TEIXEIRA, Anísio. Variações sobre o tema da liberdade humana. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.29, n.69, jan./mar. 1958. p.3-18.

VARIAÇÕES SÔBRE O TEMA DA LIBERDADE HUMANA *

Anísio Teixeira
Diretor do I.N.E.P.

Os jovens colegas que hoje se formam testemunharam o constrangimento com que recebi a honra, que tanto me sensibilizou, de ser eleito paraninfo nesta cerimônia. Nosso convívio havia sido curto. Era eu apenas um professor recém-chegado à Faculdade, a ela trazido por nímia bondade do meu eminente antecessor e mestre, professor Carneiro Leão e da colenda congregação. Um de vós se ergueu, então, para me dizer, à maneira de gentil provocação, que a escolha se fizera na esperança de ter eu, o professor, – e no tom ia a insinuação de idade – algo a dizer no momento em que um novo e jovem grupo de graduados se despede da Faculdade, para se dispersar pelo campo vasto e diverso da educação nacional. Cresceu por certo o constrangimento: como vos poderia eu faltar, sem faltar ao próprio compromisso de nossa profissão? A convocação para vos falar, hoje e aqui, se fêz, assim, um imperativo profissional.

E de que vos haveria de falar senão dos nossos tempos, dos nossos perturbados tempos, de que, por fôrça do nosso ministério, somos os intérpretes e de que ireis ser os intérpretes, como futuros jovens mestres de outros ainda mais jovens brasileiros? Seja lá o que fôr que ensinardes, estareis, na verdade, ensinando, mal ou bem, o que consideramos a nossa civilização. Mas, ai de nós, que nossa civilização se fêz, tão complexa, difícil, contraditória e vertiginosamente dinâmica, que compreendê-la e ensiná-la se vem constituindo tremenda tarefa. Há que buscar-lhe algo como a chave de sua interpretação.

E tal chave há de ser encontrada na ciência, causa e efeito máximos da aceleração do progresso humano, e, ao mesmo tempo, via única de explicação e interpretação dos inúmeros problemas surpreendentes que a própria ciência vem criando.

A princípio, foi irreprimível o otimismo provocado pela ciência, ou seja pelo descobrimento dêsse novo método de progresso humano. Tantos e tamanhos foram, contudo, os novos problemas criados pelo próprio progresso, que, hoje, nos vemos divididos, tomados uns ainda do mesmo otimismo e dominados outros por um senso de catástrofe, que raia pelo desespero.

É diante dessa casa dividida, em que hoje vivemos, que procurarei aqui formular algumas observações, que me parecem úteis em nossa busca de um mínimo de compreensão dêsses nossos tempos de confusão e promessa.

Digamos logo, entretanto, que não faltam os que julgam um tanto presunçoso estarmos sempre a caracterizar a nossa época como de crise e mudança, em relação a outros períodos da vida da espécie. Convencidos da imutabilidade da condição humana, alegam que o homem carrega consigo os elementos contraditórios de seu destino, que se repete nas servidões dos dramas individuais, cuja monotonia apenas quebramos pela nossa velha capacidade de idealizá-los. Nihil novi sub sole é a máxima de uma sabedoria milenar, muito mais corrente ainda do que se poderia supor.

A verdade, porém, é que o novo existe em tamanha extensão e intensidade, que a máxima poderia ser hoje transposta para outro extremo: Omnia novi sub sole.

Parece-me êste um dos fatos básicos a levar em conta, para uma segura interpretação do nosso tempo.

Tão lenta foi a evolução humana até os últimos seis mil anos, que a fórmula antiga tinha a sua razão de ser. Seria demais repetir que até 1400 de nossa era, o homem lutava, para sobreviver e para civilizar-se, com as mesmas dificuldades quase com que lutava quinhentos ou quatrocentos anos antes de Cristo? Nos últimos quinhentos e poucos anos é que se processou a chamada civilização moderna. E a industrialização é um movimento ainda em suas fases iniciais, se considerarmos todo o globo. O novo, em verdade, existe e o temos pela frente, cada vez mais novo ou, em verdade, novíssimo. A nossa época é, sem dúvida, uma das épocas de transformação, na vida da espécie.

Whitehead, em um dos seus livros, fixava as grandes mudanças, no mundo e no homem, até a nossa época, nos seguintes ciclos que, de certo modo, explicam porque agora os homens tanto se afligem com a modificação do estabelecido: mudança social fundada em alteração de condições básicas, meio milhão de anos; mudança devida a alterações de condições físicas menores, como as de clima, cinco mil anos; modificação tecnológica esporádica, quinhentos anos. E entre o ano 100 e 1400 não houve nenhuma grande modificação tecnológica. Até aí a estabilidade; a segura e tranqüila estabilidade. Mas, entre 1780 e 1830, com a introdução do vapor, já as mudanças ocorridas foram maiores do que em qualquer outro milênio anterior. E daí por diante, sobretudo a contar de 1890, as grandes modificações tecnológicas passaram a processar-se com celeridade que não deixa de ser para muitos particularmente incômoda.

Ainda a partir do século XVIII cada um de nós disporia de tôda a sua vida para se habituar a uma mudança social e tecnológica: uma transformação, cada sessenta ou setenta anos. Só depois de 1890, as mudanças passaram a processar-se ou a contar-se por décadas. E agora, nessa segunda metade do século XX, não sei se já não estaremos em ritmo de qüinqüênios...

É em virtude dessas transformações que muitos de nós se sentem como que perdidos... Com efeito, a que nos deveria ter obrigado tal ritmo de mudança?

A um tremendo esfôrço educacional, que habilitasse cada indivíduo a fazer êle próprio o que, em outras épocas, era conseguido por um ajustamento coletivo e em muito compulsório, resultante da própria homogeneidade social de algum modo operada na duração relativamente longa do processo de mudança.

Recordemos, ainda, que, considerada a estrutura social humana, nas suas diversas camadas, as transformações anteriores, na maior parte das vêzes, somente atuavam nas camadas mais altas, mantendo-se, nos estratos inferiores, base estática e sólida capaz de dar apoio à parte dinâmica e, às vêzes, até um certo lirismo à mudança social.

Só muito recentemente é que o impacto de pensamento humano, da obra deliberada do homem na transformação do seu habitat e dos seus meios de trabalho veio a universalizar-se e a tornar possível a mudança na vida de todos e de cada homem no planêta. Não é difícil imaginar, assim, a extensão com que se libertaram, em tôda a espécie, fôrças e esperanças e com que se reduziram inibições e resignações antes tão sólidas que pareceriam imutáveis. Ao tumulto material sucedeu então o tumulto social, em que nos achamos imersos e que suscita as vozes do desalento e desencanto tão características dos dias que correm.

Mas, repetimos, tomamos, em face da situação, as medidas necessárias para enfrentar o desafio do novo?

Duas atitudes poderia provocar a conjuntura. A primeira, visaria a criar ràpidamente novos condicionamentos sociais, substancialmente irracionais, capazes de ajustar o homem da mesma forma por que êle se ajustara antes às terríveis condições da opressão e pobreza antigas. A segunda visaria a tornar todos os homens e cada homem capazes de se conduzirem racionalmente, como se conseguira com alguns raros indivíduos, ainda no período que chamamos da remota antigüidade e que foi, afinal, apenas ontem.

Seria, sem dúvida, esta segunda atitude o reconhecimento de algo que se poderia conceber como uma nova etapa na evolução do homem, etapa que fôra vislumbrada pelos pensadores antigos, com a generalização do conhecimento humano e a aplicação do método científico a todos os setores da vida humana. Isto não se fêz, entretanto, ou melhor somente se fêz no campo do conhecimento físico do mundo, o que nos vem permitindo colhêr os resultados que vimos colhendo em sua transformação material. Recusamo-nos, entretanto, a reconhecer como suscetível de ser generalizada a mesma atitude científica ao comportamento quotidiano e normal dos homens, insistindo aí na primeira posição a de buscar de qualquer modo condicionar o homem à nova situação, mesmo com prejuízo de sua natureza e de seus valores.

* * *

As observações que desejaria fazer aqui convosco prendem-se a essas duas atitudes. Temos, em relação ao mundo físico, aplicado corajosamente o método científico. Mas em relação à conduta própria do homem, conservamos os velhos métodos pré-científicos de simples condicionamento mecânico e irracional.

Parece-me que as aludidas atitudes tiveram seu reflexo no pensamento geral da humanidade nos últimos cem anos. A primeira atitude gerou, além do desenvolvimento científico moderno, as grandes correntes de pensamento utópico em relação à organização social e econômica. A segunda atitude, supostamente realista, gerou os movimentos ideológicos, que sucederam ao pensarnento utópico e, a meu ver, o deformaram e o tornaram substancialmente violento e irracional. Devo esclarecer que não tomo os têrmos de utopia e ideologia no sentido preciso com que os emprega Mannheim, mas com a alteração sugerida por David Riesman, jovem pensador americano, cuja lucidez me impressiona tanto mais quanto lhe faltam as consagrações acadêmicas do grupo, de certo modo, tão pouco original dos pensadores sociais de nossa época. Riesman define utopia "como um conjunto de crenças racionais, de interesse no fim de contas da pessoa que as alimenta, numa realidade potencial embora não existente; tais crenças não devem violar nada que saibamos sôbre a natureza, inclusive a natureza humana, embora possam extrapolar a presente tecnologia e devam transcender a presente organização soicial". "Ideologia, ou o pensamento ideológico", define-o Riesman, "como um sistema irracional de crenças, alheias no fundo ao interesse da pessoa que as aceita, mas a que esta pessoa adere sob a influência de algum grupo, em virtude de suas próprias necessidades irracionais, inclusive o desejo de submeter-se ao poder do grupo doutrinador".

Tôda utopia pode ter germens de êrro, que a podem levar até à ideologia. E tôda ideologia tem germens de verdade, que lhe emprestam a aparente plausibilidade, indispensável à obra de sua doutrinação.

O pensamento utópico da humanidade corresponde, na verdade, à substituição da utopia supra-racional ou sobrenatural de outra vida, dominante em tôda a Idade Média e ainda hoje corrente – nos EE.UU. 95% das pessoas declararam crer na sobrevivência do homem após a morte – por uma utopia natural e racional, aqui e agora fundada nas virtualidades e potencialidades dos conhecimentos humanos existentes. Aldous Huxley acentua, em sua famosa caricatura do mundo de amanhã, que o perigo das utopias é que elas se tornaram realizáveis. Se a sua confiança no homem fôsse outra, deveria concluir que êste seria o seu valor, pois com a possibilidade da sua realização estaria aberto o caminho para as suas revisões e os seus progressos, no caso de resultados infelizes ou inesperados. No fundo, porém, Huxley no seu livro não estava tanto a desdobrar o plano de uma utopia quanto de uma ideologia, com o seu brutal e correlativo condicionamento mecânico do homem. O seu Brave New World é uma sátira aos movimentos ideológicos e não aos utópicos. Aliás o próprio Huxley dá-nos um exemplo de bom pensamento utópico no seu Science, Liberty and Peace.

Caracteriza, com efeito, o pensamento utópico uma confiança especial no homem e na razão, graças à qual não parece a tais pensadores tão intransponível, quanto hoje nos querem fazer crer os criadores de ideologias, a barreira dos mitos e das irracionalidades humanas. Jamais um pensador utópico idealizaria o Brave New World ou o 1984 de George Orwell. Tais caricaturas são caricaturas exatamente dos movimentos ideológicos, com os quais se busca condicionar mecânicamente o comportamento humano, com apoio na premissa de que êsse comportamento humano não é racional. (A premissa dos pensadores utópicos seria a de que tal comportamento é potencialmente racional.)

Na verdade, os estudos contemporâneos sôbre as culturas humanas vêm sublinhando, como não podiam deixar de sublinhar, o determinismo da evolucão social do homem e a incrível mistura de racional e irracional de que se tecem tôdas as diversíssimas culturas criadas pela espécie, na sua dispersão no tempo e no espaço, em nosso hoje pequenino planêta.

Tais "culturas" se modificavam por acidente, constituindo processos históricos complexos, em lenta e laboriosa evolução. A mudança intencional e sistemática não se podia registrar, pois o homem, mergulhado em sua cultura, inclusive sua língua, deixara de ser capaz de procedimento propriamente individual e se fizera um ser gregário, socialmente condicionado. Em essência, os estudos antropológicos consideraram a sociedade como formigueiros humanos, a serem estudados à luz de determinismos sociais, processados praticamente sem qualquer racionalidade objetiva e consciente, e destinados a produzir estados de adaptação passiva do indivíduo ao seu meio. Nem de outro modo podia ser. Pois o uso deliberado da inteligência, como processo modificador, não estava em tôdas as sociedades estudadas, quase tôdas de nível primitivo ou semiprimitivo, desenvolvido além de certas habilidades de manipulação da palavra e de manipulação das artes ainda empíricas.

Uma história natural do pensamento humano revelaria quanto o ato de pensar e sobretudo de pensar em larga escala é raro entre os homens e como a adaptação social humana se faz por ajustamentos rotineiros e tradicionais, insuscetíveis de modificação, salvo por acidente ou invenção esporádica.

O aparecimento do pensamento como algo de voluntário e deliberado, a invenção da arte de pensar, como atividade autônoma, o gôsto do problema pelo problema, a pesquisa e a ciência, a automotivação e o autocondicionamento nunca se fizeram atividades onímodas de nenhuma sociedade humana. Se a evolução histórica humana fôsse linear e contínua, sem regressões nem destruições, se as civilizações não tivessem tido os ciclos que as levaram da expansão à decadência, poderíamos bem imaginar onde estaríamos hoje com a continuação dos progressos chineses e greco-romanos!

Depois, entretanto, de todos aquêles desenvolvimentos nas artes da civilização e na arte da disciplinação do espírito humano, desenvolvimentos que nos deram os homens antigos, muitos dêles mais interessantes do que os de hoje, a realidade é que regredimos a um período de recomeços e desordens, que exigiu treze séculos para nos permitir retomar a marcha dos antigos. Retomamo-Ia, é certo, com ímpeto, e já no século XVII estávamos adiante do pensamento antigo. Mas, os ajustamentos entre o pensamento científico tão vigorosamente renascido e o pensamento usual ou tradicional continuaram fragmentários e imperfeitos e, sobretudo, fundados num conceito estático e mecanicista de "natureza" e num Providencialismo com que procuramos substituir a dualidade helênica de mundo precário e realidade ideal, absoluta.

Sòmente no século dezenove, com Darwin e no século XX, com Einstein, é que viemos a dar base relativista ao pensamento científico e adotar a sua conceituação contemporânea, segundo a qual vivemos em um mundo dinâmico, em perpétuo fluxo, de que nossos esquemas de pensamento são interpretações temporárias e relativas, válidas até o ponto em que nos permitam interferir, modificando-os, nos chamados processos da natureza, nela incluído o homem.

De certo modo, estamos hoje mais próximos de certas interpretações básicas dos gregos do que da ciência dos séculos dezessete e dezoito. O mundo perdeu a segurança e estabilidade do materialismo mecanicista dêsses séculos, a nossa ciência se fêz relativista e entramos a buscar novas realidades idealistas, para sôbre elas nos apoiarmos em nossa necessidade de certeza. As reviviscências religiosas são ilustrativas dêsse estado de espírito. As veleidades de voltar à Idade Média, outros exemplos.

A despeito de tôdas as incertezas, entretanto, o que de fato vem ocorrendo no mundo a partir da segunda metade do século XIX é a revelação tornada evidente para o povo, senão para os filósofos, de que o mundo pode ser organizado voluntária e deliberadamente, com o aproveitamento inteligente de sua evolução histórica, ou, mesmo, em oposição a essa evolução.

O Japão, a Rússia, de certo modo antes a Alemanha prussiana e, depois, a Alemanha nazista, sem falar nos estados semivoluntários criados pela revolução do século XVIII, não são mais estados estritamente históricos, isto é, frutos da evolução espontânea e acidental, mas produtos deliberados do pensamento humano, mais ou menos bem sucedidos, na parte intencional, embora ainda repletos de resultados não esperados.

As contradições dêsses Estados decorrem de terem sido mais produtos dos resultados da ciência do que do espírito científico. Quando, vinte e cinco anos atrás, Bertrand Russell escreveu os seus ensaios sôbre as sociedades artificialmente criadas, ensaios que deram lugar às sátiras e caricaturas de Aldous Huxley e de George Orwell e aos ensaios de Burnhams (Managerial Revolution) ou de Whyte (Organization Man), recordo-me da indignação de H.G. Wells, – tão admirável representante do pensamento utópico! – com as previsões apaixonadas e deformantes de B. Russell. É que o filósofo inglês não estava fazendo utopia, mas "realismo" e advertindo com a previsão do pior. Vêde bem que os líderes que imagina B. Russell para as suas fantasias científicas não são pessoas de formação científica, mas criaturas enérgicas e apaixonadas pelo poder, que reproduziam, com os novos meios científicos, os objetivos estreitos e egoístas de seus antecessores.

De qualquer modo, não creio que B. Russell pudesse imaginar Jefferson ou Owen criando o estado nazista ou o estado estalinista. E se lhe fôsse possível imaginar Marco Aurélio presidindo os Estados Unidos ou a Rússia, também não creio que a ciência mais poderosa dos nossos tempos fôsse transformar Marco Aurélio e fazê-lo desejar uma catástrofe final para decidir quem seria o dominador do mundo.

O pensamento utópico, desde que surgiu, com Platão, nunca imaginou que a utopia se realizasse assim que um Alexandre ou um Napoleão tivessem armas mais poderosas. O pensamento utópico sempre considerou essencial que Alexandre ou Napoleão pudessem ter as idéias de um Asoka ou de um Marco Aurélio.

Já são velhas as idéias de que o progresso do pensamento humano levaria, dado o novo poder de que disporiam os homens, a um govêrno não de cientistas, mas de filósofos, ou seja de cientistas do uso do saber humano e, talvez, a um só govêrno para o mundo ou, com certeza, a governos pequenos, sábios e harmonizados. Ora, nada disto se realizou. Muito pelo contrário, exacerbaram-se as concepções pré-científicas e os estados-tribo com os seus governantes-gangsters continuaram a passear através da história, até os dias de hoje.

Responsabilizar o progresso científico operado nos últimos tempos, entre os homens, por êsse resultado parece-me realmente inexplicável. Já o arco havia permitido impérios. O ferro, o mesmo. A artilharia armou Napoleão. Com as armas antigas, poderíamos ter impérios e opressões como os de Genghis Khan, e o melhoramento não viria de melhores armas, mas de melhores Khans. E que fizemos em tôda a história moderna para educar os governantes, ou sejam, os Khans? Depois de experimentarmos a hereditariedade, experimentamos a eleição. A eleição envolvia realmente um ato de fé no homem comum, mas, baseado em que tivesse êle, o homem comum, educação e conhecimento suficiente do homem a eleger. Seria uma solução para as pequenas comunidades rurais do século dezoito. Não conseguimos inventar até hoje nada de melhor, a despeito do eleitor já não mais conhecer o eleito e persistirmos em não levar em conta o poder de deformação da opinião, com a propaganda manipulada e servida em massa ao público.

O "realismo" de Russell tem o seu fundamento nesse fato assombroso: a contar do início de nossa era, prosseguimos no progresso científico, depois da parada de treze séculos, e desprezamos o progresso moral, na realidade, como teoria, pelo menos, muito mais avançado entre os antigos do que o progresso científico. Imaginemos, por absurdo, que tôda a Idade Média fôsse dominada pelo pensamento moral dos estóicos e que tivéssemos progredido na formação do homem a ponto de atingir até a classe dos governantes a cultura moral já existente entre os antigos. Qual seria então o mundo de hoje? Em vez disto, fizemos, em todo êsse período, da perfeição moral um problema de penitência e de alienação dêste mundo, deixando a sorte da humanidade entregue aos que tivessem estômago para o crime, a ausência de escrúpulos e o cinismo revoltante de um pseudo-realismo, que Maquiavel viria tão bem formular no primeiro tratado "realista" do crime como método supremo da Política. O Príncipe de Maquiavel é o retrato renascentista, o retrato glamoroso do "gangster" de hoje. O dualismo fundamental entre o homem do mundo e o homem de Deus continua através dos séculos até à nossa idade, reduzida a virtude a um investimento na cidade do céu. Tôda a ciência se fêz "materialista", com uma "natureza" casualmente determinada e indiferente e um "homem", dia a dia, mais hábil no domínio dessa natureza, mas também cada vez mais discípulo de sua ausência de propósito ou plano. A supressão das "causas finais" na "natureza", simples e justo expediente científico para melhor estudá-la objetivamente, levou o "homem" a se supor também sem fins ou com os fins que quisesse, originando-se daí o mundo sem arquiteto, sem propósito, sem plano, o mundo anárquico, cujo desenvolvimento hoje assistimos em nosso planêta, dividido entre dois "realismos", a lutar pela fôrça para o predomínio.

As repercussões dêsses "realismos" internacionais refletem-se no setor interno ou seja "nacional", criando os "realismos" de govêrno, os "realismos" de polícia, os "realismos" de juventude, tudo significando, verdadeiramente, processos moralmente cínicos e intelectualmente fragmentários para a conquista do poder, do dinheiro, dos prazeres ou das vantagens.

Triste, sem dúvida, o espetáculo, mas seria tolice culpar a ciência, ou o método científico, ou os resultados da ciência. O êrro tem a sua origem no dualismo entre homem e natureza, com o resultado, quase diria humorístico, de tornar o homo hominis lupus, isto é, capaz de esquecer a sua "natureza" e acompanhar a anarquia da "natureza", que à dêle entretanto se oporia. Se o homem estivesse integrado na natureza, seria tão científico perceber que a roseira não floresce por algum plano pré-estabelecido próprio de causas finais, como que no homem, ao contrário da "natureza", assim entendida como algo a êle estranho, o que vale é o plano pré-estabelecido. A natureza é uma série de processos com começos e terminações, sendo, do ponto de vista de sua "naturalidade", indiferentes os resultados ou fins dêsses processos. Tanto é natural que o resultado seja a morte como a vida. Para os seres vivos, porém, êsses fins contam e mais do que tudo para o homem, que os pode esperar, prever e planejar. Há plano, portanto, na natureza porque os sêres vivos e o homem são partes integrantes da natureza. Dentro da mesma natureza teríamos, pois, o mundo físico determinístico e sem plano próprio e o mundo vivo e humano igualmente determinístico, mas intencional, planejado. E do mesmo modo que o homem com a ciência aprenderia a mudar as rosas, a multiplicar as rosas, a evitar que as rosas não florescessem, assim lhe ensinaria a ciência a mudar os homens, a aperfeiçoá-los, a torná-los mais conscientes, mais inteligentes e melhores, perdido o receio de se fazer êle anticientífico por introduzir fins na natureza, pois êstes fins eram os fins humanos, também êles natureza, pois gerados nas cabeças humanas partes integrantes da natureza, e incorporados em suas "culturas", com os erros, as aproximações e as cegueiras dos seus imperfeitos conhecimentos.

Tais "culturas" humanas, por mais interessantes estèticamente que pudessem ser os resultados de sua formação cega e esporádica, seriam objetos de estudos, como quaisquer outros aspectos da natureza, para a sua alteração na medida em que se aperfeiçoassem os nossos conhecimentos. Assim como transformamos o mundo vegetal e o mundo animal, com a agricultura e a veterinária, assim como melhoramos no homem a alimentação e a saúde, assim lhe iríamos melhorar os demais aspectos de sua cultura, aceitando estudar os chamados valores, na mesma base em que estudamos as existências, umas e outros faces da mesma natureza física e humana. Para que estudamos as existências nos mundos mineral, vegetal e animal, senão para as transformarmos, à luz dos propósitos, dos planos, dos fins humanos? Do mesmo modo, estudaríamos o homem para ficarmos capazes de realizar ainda melhor os seus próprios fins. E tais fins serão ainda, por acaso, os fins do homem neandertal? Os fins do homo hominis lupus? Será, por acaso, o homem incapaz de achar os seus fins? Muito pelo contrário, essa foi a primeira ciência humana. O progresso moral e social antecipou o progresso propriamente intelectual e muito antes de um Aristóteles tivemos os grandes moralistas e legisladores. Hamurabi, Moysés, em períodos quase lendários, souberam criar a lei para a convivência humana. Mais próximo de nós, Jesus de Nazaré. E no Oriente, Confúcio e Buda traçaram, muito antes mesmo de Jesus, as grandes leis humanas.

Onde a razão de não ver nesses grandes formuladores dos valores humanos, os precursores de um pensamento científico tão legítimo quanto o dos que descobriram não ter a "natureza" outros fins senão os que os homens lhe emprestassem? Todo o fim intencional e consciente, neste mundo, teve a sua origem no homem e nas instituições por êle empiricamente criadas.

O estudo científico do homem não foi interrompido, diga-se logo, para evitar qualquer equívoco, mas, recusamo-nos a reconhecer que a ciência acaso obtida pudesse ir além de lhe melhorar a saúde, a dieta e a residência. Em tudo mais, a lei seria a do arbítrio e da anarquia. Seria livre o homem de fazer tudo que não interferisse com igual liberdade alheia: regrinha que estaria muito bem numa pequena sociedade rural, sem trabalho organizado e em que o ato de cada um fôsse do outro conhecido até as suas últimas conseqüências. Com a industrialização do trabalho humano, com o crescimento da organização, em virtude dos progressos da ciência física, êsse homem livre fêz-se capaz de causar, impunemente, os danos mais inenarráveis, e, como comenta B. Russell, não se sentir obrigado nem sequer à confissão perante o seu sacerdote, a que se deveria, entretanto, dirigir para ser absolvido no caso de qualquer trivial impropriedade sexual que viesse a praticar.

A religião, em todos os tempos expressão mais alta do contrôle do comportamento humano, fêz-se indiferente à organização econômica da sociedade e praticamente abençoou a lei da floresta, associando-se aos proventos da imensa iniquidade. Com os resultados da ciência, o novo selvagem, o selvagem individualista, adotando como lei o vale-tudo da luta pela vida, o "struggle for life", tomado emprestado à lei da vida subhumana, criou o mundo de miséria e riqueza, que explodiu nas duas grandes guerras mundiais.

Hoje, começa, em grande parte, a ser limitada essa "liberdade" individual. A lei da floresta conserva-se mais no campo internacional do que no nacional. No campo interno, entretanto, a despeito de certos progressos de socialização, o aumento do poder dos governos se vem fazendo tão imenso, com o crescimento de sua organização burocrática, que se tornaria indispensável a máxima competência por parte dos governantes, a fim de se evitar a injustiça ou a desordem. Ora, os governos continuam a ser ou governos militares revolucionários ou governos eleitos segundo as regras das democracias rurais do século dezoito. De modo que, em sua grande maioria, são governos altamente incompetentes. Por isto mesmo, a correção única de que dispomos para o estágio atual do govêrno humano, é a da difusão do poder. Precisamos difundi-lo ao máximo para que nenhuma concentração de poder se faça suficientemente grande para atrair os grandes famintos de sua fruição. Quando o poder é pequeno, precisamos, às vêzes, até de rogar as pessoas para aceitá-lo. As grandes fatias de poder é que geram as grandes tentações. Nos países civilizados e democráticos, êsses poderes perigosos só existem ainda no campo das atividades internacionais. Dentro das nações, já o poder se acha difundido no grau necessário para se fazer seguro e sem perigo. Os países, porém, ainda inorganizados estão sob constante ameaça, tanto interna quanto internacionalmente, de caírem sob as concentrações de poder, geradoras da opressão e da irresponsabilidade.

Parece que nos afastamos demais de nossa referência inicial à ideologia e utopia, mas, na realidade, não estamos assim tão longe. A democracia dos séculos XVIII e XIX constituía, em seu início, algo de essencialmente utópico. O socialismo anterior a Lenine era de natureza utópica. Já o marxismo-leninismo parece-me essencialmente ideológico. E o neo-capitalismo, uma réplica ideológica ao marxismo-leninismo. A essência do pensamento ideológico ou das ideologias é a sua natureza irracional, a ser inculcada por doutrinação e realizada pela fôrça. É a utilização dos resultados da ciência para a manipulação da opinião pública, segundo processos mais sutis mas essencialmente idênticos ao do passado pré-científico do homem, para a manutenção do statu-quo ou a realização de algum plano brutal de desenvolvimento inumano. O fascismo foi a sua primeira grande demonstração. Mas o comunismo, sempre que recusa crer na possibilidade do seu triunfo pacífico, pela persuasão e pela razão, e deposita sua fé nos meios de doutrinação e de fôrça, faz-se ideológico e não utópico, no sentido em que estamos procurando caracterizar êsses têrmos. O comunismo sòmente seria aceitável se aceitasse os métodos da razão e da persuasão socialista.

Vistas sob êsse ângulo, não parece difícil discriminar na cena contemporânea as correntes utópicas e as correntes ideológicas. O relativo descrédito da corrente utópica provém de uma certa desilusão moderna a respeito da razão. Desilusão fundada na divisão do mundo entre duas grandes fôrças ideológicas. Além dos colossos ideológicos, temos, porém, os países que são antes, socialistas do que comunistas ou capitalistas, os países nórdicos, a Índia e todos aquêles que estão a preferir a neutralidade, mesmo quando, como a Europa, não o podem declarar enfaticamente. São países divididos e ainda em luta entre as ideologias e a utopia, como gostaria de poder também classificar os países de nossa América do Sul.

A democracia facilitou o capitalismo, mas êste nunca foi de sua essência. As grandes e devastadoras críticas a essa fase econômica da humanidade foram feitas no século XIX e nos começos dêste século. A própria América do Norte, que, nesse período, era a terra edênica de todo o mundo, graças à fronteira de progresso que o regime ali abrira, sofreu de Veblen, como economista, e de Mark Twain, como satírico, as críticas mais implacáveis que poderia sofrer. Como êsse capitalismo não se havia ainda endurecido em ideologia, mas, era como uma utopia, com as amplitudes geográficas de sua conquista, amplitudes que redimiam as suas injustiças, nenhum McCarthy ali surgiu para abrir a inquisição de novo contra os Mark Twain ou os Veblen. A aceitação do capitalismo e de sua ética darwinista era algo de óbvio, enquanto as oportunidades fôssem tantas, que a incrível teoria da vida como uma corrida com prêmios para uns poucos pudesse parecer algo de sensato. Os que perdessem tinham outras corridas a correr. E quando não tivessem era que não era essa a vontade de Deus.

Com o fechamento da "fronteira" para as sempre renovadas corridas, o capitalismo perdeu todo sentido utópico e se cristalizou em uma ideologia a ser defendida pela propaganda e no fim de contas pela fôrça. A realidade é que o fim natural da democracia seria o socialismo. Os processos revolucionários e violentos de realizar o socialismo é que acabaram por galvanizar o capitalismo, justificando-lhe o uso da fôrça como recurso de sobrevivência. Se ambos tinham de ser regimes de fôrça, a diferença entre os dois deixaria de ser substancial. E o homem, esmagado entre êstes dois "realismos", perdeu a confiança no seu pensamento. Ou passou a ter mêdo de confiar na inteligência, pois já não era livre de usá-la vigorosa e audaciosamente.

Desapareceram os pensadores utópicos, isto é, os pensadores capazes de especular livremente sôbre as alternativas e possibilidades que os novos conhecimentos e as novas tecnologias abriam para a humanidade. Para essa especulação, fazia-se e faz-se indispensável o gôsto pelo pensamento largo e generoso, uma atitude de simpatia e confiança no progresso dos conhecimentos humanos, uma capacidade criadora em imaginar ou antever as novas perspectivas que poderiam abrir, conforme o uso que dêles se fizesse e, sobretudo, uma confiança no homem como ser capaz de escolhas inteligentes e de plasticidades insuspeitadas em seu desenvolvimento intelectual e em seu aperfeiçoamento afetivo e espiritual. Tôda essa forma de pensar se fêz perigosa. As ideologias, brutalmente fundadas no que é e no que existe, dividiram dramaticamente o mundo. Pensar-se no que devia ser passou a ser uma forma de ingenuidade, no melhor dos casos, ou de simples escapismo. A ciência física, audaciosamente renovadora, fazia do que é e do que existe uma simples referência para o que podia ser e, com o progresso tecnológico, criava devastadoramente o novo e o novíssimo, isto é, novas formas, novos corpos, novas realidades. Mas a ciência social, como Napoleão, só via e só acreditava no que existe, no que é. Qualquer saída daí, só se podia fazer violentamente. Ou o statu-quo, ou a revolução. E esta revolução não buscaria o que devia ser – de antemão condenado como impossível – mas o que podia ser, como na ciência física, esquecida de que o pode ser, no campo da física, é o deve ser de alguém que passou a ter o propósito daquilo realizar. O deve ser social era tanto urna escolha quanto o pode ser das tecnologias físicas. Estrangulado pelas ideologias, permiti que o repita, o pensamento humano científico e filosófico se fêz ou especializado, isto é, competente apenas em pequenos campos, ou "realista", isto é, defensor do statu-quo, do mal menor, ou pura e simplesmente escapista. Generosidade de pensar, entusiasmo imaginativo passaram a não parecer "bem". Quanto mais educada seja a pessoa, tanto mais elegante, tanto mais própria fica uma atitude de apatia, ou indiferença ou descrença. Pensar audaciosamente é, pelo menos, algo de leviano. Que sucedeu, então? Ficou com os tolos a elaboração dos planos largos e amplos a respeito do futuro. Daí os livros últimos sôbre tecnocracias, revoluções de gerentes, reinos de burocratas, etc., etc.

Não é para tais planos, grandes, "realistas" e maus, como os chama Riesman, que desejo conclamar a vossa atenção, mas, para a utopia da Cidade Humana. O período obscuro da luta ideológica vai, ao meu ver, desaparecer. Voltaremos à velha luta racional e utópica do século XIX. Voltaremos a crer na inteligência e voltaremos a crer no homem. Voltaremos a crer no sonho humano. Nada mais capaz de sonho do que a inteligência humana. Desde que ela se fêz articulada e científica, os seus sonhos entraram a se fazer realidade. A transformação do sonho humano no pesadelo dos dias de hoje é um episódio grotesco e passageiro, resultante do fato de haver a ciência marchado com tão inesperada rapidez que suas armas caíram em mãos ainda inexpertas para o seu uso. A exploração dos resultados da ciência ou o mêdo das suas conquistas são dois aspectos do mesmo fenômeno: a inadequação de nossas instituições econômicas e políticas para o uso da ciência já existente. A transformação dessas instituições não representa nenhum cataclisma. Foi ainda a ressurreição, em pleno século XX, da teoria maquiavélica da revolução social, que criou todo êsse mêdo de nosso tempo. Restauremos o pensamento utópico, livre e razoável, fundado no conhecimento e nas potencialidades analisadas dêsse conhecimento – não se confunda, com efeito, utopia com escapismo – a utopia é um plano científico de possibilidades reais – confiemos no homem e no poder de esclarecimento do saber de natureza científica, ampliemos a área dêsse saber ao campo da economia, da política e da moral, criemos os métodos próprios dêsse novo saber e marchemos para a frente, sem mêdo nem cegueira, guiados pelo sonho humano de uma vida cada vez mais ampla, mais rica e mais harmoniosa, até onde o pensamento nos puder levar, nas vastidões hoje antevistas dos astros e das estrêlas.

A grande regra de ouro – hoje abandonada – dessa atitude é a da independência do pensamento humano. Engajado, sim, mas engajado nessa independência ou seja na exclusiva dependência das regras dêsse próprio pensamento, livre como o ar. Não tenhamos mêdo de pensar, nem permitamos que alguém nos ameace contra êsse privilégio de pensar independente e livremente. Não receemos combater as ideologias, sempre que estas julgarei que podem ser impostas pela fôrça, ou pela chantagem de nos chamar de vendidos à ideologia adversária. O pensamento humano é demasiado sério para ser entregue à farsa dêsse conflito de interêsses. Discriminemos nesses interesses o que fôr legitimo, ou mostremos o equívoco em que se acham ao se julgarem ameaçados. Não vejo em que os verdadeiros planos de um futuro melhor possam prejudicar os legítimos interesses de qualquer ser humano. Nem tão difícil será definir os interesses legítimos. Os maiores exploradores do mundo, os mais truculentos gozadores de prazeres são afinal criaturas humanas, apenas inquietas e pouco lúcidas, sonhando, em seus raros momentos de paz, como qualquer vivente, com uma felicidade quieta e prazeres sabiamente dosados, em ritmos diversos e múltiplos. E as utopias e o pensamento utópico estariam profundamente interessados em dar-lhes oportunidade para isso realizarem. A promessa e as possibilidades do conhecimento humano abrem, com efeito, tôda sorte de alternativas. Apostemos em descobrir as melhores, as mais harmoniosas, as mais felizes. . .

Palavras como estas foram um sem número de vêzes ditas nos tempos que antecederam o pesadelo das últimas transformações sociais do mundo. Cumpre-nos voltar a pronunciá-las e ouvir-lhes o apêlo. O mêdo é uma paixão contagiante. Só começa a desaparecer, quando alguém se ergue para dizer que não o tem. O mêdo do nosso tempo provém da teoria da mudança social pela fôrça. Se passarmos a pensar em realizá-la pela inteligência, se perdermos a idéia sinistra de que o homem é um ser condicionado, a ser manipulado por "slogans" mais ou menos irracionais, sem capacidade de resistência nem de razão e mantido em ordem pela conformidade mental e adaptação mecânica; se robustecermos a confiança na inteligência e no indivíduo, se o estimularmos a pensar e refletir e não a se conformar, se lhe dissermos que a organização é inevitável, mas sua resistência à organização é imprescindível e que sua vida há de ser sempre não a aquiescência mas a luta entre o sonho racional (ou seja a utopia) e a realidade, aquêle sempre mais e mais próximo, mas nunca atingido, então, sim, teremos restaurado as condições para progredir sem complacência, sonhar com eficácia e esperar com lucidez...

Se êste puder ser o sentido da caminhada humana, êle se terá, primeiro, de formar na mente e na imaginação dos mestres e dos educadores. Não será espontâneamente que haveremos de sair da estrada do mêdo e da catástrofe para a da segurança e do razoável. Os professôres e a escola – cada vez mais importantes na civilização voluntária e inteligente que estamos criando – hão de ser os pioneiros nessa fronteira de progresso moral, que se terá de abrir de agora por diante, na conquista do verdadeiro poder não só material mas humano sôbre a vida neste planêta.

Professôres de civilização, temos todos de reaprender o sentido dêsse têrmo, e nos fazermos mestres de urbanidade, de candura, e de independência, de tolerância e de saber em um mundo cada vez mais sob o domínio do homem e cada vez mais digno dêste mesmo homem. São êstes os votos do vosso paraninfo, neste findar de ano, em que se descerram as portas do grande ministério a que jurastes servir!

*Oração de paraninfo pronunciada na Faculdade Nacional de Filosofia em 1957.

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