TEIXEIRA, Anísio. Anotações de viagem aos Estados Unidos. Navio Pan American: FGV/CPDOC. 1927. 50p.

Diário de Viagem à América em 1927

In board Pan America

27. 4. 927

Acho-me a bordo do Pan America, de viagem para Nova Iorque.

Embarquei às 4 horas da tarde, dessa linda tarde de hoje que ainda mais carregou de saudades uma partida para mim tão cheia de apreensões.

Deixei que o Rio fosse desaparecendo sob as minhas vistas. Quis ver até perder-se dos meus olhos a terra carioca.

A bordo, até o momento, nada de interessante.

O navio é americano e está cheio de americanos. Alguns argentinos. Muita ordem. A não ser por ocasião da partida em que o deck estava repleto, agora vêem-se poucos passageiros.

Sigo para a América com o espírito de um estudante. Renovo as minhas disposições de curiosidade, de entusiasmo pelo novo e pelo inédito. Não prevejo qual seja o meu depoimento sobre o povo que hoje é objeto de tanta curiosidade e fonte de tantas lições.

Tenho tanto que aprender. O sentido da viagem por turismo, por prazer, é que me falta. As viagens terão sempre para mim esse travo sério de um alto exercício espiritual. O desenraizamento penoso de nossos costumes, nossos amigos e nossas coisas - de nossa terra - e o cultivo novo em terra alheia é para mim sempre uma ginástica custosa do espírito. Custosa e áspera e austera. Há sempre necessidade de uma pequenina coragem para levar avante uma viagem.

Entretanto, por que não dizer que precisava dessa mudança? A vida, a Bahia, o trabalho iam-me condenando a essa fadiga, que nos incapacita para qualquer renovação. Essa viagem poderá renovar-me. Renovar-me o espírito de entusiasmo. Renovar-me as fontes daquele meu antigo ardor. Tornar-me menos egoísta. Salvar-me dessa falta de espírito de sacrifício que me ia vencendo.

Renovar ainda a minha sede de estudo e de conhecimento. Pois não é verdade que até nisto se acentuava o que eu chamo a minha decadência? A possibilidade de me coordenar melhor, o desejo de sempre progredir em tudo, esse amor à luta tão americano, a infatigabilidade do querer - tudo me poderá dar essa viagem.

Chego a pensar que os americanos não conversam, riem.

Em minha mesa encontram-se: uma senhora, muito alegre, muito risonha, o que nada falta para ser uma legítima americana: nem a nasalidade de uma língua dificílima de perceber; nem a liberdade masculina de conversa; nem essa energia amarga de uma raça forte e positiva. Ao seu lado senta-se um americano moreno, cuja origem não descubro e que tem uma sossegada e tranqüila alegria, sem irritação e sem dificuldades. Um americano de origem francamente alemã, mas participante desse bom humor nacional, se encontra junto de mim. Do outro lado, um senhor moço, também alegre e bem prático. No centro o engenheiro-chefe de bordo: um velho, de rosto liso e energia intacta, de riso contente e fácil.

Como se vê o primeiro traço que percebo do americano é o da satisfação. Daí, esse aspecto raro: não vejo nenhum americano antipático. Todos têm essa alegria um nadinha mecânica e como artificial, mas que lhes dá um ar de simpatia, de vitória.

A bordo do Pan America

30 abril 927

O primeiro contato com a América através este navio, se tem sido um curto e pequeno contato, não deixa de ser expressivo. Vivo entre um povo cordial e frio. No fundo é a eterna mola que faz com que tudo seja exato, automático, maquinal, neste país. Mas, conto um pequeno incidente de início que me revelou, de pronto, a natureza yankee.

Chegado à sala de jantar, indicaram-me meu lugar em uma das mesas. Estava vazia ainda. Sento-me. O garçon pede-me o nome, o que não estranhei, avisado que me achava da liberdade dos criados americanos. Chegam porém os demais companheiros de mesa - e compreendo a necessidade que tinha o waiter do meu nome. Apresenta-me aos demais, como um verdadeiro mestre de cerimônia. Os americanos apertam-me a mão afetuosamente.

Contava ter, daí por diante, verdadeiros camaradas. Nada disto. Cumpriram praticamente, maquinalmente, aquele dever - e acabou-se.

Depois, o cumprimento sempre muito cordial não tem faltado, mas fica aí. E a conversa da mesa transcorre entre os patrícios - muito cheia de riso e quase sem palavras.

Fazem a vida com esse bom humor, esse cálculo, essa aceitação que os impede de estar tristes. Há, em tudo, para nós um pouquinho de montagem.

Para eles - entre o espírito que fomos, por vezes, em uma função, em um dever, e o que temos diante da vida, em geral, não há diferença.

Esse fundo de sonho, de hesitação, de inconsciência, de mistério que nos faz a nós latinos - cismadores e tristes - eles não o conhecem, nem o querem conhecer. O lado positivo, o fato da vida, os absorve e basta.

Refletindo-se, vê-se que eles têm razão. Mas os americanos têm sempre razão, sempre lógica - o que não quer dizer que tenham da vida o seu sentido completo e difícil.

Continuemos, porém, as observações concretas.

Se as refeições transcorrem nessa cordialidade que acentuei, cordialidade a que falta, não é demais repetir, essa espontaneidade, esse mais ou menos, as hesitações de uma cordialidade sincera e sentida - antes parece uma cordialidade voluntária, querida e aceita por todos, por ser mais cômoda - a vida de bordo guarda esse mesmo traço.

Ou nos passeios do tombadilho, ou reunida nos salões, ou animada pelo prazer do sport e da dança - é a mesma sociedade satisfeita e à vontade, superiormente instalada na vida, que se diverte com ruído e correção, voluntariamente alegre e satisfeita.

Um dia depois da partida do Rio, marcou-se uma reunião para tratar de sports: O comissário fez um pequeno discurso e a seguir elegeu-se uma comissão para tratar de organizar diversões para os 13 dias de bordo.

Aqui onde estou, tenho a meu lado the chairman of sports, que trabalha à máquina, organiza programas, distribui jogadores, enfim entrega-se a um verdadeiro trabalho de diretor de sports. É um senhor de nada menos de 45 anos e leva para isto uma exatidão e um esforço iguais aos que levaria para o seu trabalho.

É uma raça unificada. Pode-se assim resumir o conceito que se poderá fazer sobre esse grande povo, que vive a vida com a precisão e a dignidade de uma máquina.

1 maio, 927

Em caminho de New York

Deixamos de ver terra. Temos somente diante de nós o grande oceano. E muito longe, essa New York tumultuária e colossal. Tão profundamente diferente de tudo que eu conheço. Tão chocante. Caminho para esse mundo novo com uma curiosidade apreensiva e febril. Deixei para ir conhecê-la meus amigos, meus livros, meus deveres, minha terra. As vozes do meu sertão, que, na Bahia, se faziam tanto ouvir convidando ao silêncio, ao isolamento, à intimidade sertaneja, como insistem agora dentro de mim tornando mais penoso o meu desenraizamento...

As hereditariedades tranqüilas que acompanham um filho daquelas terras virgens do Brasil, não consentem em uma vida cosmopolita. A nostalgia que o acompanha é muito forte para que as viagens lhe possam ser um prazer. Antes, um custoso sacrifício. Uma provação. Como compreendo a coragem do imigrante. Como lhe deve ser pequeno o mundo de afetos que o ligam à terra natal, ou como lhe deve ser vasta e teimosa a coragem.

Daqui, deste isolamento de bordo, como a minha saudade se estende, não à Bahia, mas as pequeninas ruas da cidade sertaneja que me viu nascer.

Como tudo revive em nós, mesmo o que julgávamos morto e inexistente.

A distância e a solidão fazem florescer coisas idas e que conservam o seu formidável poder de ligação à terra e ao meio de onde somos. Uma só dessas coisas, humildes e pequenas, bastaria para nos fazer companhia e desmanchar o mal estar de saudade que nos invade e nos entorpece.

Como compreendo o ardor com que acompanhei o Rio quando o deixamos. Do ponto mais alto do navio, ao sol, como enchi os olhos de minha terra, querendo levá-la na retina para me acompanhar nessa longa, longuíssima excursão.

Não era a beleza do panorama, não era a cidade admirável naquela tarde de azul e de luz, era o pequenino segredo que ela me revelava por ser a minha Terra e o meu Brasil.

Amanhã me ligarei a New York e a deixarei com saudades. É possível. Mas, isto não diminui a minúscula e secreta angústia que me vai perseguindo, infatigavelmente, nessa viagem.

1 de maio, 927.

A minha viagem se é uma viagem de estudos, especializada, em que vou buscar elementos positivos de informação, - não deixará, não poderá deixar também de ser formadora de personalidade, educadora, no sentido em que nos educam os conhecimentos novos e os nossos contatos.

Nem estou eu tão formado, que não me preste às influências de uma excursão como esta.

Sendo assim, será possível fixar o quadro de verdades em que me fixo atualmente, o meu ponto de vista ou de referência diante da vida, para depois observar as modificações?

Qual a minha situação diante dos problemas essenciais da vida?

Atirado muito cedo para a ação, misturado com o agitar cotidiano do meu país, perdi um pouco a perspectiva para julgamentos gerais. Sou hoje francamente otimista. Tenho fé no trabalho humano, na vontade humana e sinto que, de tal forma, somos governados por uma força invisível e voluntária, que o erro é uma coisa insignificante, quando não constitui um detalhe indispensável à harmonia da obra de conjunto.

Por isso o meu otimismo vem tocado de fatalismo.

Mas, dentro desse otimismo geral, seria imbecil que não se acreditasse que há melhor e pior, desvios e retas, caminhos longos e breves.

Para cingir mais de perto o nosso assunto, obedeçamos às gerais classificações do pensamento.

Em política - A minha crença política definitivamente se inclinou para os regimes descentralizados, facilitadores do florescimento das energias individuais, e das iniciativas pessoais e que garantam uma exata classificação social. Regime livre e justo. Livre, no sentido de não se coibir, de nenhuma sorte, o desenvolvimento do indivíduo e da família; justo, no sentido de criar uma atmosfera onde os quadros sociais se instalem com sentido do merecimento e do valor. Justo, no sentido de permitir as aristocracias. Não pareça que isto dito como está, coisa simples e realizada. Estamos longe disto. Temos, de alguma sorte, liberdade. Mas, essa liberdade sofre algumas restrições sérias.

No campo do pensamento ou da religião podemos fazer o que queremos, mas o que nos é dado, pela escola, pelo governo, é feito sob medida positivista ou agnóstica. Não temos a liberdade de escolher.

Positivando - o pobre não pode, no Brasil, dar educação católica ao seu filho. É isto uma restrição séria e incontestável.

Se a liberdade tê-mo-la com restrições, o que direi de justiça, compreendida como indiquei.

A nossa democracia tem sido o regime das inversões de valores. Estamos longe de uma fixação honesta dos valores brasileiros. Pelo contrário o triunfo se está dando pelo melhor dotado das qualidades inferiores que permitem os triunfos culpados de que somos testemunhas.

A América vai mostrar-me uma democracia descentralizada, com o estado reduzido ao mínimo e em que um ambiente de cultura intelectual, moral e cívica permitiu a formação de uma aristocracia. Como disse um escritor célebre - a democracia americana encerra uma possibilidade de igualdade; as outras democracias têm procurado obter uma realidade de igualdade.

Tanto é justa a primeira, quanto iníqua e revolucionária a segunda.

É essa realidade de igualdade niveladora que cria nas democracias latinas a abstenção dos melhores, para que se permita o triunfo dos medíocres.

Afastada a possibilidade do regime forte e harmonioso que seria a monarquia - só nos resta aperfeiçoar a nossa república.

Em religião - Se conservo intactos os princípios, andam fracos os laços ativos que me prendiam ao catolicismo. A vida ainda tem sobre mim fascinações inéditas e a vida forte e de sacrifício do catolicismo é muitas vezes custosa.

Vou mesmo perdendo aquela elasticidade antiga que me permitia as longas resistências. Entretanto, o meu sentido católico ainda está vivo para contar as alegrias e os deslumbramentos de uma vida sem fraquezas e sem degradações.

Oh! Essa nobreza do corpo, que só o catolicismo dá, ainda a percebo e a estimo.

O que preciso é de uma cura de vontade, de energia - e onde a poderia ter mais intensa, mais eficaz, mais penetradora do que na América, o país voluntário, por excelência?

Se efetivamente, a vida com enriquecer o meu sentido de tolerância e ceticismo, tem, do mesmo passo, enfraquecido o sentido da luta e da renúncia - que outro país melhor do que a América poderia renovar-me as fontes de ação, de energia e de apostolado e afastar - para sempre - esse terrível - não vale a pena - que é a tentação indefectível de uma mente medianamente culta? Sob nenhum ponto de vista levo mais contentes e mais seguras esperanças. A América vai ser para mim, uma cura de vontade.

Em educação - Os moldes do meu pensamento neste assunto se se moldaram na Europa, se aproximam hoje, vivamente, dos americanos.

Acredito que vou ter sobretudo confirmações. (Com as notas antigas fazer um quadro definitivo)

Em viagem para New York

A bordo do Pan America

Maio, 3, 927

Acabo de ler a obra de Ford, My Life and Work, que é bem uma preparação para visitar o país americano.

Não conheço livro que produza uma mais profunda e positiva impressão de otimismo e de confiança.

Como as grandes obras de lucidez e clarividência, não há nesse livro lugar para as fraseologias, o sentimentalismo, as hesitações.

Tudo está tão unido, tão cerrado, tão nítido, que lembra a obra do Henry Ford um desses tratados definitivos sobre determinados assuntos, um desses livros de que jorram uma tal quantidade de luz e verdade incontestáveis, que para sempre ficam como a pedra angular do assunto, que poderá ser enriquecida de comentários, acrescida de detalhes - mas, sobre que sempre se há de apoiar a razão humana.

Em campos diversos - na vida espiritual, um; na vida industrial, outro; - dois livros deram-me a sensação de plenitude, de profundo acordo, de inexistência de dúvida - Os exercícios espirituais de Ignácio de Loyola; My Life and Work de Henry Ford.

Ambos têm esse traço característico de unidade, de equilíbrio, de ligação que marca as obras que descobriram o contato com a realidade.

Esse realismo essencial, indestrutível que define a verdade e lhe dá essa força de golpe, de arremesso, com que tais livros nos a comunicam.

A indústria, compreendida como serviço, como serva do bem estar coletivo, que grande, que comovente e que lúcida concepção sobre a vida?

Como estamos longe dos ideologismos filosóficos ou socialistas.

Não há supressão imbecil dos defeitos humanos na obra de Ford, nem esperança disto - há um espírito de utilidade mais intenso, há sobretudo mais inteligência, mais cérebro, como costuma ele dizer.

Os eternos motivos do egoísmo humano são conservados; não há uma fé idiota na perfeição humana - há clarividência para lhe dizer: façamos assim - e o operário terá maior salário, o capitalista mais lucro, o público melhor serviço - e todos seremos mais felizes. Os métodos de Ford não repousam em nenhuma verdade conquistada. Ele trabalha com as verdades antigas. De novo, o que há é o espírito, com que ele vê essas verdades.

A sua confiança no futuro, a sua crença que tudo está apenas esboçado, e sua impertubalidade diante da concorrência, da produção multiplicada, e a sua largueza de inteligência.

Existe em Ford muito dessa confiança evangélica de que há lugar para todos no mundo. Cada um cumpra o seu dever e a todos será dado cem por um.

Não é isto que diz Ford?

Alguém já tratou da prosperidade material da humanidade com maior pureza, maior retidão, menor vestígio de orgulho humano.

Não percorre o livro de Henry Ford um só traço de orgulho, de revolta, dessa exagerada satisfação, que revela o desvio, a superposição do homem à obra divina.

Sem falar ele de Deus, toda a sua obra respira o Seu espírito, tanto está impregnada de ordem, de desprendimento, de humildade, de subordinação do homem à qualquer coisa maior do que ele.

Longe da divinização do homem, em nenhuma obra está ele mais subordinado, mais ligado, mais no seu lugar. E essas idéias estão comprovadas pelo mais estupendo triunfo material que já se há visto.

Sonhador, revolucionário, fantasista - diriam os medíocres de inteligência. Mas, aí está o progresso e a prosperidade de sua obra sem igual.

As suas verdades, aliás, são verdades tão elementares quanto formidáveis. É sempre certo que a verdade está na superfície das coisas, que a verdade é fácil, deve ser fácil - e por que será que os homens custam tanto de vê-la. E são necessários os gênios para nos revelarem o que está já na vida de todos e que ninguém vê.

Para mim não precisava maior prova da grandeza da obra de Ford: é simples. Não há complicação, como no evangelho também não há. Todos a poderão entender, e nunca se terminará de comentá-la.

E como a sua revelação vem a tempo. Porque se são simples as suas idéias, elas exigem para sua realização um estado relativo de desenvolvimento da indústria que só agora vimos atingindo.

Eu creio, por causa deste livro, que estamos às vésperas da supressão da miséria, que estamos às vésperas de um sólido bem estar coletivo, se os homens abrirem os olhos aos exemplos da obra de Ford; mas, parece-me que bem pouco do que ensina Ford seria possível antes. A indústria, porque será pela indústria que obteremos a nossa salvação material, a indústria só agora se acha em condições de suportar os processos de Ford.

E isto de ele vir a tempo, dá-me como um caráter sagrado, de revelação - que ainda torna maior a sua obra.

A parte de correção do seu livro é realmente pequena e possível e só isto será bastante para provar-lhe a oportunidade.

Mas, dir-se-á o triunfo de Ford é um triunfo pessoal. Acho insignificante a argüição. Cinqüenta mil homens em trabalho, quatro ou cinco formidáveis empresas, separadas até pelo oceano, dispersam demais a ação pessoal de um homem, para se poder dizer que o triunfo dessa obra é o triunfo dos pequeninos imponderáveis de uma personalidade.

Há mais. Há o triunfo de métodos, de princípios. O triunfo impersonalíssimo da Empresa.

Amanhã as idéias, os processos, os métodos de Ford serão correntes. A ignorância e a estupidez dos homens se oporá. Mais uma e outra serão vencidas pelo bom senso, pela lucidez, pela clarividência do homem moderno.

E sem revoluções. Sem sobressaltos. Sem reviravoltas. Dentro do atual regime e da atual ordem das coisas. Com continuidade, com progresso, com desenvolvimento da mesma obra que o homem vem lentamente, penosamente, duramente realizando através dos séculos.

Parece-me que aí está, repito, o segredo da verdade fordiana. Nós não progredimos por saltos. E não há salto na obra de Ford. Não há mudança de atmosfera. A sua obra respira o nosso ar. Não há destruições: há aproveitamento; há ordem; há clarividência. Todo esse material o temos. Por isto não terminei a leitura do livro admirável - sem que ela me não obrigasse - ao mais vasto, mais confiante e mais generoso ato de fé na vontade e na obra humana que já hei feito.

A bordo do Pan America

Maio, 4, 927

Houve, à noite, uma sessão de sports. E o escolhido foi o do box. Venho desta reunião, e os meus nervos ainda estão a tremer da violência e do furor dessas lutas humanas.

Apareceram seis jogadores, dos quais dois franceses, dois americanos e um filipino.

O sangue escorria das faces dos jogadores. Havia, nos últimos rounds essa lentidão penosa e violenta dos esforços máximos.

E tudo aquilo era assistido com risos, alegria, festa.

É um traço característico desse povo essencialmente forte.

Como, tudo isto se coaduna com o hard work, que poderia ser a divisa da gente americana.

Em tudo e para tudo levam eles esse superávit de energia e essa ausência de falso sentimentalismo, que não é senão frouxidão de nervo do latino.

A sessão não foi notável. Mas fique registrado essa documentação dos bons nervos americanos.

Não surpreende. Mas, o observador estima essas confirmações.

S.S. Pan America

Maio, 5, 927

Se eu continuasse as minhas observações de bordo, seria indispensável fixar aqui alguns tipos bastante característicos, dentre os habitantes desse pequeno mundo, de breve duração, mas tão interessante, de um navio.

Mas, não me destino a tais observações. Basta, para mim, o traço geral. A satisfação, a falta de etiqueta e de formalismo, a sobriedade (um único prato em cada refeição), a marcha forte, atirada, de arremesso, que se torna visível sobretudo entre as mulheres, a facilidade infantil de se distrair, a completa ausência de espírito, no sentido latino da palavra, e o gosto dos sports e da dança (que aliás parece-me menos intenso) são as linhas em que se encaderna este povo, que se pretende e que tem de fato a liderança do mundo. Tem-na pelo dólar, pelo trabalho, pelo progresso.

Mas a sua falta de ... formalismo, digamos, a sua sans façon é realmente de arrepiar. À noite, ao jantar, as toilettes... Santo Deus! Há os ciclistas, os casacos de sports mais variados, os coletes de lã a dispensarem casacos, há as combinações mais insolentes e mais grotescas que se podem imaginar! Hoje havia um que trazia smoking e calça branca enxovalhada. Assim, em tudo. Aos jantares, é comum tomar a palavra um dos senhores e dizer pilhérias, sob pretexto de anunciar qualquer coisa, que ficavam perfeitamente em um palhaço. Outro, lembra-se de cantar qualquer coisa, em pleno jantar e é, vivamente, aplaudido.

E toda essa gente vive a bordo como se estivesse em sua casa. Pela manhã enche-se a piscina. Toma-se café. Ou melhor, almoça-se, e de verdade. Lê-se, conversa-se, passeia-se. Às onze e meia, corridas de cavalos. Aposta-se. Em cada uma das Races Horses, o total de apostas é de 30 e 50 dólares. Lancha-se, às 13 horas. Há jogos esportivos até as 18. Às 19 janta-se. Até as 23 dança-se. Ou então há alguma sessão especial, como ontem, a de box. Como amanhã em que haverá baile de máscaras. Confirma-se para mim aquela teoria dos American Shocks. Dentro dessa cordialidade esse povo repele as qualidades mais delicadas do espírito, por serem fracas.

Eles são uma tal demonstração de energia que se torna o seu ambiente, levemente arrogante, insolente, indesejável.

Não nos precipitemos porém.

Continuo a suportar as suas pisadas de soldado em marcha diante de minha cadeira de bordo, as suas ruidosas expansões, para que me seja possível conhecer alguma coisa dessa extraordinária alma americana.

Monografia de Las Escuelas de Pintura al aire libre - Publ. Off Mexico

9 maio 927.

O senhor doutor Carlos Trejo Lerdo, Ministro do México em Havana, para onde foi agora transferido, deu-me oportunidade de percorrer o álbum de fotografias e tricromias dos melhores trabalhos de pintura de quatro escolas modernas recentemente fundadas em seu país.

Essas escolas de pintura se localizaram em Xochimilco, Tlalpam, Guadalupe Hidalgo e Churubusco. Nelas predomina a raça indígena, sendo que em Xochimilco todos os alunos são indígenas e em Churubusco 50% deles o são.

As escolas obedecem ao método moderno de ensino e são pode-se dizer verdadeiros laboratórios por onde se pode apreciar o merecimento e sentido artístico da raça.

A criança não recebe influência nenhuma estrangeira e apenas é conduzida a observar a sua terra e sua gente sob o aspecto estético.

A pintura é, assim, um meio de expressão exato e espontâneo. É além disto o depoimento psicológico desse povo.

E que admirável depoimento. A série de trabalhos de alunos de 9 - 30 alunos que encerra esse álbum é a mais expressiva revelação da profunda intuição artística da raça indígena no México.

Não é a educação que lhes deu aquela inspiração e aquela... técnica, porque não dizer. São as hereditariedades remotas daquele povo, que agora encontram uma oportunidade feliz para surgir..

Já percorri duas, três vezes todo o álbum. Há tudo a mostrar. Impossível exemplos. A cor regional é perfeitamente mantida, o equilíbrio e a harmonia das cores revelam um rigoroso sentido estético e a força de expressão que, por vezes, aparece, nítida, inconfundível em alguns ótimos retratos promete, para muito breve, grandes pintores ao México.

Don Simon, Don Pedro el Cabrero, De Camino são quadros que nos ficam na consciência, tão fortes são eles.

Em Don Simon domina essa rigorosa expressão masculina, castigada e franca que caracteriza certas figuras mexicanas.

Don Pedro el Cabrero reforça essa expressão com qualquer coisa de mau e oculto em seus olhos desconfiados e em sua boca de tão inexprimível e revoltado amargor.

De Camino é o quadro que encerra o livro. Fê-lo uma menina de 19 anos, Maria Carmem Laoni. Numa paisagem de outono que apenas constitui o fundo, três figuras se destacam. Uma família em marcha. À frente, o pai, com não sei que expressão de tristeza e decisão. Um ar de quem deixa o pouco que possuía, para aventurar em terra nova. A criança, ao meio, está exata e natural. Flutua-lhe na fisionomia a dor longínqua de raça vencida. A mãe é a índia perfeita. Traços quadrados e um fatalismo forte de expressão. Não é um começo esse quadro. O primitivismo que impregna algumas de suas linhas desaparece diante do conjunto harmonioso e forte como uma pintura de mestre. Mas, além desses quadros havia tudo mais a citar. Os meninos do México podiam concorrer com os pintores modernos que vi na Europa. A parte infantil da obra modernista aparece aqui, apenas com mais frescura, mais espontaneidade, mais música.

Julian Morales, com 13 anos, apresenta um quadro que honra uma exposição. Há nele um pouco de impressionismo e muito de simplicidade, de imediato contato com a verdade artística. É uma rua de pequena cidade. Quase campo. Cabanas à frente da paisagem. Uma igreja. Dois pinheiros, altos, tristes e solitários. E um céu extraordinário: profundo, escampo, de um azul nítido e macio, onde duas ou três nuvens completam a expressão realmente notável.

E essa obra de arte saiu de mãos de 13 anos de idade.

Acompanhei com tanto interesse na Europa a expressão artística das crianças, daquelas crianças saturadas de civilização, com facilidades de museu e de cultura e não me recordo de um só quadro que me tivesse deixado a expressão profunda que me deixam os dessas crianças índias do México.

Essa arte americana, que revive depois de tão longo intervalo, está, felizmente, libertada de qualquer influência européia ou yankee. É modesta e humilde. Pinta cabanas. Prédios rústicos. Ruelas de vilarejos obscuros. Homens mexicanos e tristes. Dela, poderá realmente vir a arte regional, própria, característica, nossa, porque todos temos responsabilidades e consciência nacional na América, tanto ansiamos...

Maio, 9, 927

S.S. Pan America

Anísio Teixeira

OBS: O manuscrito deste diário de viagem (inédito) consta do arquivo Anísio Teixeira, na Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, sob o código ATpi 27.04.27 (filme 03).

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