se tratam plantas anêmicas. Muita alimentação e muito cuidado. Tudo concreto, preciso, afetivamente real.

O vago brilhante é o vício a que habituaram quatro meses de elegante vagabundagem pela Europa.

Pois bem, tudo não está perdido. Desses quatro meses muita coisa se há de aproveitar. Mas está encerrado o ciclo da vida errante e amável.

Vamos trabalhar e pensar. E nos vagares das nossas pausas ouçamos, como um velho ouve um moço descuidado, as aventuras de nossa viagem, para tirarmos delas conclusões práticas e sisudas.

OBS: O manuscrito deste diário de viagem (inédito) consta do Arquivo Anísio Teixeira, FGV/CPDOC, sob o código ATpi 25.07.17 (filme 03).

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