TEIXEIRA, Anísio. A universidade e a liberdade humana. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.20, n.51, jul./set. 1953. p.3-22.

A UNIVERSIDADE E A LIBERDADE HUMANA

Anísio Teixeira
Do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

Muito da ansiedade e sentimento de perigo de nossa época decorre de não querermos ver os problemas e crises do presente dentro da perspectiva histórica, como etapas de um desenvolvimento contínuo da espécie, na sua lenta adaptação ao novo tipo de tradição, que a formulação racional do pensamento vem, há 2400 anos, procurando implantar, o que, a despeito dos rápidos períodos de afirmação, está longe ainda de ser a generalizada e universal tradição da humanidade. Esta tradição é a tradição da liberdade e da razão, de que a Grécia se fêz, por um extraordinário concêrto de circunstâncias, um paradigma legendário. Tão legendário que Whitehead sugere, caso a nossa civilização devesse ter o seu livro sagrado, que aos três primeiros evangelhos cristãos se acrescentasse a oração fúnebre de Péricles, como o quarto evangelho, em substituição ao apocalíptico S. João.

Com efeito, se de muito parece estar encerrada a evolução biológica do homem a sua evolução como animal racional está apenas iniciada. Cento e vinte gerações nos distanciam das primeiras civilizações históricas, pouco mais de noventa do século de Péricles e apenas doze nos separam, melhor diria, nos unem a Descartes. A tradição intelectual, que os gregos tão exemplarmente iniciaram, é portanto, uma tradição nova, cujas vicissitudes, nos últimos vinte e quatro céculos, são as vicissitudes da idade histórica, a culminarem em nosso tempo tão aparentemente tumultuoso, mas, na realidade tão esplêndidamente promissor.

Se recuarmos, com efeito, aos últimos 3.000 anos, isto é, há 120 gerações passadas, encontraremos o homem ainda imerso em sua fase de integração instintiva, conformado a uma rotina milenar, susceptível de progressos acidentais, decorrentes de lampejos passageiros de inteligência espontânea ou de rigores rnomentâneos de organização pela fôrça. Sòmente por volta de 500 a 400 anos antes da era cristã é que duas tentativas intelectuais marcam o aparecimento da possibilidade racional de organização da vida humana – a de Confucius, na China, e a de Péricles, na Grécia. São dois momentos, entretanto, já de tamanha altura, representando, por certo, o desabrochar um tanto súbito de flor que séculos de germinação silenciosa e invisível vinham preparando, que, se a humanidade fôsse algo de uniforme e homogêneo, a civilização, como a compreendemos, hoje, teria ganho, desde então, a aceleração a que sòmente nos últimos três séculos estamos assistindo.

Mas, o novo progresso, de que tanto a experiência de Confucius quanto a de Péricles nos dão testemunho, a adaptação do homem à razão, não era um progresso biológico da espécie, e sim um progresso a ser aprendido pelo indivíduo, um a um, e que só lentamente poderia ser traduzido em novas instituições, susceptíveis de concretizá-lo em uma organização social.

Na realidade, êste progresso decorria do aparecimento de uma nova arte, da grande arte descoberta, para a tradição ocidental, pelos gregos, a arte de pensar, de reformular os objetivos humanos, de criticar-lhes as premissas, de especular sôbre os pressupostos em que estas se apoiavam e de deduzir as conclusões, arte que se destinava a criar um novo homem e a fazer das civilizações não o resultado do jôgo mais ou menos cego de acidentes históricos, mas a conseqüência do exercício lúcido dos seus recursos mentais, na melhor utilização dos recursos naturais.

O problema da liberdade humana, isto é, do livre desenvolvimento do homem só então se ergue ante a sua consciência. Até aí, a vida humana participava do mesmo determinismo obscuro da vida dos animais, na realidade da de um primata mais desenvolvido, que se havia acrescentado de instrumentos e de linguagem, em sua luta com o ambiente e com a complexidade de sua própria vida mental.

Na Suméria, no Egito, na Babilônia, ou mais para o Oriente, o homem não sabia se era livre ou tiranizado, aceitando a "organização" imposta à vida, do mesmo modo que aceitava o sol ou a lua. A sua vida mental, ainda instintiva, era parte dêsse conjunto de cousas que lhe moldava a existência e a fazia transcorrer entre satisfações, temores e sofrimentos. Podia essa vida mental, por intermédio de mitos e rituais, aplacar-lhe os mêdos primordiais, mas faltava-lhe todo e qualquer caráter especulativo – não lhe permitindo indagações, nem sugerindo alternativas.

Se quisermos ir mais longe, poderemos dizer que tôda a herança do Oriente, inclusive, de certo modo, até a de Confucius e a de Buda e a dos Hebreus, nunca passou da fase explanatória e não indagadora, buscando antes explicar porque a vida era assim, do que abrir-lhe uma perspectiva nova.

O próprio Jesus – a não ser pela frase, talvez apenas ,circunstancial – "Dai a Cezar o que é de Cezar e a Deus, o que é de Deus" – não chegou a aflorar o problema da liberdade humana, no aspecto em que aqui o examinamos. E a sua doutrina do reino do céu fêz de tôda a imensa experiência cristã uma experiência de evasão dêste mundo; por conseguinte, de aceitação de suas condições, como se apresentassem.

Naquela frase, entretanto, lançou as bases de uma dualidade de fôrças de organização, Deus e Cezar, em que se pode lobrigar um princípio de liberdade, implícito na limitação inevitável do poder de Cezar.

Com os gregos e a sua descoberta da especulação intelectual é que viemos, porém, a abrir reais alternativas para a organização da vida do homem, e, por conseguinte, a suscitar a possibilidade de sua liberdade e o problema de efetivá-la. Descobrindo a razão e formulando o conhecimento racional, os gregos criaram uma nova fonte de direção para o comportamento humano, independente, de certo modo, do determinismo dos costumes e dos hábitos e das condições imediatamente naturais, por isto que tôdas essas limitações passaram a sofrer a análise da mente humana e a serem traduzidas em idéias e modos deliberados de conduta e ação.

O homem, com efeito, até então, sujeito ao império inelutável do que os próprios gregos designaram de "Destino", concepção a que já antes chegara o gênio helênico, ultrapassando a dos Deuses, pois o Destino até a êstes governava, o homem, em face da descoberta do racional, via-se em condições de dar um novo nível à sua adaptação à vida e de estabelecer a "liberdade", que seria o direito de não sofrer outra submissão senão a submissão à "verdade", buscada à luz da razão. Nascera, na vida humana, uma nova fôrça de organização, independente da fôrça bruta, independente da tradição estabelecida, e são as vicissitudes dessa nova fôrça e de sua luta para fundar um regime de liberdade humana que vão constituir a história da espécie nestes últimos vinte e quatro Séculos.

Nem a experiência do oriente, nem a dos egípcios, nem a dos hebreus – a despeito de todo o saber empírico, mágico e religioso que vieram a possuir – chegou jamais a questionar-se a si mesma e a tentar analisar a própria validez e a das suas conclusões intelectuais. O pensamento humano até então foi sempre um simples e direto resultado das práticas existentes com acidentais lampejos intuitivos e iluminantes sôbre a natureza humana. A sua função era explanatória e não indagadora.

Sòmente com os gregos, repetimos, é que o próprio pensamento passa a ser objeto de análise e se procura descobrir-lhe o método e discutir-lhe a validez. Voltado sôbre si mesmo, o homem especula sôbre a sua própria natureza, sôbre a vida, social, sôbre o mundo, sôbre os seus hábitos de pensar, de sentir e de agir e se arma de um poder novo: o de rever e reconstruir êsse e pensar, êsse sentir e êsse agir.

Nascera, na realidade, a tecnologia das tecnologias, a arte de pensar voluntária e deliberadamente e de descobrir, assim, novos conceitos, novas idéias, novos modos de ver e de fazer, que transformariam o acidente da civilização no processo contínuo de civilização que daí, então, se haveria de tornar possível.

A capacidade intelectual do homem passou a se exercer de modo diferente. Houve como uma sutil inversão na ordem mesma do pensamento, inversão que – tão fecunda na cerebração de um Platão – veio depois, muitas vêzes, a ser, pelo uso inadequado, um dos obstáculos ao progresso humano, retardando o aparecimento do pensamento experimental ou pròpriamente científico do mundo moderno.

A inversão consistiu em especular primeiro e depois aplicar as hipóteses especulativas à interpretação dos fatos. Até então, todo conhecimento humano era empírico, prático, artístico, ampliado, quando muito, nas explanações míticas, mágicas e ritualísticas. Com os gregos, o próprio pensar se faz fonte de conhecimentos, de teorias, que iriam atuar na prática. Antes, as teorias, se teorias se podiam chamar, sucediam e explicavam a prática; agora a teoria antecedia e determinava, criava a prática.

Se essa foi a grande invenção grega, obtida graças à sua análise do pensamento, pela qual tomou o pulso e deu direção a êste mesmo pensamento, mostrando que podia êle iniciar e determinar a ação, e não apenas se seguir à ação, – daí o lhe reconhecermos a função sem par de agente supremo da liberdade humana, – também aí é que se encontra a fonte de todos os desvios paralisantes sofridos pela humana capacidade de pensar, no seguinte curso da história.

O entusiasmo da descoberta levou o homem à efervescência intelectual tão fecunda da época. Jamais a fase especulativa do pensamento pôde atingir tamanho esplendor e, ao mesmo tempo, impregnar-se de tão alto sentido de tolerância. A própria novidade do pensamento especulativo, o seu caráter de consciente perplexidade explicam a serena e completa harmonia de um Sócrates e de um Platão.

Mas, se o pensamento especulativo e matemático, considerado, pela primeira vez, como objeto, êle próprio, de estudo e de investigação, pôde deslumbrar os helenos a ponto de lhes inspirar uma filosofia de felicidade fundada na contemplação do próprio pensamento, não quer isso dizer que não soubessem, os inovadores que o pensamento se origina da experiência e se destina, em última análise, à ação. Ainda no período helênico, Aristóteles pôde inclinar o pêndulo para o outro extremo e dar início à obra de observação e minúcia que se deve seguir à fase especulativa do pensamento.

A experiência grega completa, assim, pelo menos em germe, a nova grande arte de pensar e traça-lhe o ritmo criador: observação, especulação, experimentação. Pensar deliberada e especulativamente passara a ser um dos ofícios humanos. Surgira um novo tipo de homem, o intelectual, o analista, o criador de pensamento e de saber, como algo distinto do estudioso do saber já feito.

Não se pode negar, com efeito, a existência do saber antes da idade de ouro helênica e de estudiosos e cultores do saber. Todos, porém, eram de uma espécie muito mais velha e que se havia de revelar bem mais forte e resistente, do que o novo tipo surgido com a "mutação" intelectual ocorrida na Grécia. Eram e foram depois os "eruditos", isto é, homens que sabem o que já soube e ignoram ou esqueceram o modo pelo qual o saber veio a ser adquirido. São guardiães úteis e fiéis, sem dúvida, do saber e até seus adoradores, mas não chegam a ser seus criadores. Por êles, o saber passa a ser um fim em si mesmo, ou se transforma em algo que se acumula inùtilmente ou apenas para os deleites da extática contemplação. São êles que sucedem aos bravos e assistemáticos pensadores gregos e daí não havermos podido continuar a grande experiência e têrmos mergulhado no período chamado helenístico, em que ao vigor helênico se substitui um culto e uma influência sem a fôrça do gênio criador original.

A escola de Alexandria, contudo, cumpre a missão de guardar o novo saber e formar a sua tradição. Os seus eruditos colecionam ainda e apenas o saber, mas agora o saber herdado já é um novo saber.

Sob a influência helenística, com os Romanos, se elaboram a moral estóica, os rudimentos de ciência latina, certas técnicas de construção civil, o direito romano, a interpretação paulina do cristianismo e, com Santo Agostinho, renasce a flama criadora nas suas especulações platônicas sôbre a "doutrina da Graça". Mas, perdera-se o tom do pensamento grego, a sua independência e a sua tolerância aquela extraordinaria tolerância grega que fêz com que Platão dissesse, no Timeus:

"Se, portanto, Sócrates, nos deparamos em muitos pontos incapazes de dissertar sôbre a origem dos Deuses e do universo, de modo completamente consistente e exato, não vos deveis surpreender. Pelo contrário, devemos ficar contentes de apresentar uma descrição não menos provável do que a de outros; devemos lembrar que eu que falo e vós que me ouvis não somos senão homens e devemos nos satisfazer em nada mais pedir que uma história provável". *

Nos períodos de academicismo, a verdade perde êsse caráter e passa a ser algo que se sustenta com dogmatismo e até com violência.

Mais de dois milênios hão de transcorrer, com efeito, até que pudéssemos assistir, no século dezessete, o início de um novo período, que lembra o poder criador helênico. O Renascimento ainda não fôra êsse período. O Renascimento é apenas o reencontro com o pensamento helênico e dêste o eco. Já não é mera reprodução acadêmica, mais ainda é imitação de limitado alcance. A nova fase criadora vem, depois, com os pensadores dos séculos dezessete e dezoito e a fundacão definitiva da ciência, como a concebemos hoje. Como na Grécia, temos então uma intensa e fecunda fase especulativa, seguida de uma fase experimental, inédita, cujos frutos ainda estão a cair, cada vez mais abundantes e sazonados. A fugaz adolescência grega vem a atingir a maioridade, afinal, nessa fase, de onde se vem encaminhando, não sem tropeços, mas deliberadamente, para a maturidade já anunciada, embora não de todo presente.

O fator intelectual introduzido pelos gregos, na vida humana, constitui já agora a reconhecida condição para o seu progresso e a sua liberdade. O rígido determinismo dos costumes e da tradição, presos a inelutáveis condições econômicas, iria, não se desfazer, mas ganhar plasticidade e flexibilidade em face do solvente intelectual da grande descoberta helênica.

A experiência intelectual grega, com efeito, a despeito da formulação magistral de Platão e Aristóteles, a princípio como que se esconde, refugiando-se na escola de Alexandria, e deixando de exercer a influência efetiva e maciça que se poderia dela esperar. A realidade é que o homem só gradualmente poderia evoluir do seu estágio de integração instintiva para o novo estágio de pensamento racional e de integração bem mais difícil, em virtude dos conflitos criados entre o instinto e a razão. A organização monolítica do hábito e da fôrça continua, assim a dominar e, salvo a obra de govêrno e de direito que o poder romano produz, só vimos a reencontrar algo de novo, já do meio para o fim da idade média, com a instituição de organizações sociais independentes do poder dominante e destinadas a normalizar e, pelas normas, controlar as relações humanas, à margem do exclusivismo dos poderes senhoriais pròpriamente políticos, fôssem profanos ou divinos.

A transposição para o campo das instituições sociais das consequências do pensamento racional e deliberado, que virá realmente a constituir a integração da sociedade em sua nova fase de liberdade, parece ter logrado início nessa fase da idade média.

A circunstância da idéia, da análise racional vir, assim, atuar no contexto da ação e criar novos modos de comportamento e de solução dos problemas humanos, revela os dois aspectos fundamentais da liberdade: o da espontâneidade e tolerância do próprio pensamento, isto é, a liberdade da especulação intelectual, e o da incorporação da idéia ao costume e à ação, mediante instituições sociais que promovem, sob nova forma e nova eficácia, os objetivos humanos. A primeira liberdade, embora suprema, é uma preliminar da segunda, a concretização da idéia nos costumes e instituições sociais, mas, como uns e outros são sempre susceptíveis de decadência, a primeira liberdade continua a ser necessária e suprema para a constante revisão e reconstrução dos próprios costumes e instituições sociais.

A história da liberdade humana está sempre a oscilar entre êsses dois polos, já exagerando os aspectos puramente individuais da liberdade, já insistindo na reforma social que, por vêzes, se opera com a supressão da liberdade individual. A conciliação parece estar na elucidação dos objetivos de cada um dos apontados aspectos da liberdade e dos modos efetivos dêles se realizarem.

É indispensável a liberdade de pensar, não como simples diversão ou deleite individual, mas como condição para a organização do pensamento teórico e especulativo, destinado a exercer sempre sôbre o próprio contexto da vida social, isto é, as suas instituições, costumes e modos de comportamento, o influxo, a inspiração e o estímulo para a sua revisão e reconstrução, quando se fizerem impedientes ou restritivas da vida mais abundante e mais ampla. E é indispensável a liberdade de organização, isto é, a de poderem os homens organizar seus objetivos de vida de forma autônoma e pluralista, em diversas áreas de ação, baseados no enriquecimento progressivo de sua inteligência, suas idéias e seu saber, fora da área de compulsão necessàriamente restrita do Estado, sujeitos tão sòmente ao império da persuasão e da razão, que o novo conhecimento veio criar.

É a marcha dêsses dois aspectos da liberdade que vamos procurar acompanhar em nossos comentários.

Com efeito, talvez seja lícito reconhecer no período de crescimento institucional que marcou a idade média, como na obra jurídica anterior dos romanos, já o resultado da nova atitude intelectual assumida pelo homem, em face da descoberta de sua arte de pensar deliberada a refletidamente. Começaram as novas idéias a se traduzirem em costumes e instituições, determinando novas formas de ação coletiva, independente da ação todo poderosa e exclusiva dos governos. A experiência da idade media é significativa, porque rompe com a exclusividade e supremacia do poder do Estado e cria a oportunidade de pluralismo, nas fôrças de govêrno e coordenação da vida humana.

A idade média se caracteriza pelo feudalismo, pelas corporações, pelas universidades e pela Igreja, isto é, um extraordinário contexto de instituições independentes e variadas, a dar-nos a primeira civilização institucional da história. Cada uma dessas instituições era uma forma nova de organização das "liberdades" humanas. Certos conjuntos de interêsses ou de objetivos logravam "reconhecimento" e obtinham, em face dêsse reconhecimento, a "liberdade" de se auto-organizarem. A Igreja, como se constituíra antes, nem sempre é considerada como uma das "corporações", mas, na realidade, nada mais é do que a maior de tôdas elas, fornecendo o primeiro exemplo da pluralidade de fôrças organizadoras, a que a idade média iria dar origem.

Não será que chegamos, afinal, ao gôzo das consequências do aparecimento do "pensamento racional", que não se limita a explicar e justificar o existente, mas a criar o novo e a introduzir novas fôrças no jôgo dos elementos organizadores da existência humana?

Pouco importa que não houvesse formulação explícita das intenções de incorporar idéias em instituições, mas, a evolução era a do homem e da vida modificados pelo fermento intelectual da experiência racional. A multiplicação e "independência" de fôrças de organização, que caracterizaram a idade média, com a igreja, o poder feudal e as corporações, começaram a dar ao homem a intuição de que a vida não era a simples submissão a instintos, costumes e hábitos, mas a consequência das instituições existentes e criadas pelo próprio homem.

O renascimento, o humanismo e a reforma iniciaram, por isto mesmo, logo depois, um período de intensa e consciente revisão, em que o indivíduo ligado e religado na rêde de instituições que lhe organizavam a vida e que se haviam tornado decadentes, na época medieval, se sente não libertado mas tolhido e empreende as suas jornadas libertárias, que culminam com a revolução inglêsa, a americana e a francesa, tôdas baseadas em certo absolutismo individualista, que, entretanto, corrigiria o seu inevitável anarquismo por meio do hábil recurso criado pela descoberta rousseauniana da idéia de "contrato social". O individualismo da época é, sob certo aspecto, um retrocesso, pois, permite a volta ao poder absorvente dos governos. Mas, temos, daí por diante, o homem cada vez mais consciente nos seus esforços deliberados de organização social, chegando, mais tarde, a querer reduzir a atos de vontade a própria criação do Estado. A revolução americana, por exemplo, é afirmação eloquente dessa nova fôrça das idéias sôbre a tradição, os hábitos e os costumes, plasmando uma nação e logo um estado, por ato expresso de um conjunto de vontades individuais.

Da destruição, contudo, de tôdas aquelas corporações medievais, que de "libertadores" já se haviam tornado coatoras, a que se atirou o homem moderno, para, sôbre elas, erguer o indivíduo racional, puro e sem pêias, embriagado com a sua consciência de razão e de liberdade, salvou-se uma corporação: a universidade, talvez por ter tido evolução, afinal, inversa das demais corporações.

A corporação era, como sugerimos, uma "liberdade" organizada. Na sociedade de artesãos e mercadores, que veio a configurar, por último, a idade média, as unidades corporativas eram o comércio e os ofícios (indústria), que se baseavam nas atividades e artes empíricas e tradicionais da espécie. O conhecimento artesanal não era "racional" ou "científico", mas de tirocínio, e se transmitia pelo aprendizado direto. E as atividades comerciais nem disto precisavam.

A universidade, entretanto, era a corporação das artes liberais, isto é, das artes baseadas no conhecimento racional, conscientemente elaborado. Esta corporação é a que retraduzia, em linguagem medieval, a escola de Atenas e de Alexandria, e retomava a tradição do "saber racional", e o reinstalava nas condições de independência que o regime da idade média acabou por permitir e mesmo consagrar.

A sobrevivência dessa corporação, a despeito do individualismo revolucionário do Século XVIII, é muito significativa para o destino, no mundo moderno, daquele aspecto da liberdade, já antes sublinhado, isto é, o da "institucionalização" da liberdade, transformada, assim, em um modo de ação. Com efeito, a conservação da Universidade de certo modo como corporação e a institucionalização das grandes profissões em outras tantas organizações gremiais, independentes e autônomas, e, ao lado, o movimento unionista ou sindicalista dos operários que sucederam aos artesãos, é que asseguram a liberdade no estado moderno, superado que foi o romantismo da liberdade puramente individual, que não existe nas condições em que a idealizou o século dezoito, mas, sim, na liberdade de organização antevista pela idade média e restabelecida pelo nosso regime moderno, embora em moldes diversos e bem mais amplos.

A condição essencial para a liberdade no estado moderno está, com efeito, acima de tudo, na independência das instituições que guardam, aplicam e promovem o saber humano, isto é, as profissões chamadas liberais e a universidade, em face do Estado, ao qual cabe velar por elas, mas jamais interferir em sua área de ação ou na consciência profissional dos seus agentes.

Formulado, com efeito, o pensamento racional e estabelecidas as bases para a descoberta e revisão constante do saber, o homem livre passou a ser o que realmente não se submete senão ao comando dêste saber que opera pela persuasão e o convencimento, e ao do Estado, que detém o poder de compulsão, mas sòmente no limite em que êste se subordina ao próprio saber e concretiza, pela lei, expressão do consenso coletivo, aquela experiência mais geral da espécie, que não se identifica pròpriamente com qualquer dos campos especializados do saber ou com as profissões de base científica. O saber organizado constitui, verdadeiramente, a nova fonte do poder humano, dirigindo a ação e a conduta do homem, por intermédio das instituições sociais de sua criação. Pelo saber, pela ciência, obtém o homem poder para a consecução dos seus objetivos vitais e o põe em operação por meio das instituições sociais, cujo progresso promove por meio dêsse mesmo saber, autônomamente organizado e em condições de independência suficiente para se elaborar e renovar constantemente.

Nenhum estado moderno deixa de ter consciência dessa condição para a liberdade, mas nem sempre se formula explìcitamente tal condição, nem se define o critério pelo qual se devam delimitar as duas áreas de govêrno, – a do saber, como tal, com a sua fôrça própria, operando por esclarecimento e persuasão, e a da lei como norma coercitiva, imposta pela experiência geral da comunidade. A liberdade é a vida organizada legalmente, mas é, sobretudo, a limitação do âmbito da lei àquilo que representa o mínimo de condições para que ela, a liberdade, se exerça do seu modo supremo, isto é, pela fôrça persuasiva do conhecimento elaborado pelos grupos de homens competentes, a quem sejam confiadas a sua guarda e o seu progresso. Tôdas as vêzes que a lei se exceder e buscar se exercer em terreno ou área que seja de atribuição precípua do conhecimento ou saber, organizados, terá infringido as condições atuais, não só ideológicas, como realistas, da liberdade. Sòmente quando as instituições do saber estão com a sua independência salvaguardada e a livre circulação dêsse saber assegura a conduta deliberada e refletida dos homens e a crítica e revisão constante de suas leis e instituições, é que teremos um regime de liberdade, como o concebeu a inteligência humana naquele minuto de esplendor em que teve, na Grécia, a revelação do seu poder não só de contemplar o mundo, mas de transformá-lo, pela fôrça criadora do conhecimento e consequente invenção de instituições e instrumentos que, realmente, o concretizem e apliquem.

As considerações até aqui feitas visam, mais do que tudo, sublinhar a emancipação humana da completa submissão aos instintos, costumes e tradições, pelo poder de organização obtido pela inteligência cultivada, e acentuar o caráter dinâmico adquirido pela civilização, desde que passou a ser o resultado do progresso do pensamento racional e científico.

O "conhecimento racional", cujos métodos se esboçaram há mais de dois mil anos e que, após a renascença, logrou o florescimento que todos conhecemos, quando deixou de ser objeto da adoração extática dos homens para se constituir no que realmente era, isto é, um método de indagação e de descoberta, já produziu, sob os nossos olhos, os melhores frutos. Sob o seu último impulso, provocado pelos grandes pensadores do século dezessete e dezoito, desenvolveram-se a revolução industrial, a política e a tecnológica, as quais, nos últimos cento e cinquenta anos, transformaram a face material e social da vida humana. Com o progresso material vimos "organizando" a liberdade do homem no sentido de, dia a dia, tornar mais praticáveis as suas aspirações.

O ritmo da evolução é sempre o da renovação institucional à luz das novas idéias que se vão, assim, incorporando à vida, o do crescimento e envelhecimento dessas instituições, que de renovadas se fazem decadentes e coatoras, e a seguinte renovação ou readaptação para a melhor concretização das aspirações humanas. Nesse processo, a garantia da constante renovação está na independência do pensamento e do saber humanos, também, êles, hoje, institucionalizados, pois, não se pensa mais apenas com a cabeça, mas, com todo um imenso aparelhamento – meios de comunicação físicos e mentais, escrita, preservação de documentos, diversos modos de literatura, pensamento crítico, pensamento sistemático, pensamento construtivo, história, línguas, simbolismo matemático e instrumentos e inventos técnicos de tôda ordem.

Assim, a manutenção do poder criador do espírito humano, em face da plasticidade crescente das cousas e dos homens, cada vez mais evoluídos no seu equipamento mental exige que as instituições do saber e as corporações dos profissionais, que aplicam e respondem por êsse saber na sociedade, gozem de condições de independência as mais altas, pois nelas é que se inspira tôda a marcha dinâmica e progressiva da vida humana. Nessa nova forma de vida em transformação contínua, a direção boa ou má é e será, mais do que nunca determinada pelo conhecimento e pelo saber, que tem, em si mesmo, fôrça de govêrno e de contrôle, que êsse mesmo saber atue sôbre o Estado, que é o detentor do poder coator legal, e sôbre tôdas as demais instituições, e subordine Estado e instituições ao seu poder persuasivo? – Êste o problema do nosso tempo.

Poderemos não saber como resolvê-lo completamente, mas podemos encaminhar-nos para a sua solução, erguendo a universidade à sua posição de matriz da sociedade contemporânea. A universidade, como guardiã, transmissora e promotora do saber e da experiência, as igrejas e as profissões, como corpos autônomos de aplicação do saber, as uniões ou sindicatos, como sistemas de defesa de interêsses legítimos do trabalho, e o govêrno, como fôrça vigilante, para que todo o mecanismo institucional funcione, sob a égide da lei, em cuja elaboração se deve levar em conta ser vedado ao estado e seu govêrno interferir no campo já conquistado do saber e da consciência profissional, tal será o regime livre e progressivo, que devemos buscar, para a implantação gradual e cada vez mais ampla da razão na vida humana.

Dissemos, de comêço, que segundo tôdas as probabilidades, um habitante de Nínive ou de Babilônia não saberia se era ou não governado despòticamente. Também nós, guardadas as proporções, não o sabemos, tão longas e tão antigas são as tradições de uma imaginária universalidade do âmbito da lei e de uma pretensa supremacia do poder do Estado, concretizada na noção de soberania ainda vigente.

Opomo-nos a governos de fôrça, mas, só os consideramos tais quando infringem certos aspectos restritos de liberdades individuais. Precisamos opor-nos também à ampliação ilegítima do âmbito da lei. Afora uma vaga defesa da consciência religiosa, nunca desenvolvemos, entre nós, o sentimento de que, na área do saber humano, também não é possível a interferência da lei. Está claro que herdamos do ocidente europeu boa parte dos hábitos de independência profissional e do saber, mas não chegamos a tornar perfeitamente consciente a herança, a ponto de possuirmos um critério capaz de denunciar as violações dessa aliás recente tradição.

Vindos antes de uma tradição absolutista portuguêsa, mais velha e renitente, e sofrendo, depois, ainda por cima, a influência de uma França napoleônica, acabamos por tomar aos Estados Unidos a sua organização política e a misturamos com uma tradição legal, em essência cheia dos ranços afonsinos, filipinos e napoleônicos. Daí não termos, em nossa organização pública e legal, nada que lembre expressamente a separação entre o poder legal e de govêrno e o poder do saber e da persuasão, a não ser nos aspectos limitados da consciência religiosa, quando, proclamada a República, a separação entre o estado e a igreja, até com apoio desta, então se operou. No mais e em tudo, sempre se considerou o Estado livre, absolutamente livre para legislar: não sòmente sôbre as garantias das profissões e do ensino, como sôbre as profissões e o ensino, determinando-lhes o que e o como fazer, como se êsses campos não fôssem os campos por excelência vedados à ação da lei e reservados ao auto-govêrno da consciência profissional e do saber.

Escolas, universidades, profissões são governados por leis e regulamentos elaborados pelo Estado e por autoridades menores, nomeadas pelo Estado, simples prepostos burocráticos, de qualificação e nível muito inferiores a qualquer Professor de faculdade superior, quanto mais diretores e reitores, sob a complacência universal, havendo muitos que até se horrorizam com a idéia de autonomia e de govêrno pelos seus pares, preferindo antes a proteção do príncipe, que a liberdade organizada de suas próprias instituições.

Não será que estamos, realmente, como aquêles cidadãos antigos que ignoravam a própria condição de súditos tiranizados? Se a isto não chegamos, talvez, estejamos pelo menos como aquêles mestres de Alexandria, na segunda fase da escola, quando o simples guardar e analisar dos velhos conhecimentos os esvaziara de tôda a inspiração e todo o poder criador...

Repostos na idéia de que não progredimos pelo costume, mas pelo saber, será natural que nos voltemos para as nossas instituições de educação e de estudo, não como relíquias toleradas de uma tradição, porém como a fôrça mesma da sociedade moderna, que a inspira e a plasma e lhe promove o indefinido progresso. E dentre essas instituições, avulta a universidade, como eixo e cúpula, com as suas escolas de cultura geral, os seus cursos profissionais superiores, os seus estudos especializados, seus cursos pós-graduados, de doutorado e de aperfeiçoamento, as suas pesquisas, as suas bibliotecas, – tão fundamentais, que, sòmente elas, de certo modo já são a universidade e, sem elas, inconcebível se torna a idéia mesma da universidade, – os recursos de comunicação físicos e mentais, as suas tecnologias e a sua literatura e o seu pensamento, e todo um corpo de servidores da cultura, mestres e alunos, vivendo numa atmosfera de inspiração e de trabalho, devotados à tarefa suprema de conduzir a aventura humana pela inteligência e pelo espírito.

Tal instituição tem que possuir, pelo menos, a mesma independência que reconhecemos às igrejas, não podendo ficar reduzida àquela noção restrita de liberdade de cátedra, porque, hoje, o pensamento humano não é uma simples atividade individual e subjetiva, mas, o resultado de uma ação complexa e multiforme, envolvendo grandes recursos em pessoas, material e aparelhamento. A sua independência não é algo de negativo que se concretiza pela ausência de imposições, mas algo de positivo que se organiza em uma das maiores atividades corporativas da sociedade.

Bem sabemos que, por mil e quatrocentos anos, pôde dormir sob os tumultos e os desvios do império romano e da idade média, aquela "razão" que os gregos revelaram ao homem e que só do século onze, em diante, volta a luzir, primeiro para a "justificação" racional da crença católica, depois para o grande reencontro com o pensamento grego do fim da idade média e do renascimento e os surtos especulativos da Reforma e do individualismo, até a fundação por Descartes do racionalismo científico, de que parte todo o progresso moderno. Sabemos que, naqueles mil e quatrocentos anos, não faltaram cultores extáticos do saber humano. Faltaram, sim, continuadores dêsse saber. Porque o saber não é sòmente algo que se guarda ou apenas se transmite, mas, sobretudo, algo que se continua e se renova, numa permanente reconstrução. Foi sòmente quando o homem perdeu a sua comovida surpresa ante o saber e não se deteve em sua veneração, mas passou a considerá-lo, simplesmente, como um apoio, um bordão para ir adiante na marcha sem fim da experiência da vida, que o progresso intelectual veio a ganhar seu intenso ritmo contemporâneo. Êste, o significado da autonomia intelectual, que o homem conquista, afinal, a partir de Descartes.

Naquela ocasião, como ao tempo da escola de Alexandria, não era, entretanto, com as universidades que estava a independência da inteligência humana. A tolerância do govêrno holandês era mais propícia a um Descartes do que o reacionarismo universitário de então, na Sorbonne e alhures.

É que as universidades não serão o que devem ser se não cultivarem a consciência da independência do saber e se não souberem que a supremacia do saber, graças a essa independência, é levar a um novo saber. E para isto precisam de viver em uma atmosfera de autonomia e estímulos vigorosos de experimentação, ensaio e renovação. Não é por simples acidente que as universidades se constituem em comunidades de mestres e discípulos, casando a experiência de uns com o ardor e a mocidade dos outros. Elas não são, com efeito, apenas instituições de ensino e de pesquisa, mas sociedades devotadas ao livre, desinteressado e deliberado cultivo da inteligência e do espírito e fundadas na esperança do progresso humano pelo progresso da razão. O seu clima é o da imaginação, no que tem de mais Potente êste aspecto de nossa vida mental. O seu ofício é a aventura intelectual, conduzida com o destemor e a bravura da experiência, estimulada e provocada pela juventude, que quer aprender, para ir com o seu novo saber, à base do velho, até o desafio dêste.

Mas, por isso mesmo que na universidade se misturam, não sem certa contradição, o saber dos mestres com o simples desejo de saber dos discípulos, a reverência ao saber adquirido com o desejo de superá-lo, a submissão ao método racional com a insubmissão aos seus resultados tidos por assentes, – a mesma universidade pode, no inevitável movimento pendular do espírito humano, tanto exceder-se na veneração das conquistas alcançadas e estagnar-se, quanto, no ardor de buscar a sua renovação, fazer-se, ora puros centros de fácil erudição pedantesca, ora insofridos núcleos de inovações precárias e efêmeras. Para evitar tais escolhos, é que se impõe a sua independência de qualquer outra subordinação que não a do espírito humano impregnado de respeito pelo método científico e sempre pronto para a revisão de suas conclusões.

Daí a universidade constituir-se em uma comunidade de objetivos mais amplos que os do ensino e o da pesquisa, pois os homens e mulheres que a compõem não visam apenas ensinar e aprender, investigar e descobrir, mas também viverem – num clima de fervor e devoção intelectual – a grande aventura do espírito humano na conquista da terra e de si mesmo.

Comunidade, assim, é ou será a mais alta comunidade humana. Em uma sociedade medieval, pretendendo a edificação da "Cidade de Deus", podiam as ordens religiosas e a igreja constituírem o apogeu de sua organização social; mas, na sociedade leiga secular dos nossos dias, a suprema instituição humana é essa instituição em que se transmite e se elabora o saber, o instrumento pelo qual o homem tende a realizar o seu destino de animal razoável, senão racional.

Assim compreendida, a universidade, que corporificará o espírito da investigação e do saber, baseados no método racional, ou científico, tem como tarefa essencial manter, entre os homens, a confiança no pensamento humano e no seu poder de organização e direção pacífica e progressiva da vida.

Graças a êsse pensamento, a vida evoluiu para a civilização industrial e democrática dos tempos modernos, com os seus inúmeros problemas de crescimento, desajustamentos e deslocamentos de tôda ordem. Estamos a ser desafiados por êsses problemas, que sòmente se resolverão pela criação de uma nova cultura adaptada às condições novas de nossa época. Nenhum dos modelos passados de cultura de classes, ou, em rigor, de cultura aristocrática, pode servir de padrão à cultura que nos cumpre criar para os tempos democráticos de hoje, em que, não uma classe, mas cada indivíduo deve adquirir a distinção que lhe fôr própria.

É, assim, de suma importância que a universidade não só arme o homem com os instrumentos indispensáveis ao seu novo poder mecânico e econômico, mas traduza em sentimento e imaginação a significação do novo tipo de vida, a que está êle sendo conduzido em face do progresso científico, cada vez mais amplo e mais extenso.

A questão tem suprema atualidade porque estamos no Brasil a entrar, exatamente, na fase correspondente de civilização industrial e democrática, em que temos de construir uma cultura para todos – êsses todos a que chamamos de massa.

Começa a nossa sociedade a passar pelas mudanças, já ocorridas em outros meios: emigração para as cidades, urbanização intensiva, mobilidade social, vertical e horizontal, adaptação a novas condições de trabalho, senso de fronteira, senso de oportunidade e expansão, todo um processo de liberação de fôrças e de enfraquecimento de inibições, dando como resultado a confusão e incertesa, características dos períodos de propulsão e de aventura.

Tudo isto pode produzir apenas uma nova ordem de trabalho, enérgica mas mecânica, com perda sensível de certos valores mais delicados de ordem moral e espiritual, como poderá ir-nos levando gradualmente a nova integração em uma vida mais larga e mais geral, em que os valores da fraternidade e de cooperação sejam, dia a dia, mais eficazes e mais sentidos.

Não se pode encomendar a nova cultura de que precisamos. Ela terá que vir como resultado de uma consciência mais aguda e mais inspirada do curso mesmo dos acontecimentos. E a universidade, especialmente, e, em rigor, tôda a educação deverão esforçar-se por ajudar a trazer à luz o novo estado de espírito e a nova interpretação da vida, necessária para as novas condições, novas contingências e novos progressos.

À universidade cabe trazer a contribuição mais significativa para a elaboração dessa nova cultura. Responsável pelo saber existente e pelo seu progresso, no meio brasileiro, e refletindo todos os problemas da formação nacional, já pelo seu corpo discente, composto de candidatos a tôdas as vocações e profissões de nível superior do país, já pelos planos e estudos organizados para atender à variedade e multiplicidade dos conhecimentos indispensáveis à formação daqueles especialistas, a universidade, viva e dinâmica, pelos fins mesmo de sua missão intelectual e científica e pela projeção dêsses fins na formação dos quadros mais diversos das profissões, da ciência e da técnica se constituirá a própria consciência nacional, no que ela tem de mais agudo e mais sensível, cooperando, assim, para a redireção da vida social, no sentido da formação democrática e moderna da cultura brasileira.

Correspondendo, como vimos, à própria institucionalização da inteligência, a Universidade, pelos seus mestres, pelos seus discípulos e pelos seus graduados ou ex-alunos, constituir-se-á uma extensa rêde de pessoas, a atuar em tôda a sociedade e a levar-lhe os resultados do saber e, melhor do que isto, o espírito do saber, misto de humildade e de audácia, pelo qual nenhum triunfo é realmente triunfo, nem nenhum insucesso realmente insucesso, mas condições, ambos, para mais ricas experiências e para a ampliação e reconstrução constantes da aventura da vida e do homem na Terra.

Até o presente momento, os êxitos no mundo material têm obscurecido os seus ainda pequenos êxitos no campo social e moral. Tudo nos leva, entretanto, a crer que o homem venha, na segunda metade, já em curso, dêste nosso século, a atingir a maturidade necessária para experimentar em sua vida social e emocional os métodos com que vem transformando a vida material, ou métodos de eficiência e alcance equivalentes. Esta será, provàvelmente, a grande tarefa universitária das próximas décadas.

Entre nós, no Brasil, contudo, muito temos ainda a fazer no campo material. As grandes e pequenas tecnologias de nossa época foram elaboradas, em grande parte, para as regiões temperadas do globo e a civilização se vem implantando em uma região tropical, para a qual faltam ainda inúmeros recursos tecnológicos. O saber, no campo dêsses recursos, e a sua utilização pelo homem na adaptação desta terra à vida saudável e próspera do brasileiro, abrem perspectivas enormes para a investigação e a experimentação dentro das grandes linhas, já conhecidas, do desenvolvimento científico moderno. Os períodos de expansão humana são marcados pelo desafio dos continentes vazios a ocupar e dos problemas que a vida em novas condições provoca e suscita. Temos, em nosso país, um modesto exemplo dêsse caso. Somos de extensão continental, com uma população ainda diminuta, que começa a despertar, concentrando-se em grandes cidades e se agitando ao longo de todo o país, à busca de novas condições de vida. São êstes os requisitos para os períodos criadores. A tarefa imediata de nossas universidades, irmãs mais jovens das grandes universidades do mundo, onde se irá processar o esperado progresso das ciências sociais e morais, é a do desenvolvimento científico e técnico, para alimentar a grande necessidade imediata de progresso material no Brasil contemporâneo.

O importante é salientar-lhes, assim, a missão de instrumentos fundamentais do desenvolvimento brasileiro e humano e acentuar quanto é ainda incipiente o nosso desenvolvimento nacional. Estamos, apenas, experimentando as primícias da maioridade.

O sussurrante agitar das chamadas "massas" nada mais é do que o alargamento daquela intuição de que o homem – a humanidade tôda – pode, graças à razão, chegar a uma vida decente e significativa neste planeta. Não estamos desesperados, mas apenas embriagados de esperança. São naturais certas impaciências e não é tão absurdo que tais impaciências cheguem a degenerar em aparências de desordem e confusão.

O momento é, porém, em todo o mundo, um momento de expansão, de libertação de fôrças, de novas composições e convergências para os grandes esforços humanos. Em tais momentos, é impossível exagerar a função das universidades, à luz das considerações que fizemos. Será por elas e graças a elas que poderá sempre vencer aquêle senso do razoável, que é o fruto mais alto do novo conhecimento humano. O característico do uso da razão, que há dois e meio milênios, tenta a humanidade aprender e praticar, é a tolerância.

Todo saber é uma "experiência" de saber. Tôda ciência é uma vitória da persuasão sôbre a fôrça. À medida que se estende a área do conhecimento racional e relativo, nesta medida se amplia a área de tolerância e de respeito pelo homem, e cresce a reverência pela sua missão de estender e desenvolver a aventura da vida sob o sol. O imenso poder que a sua pequena razão já lhe pôs nas mãos jovens não poderá ser lançado contra si próprio. A mestra da moderação e da tolerância, que é a mesma razão empreendedora, há de ser também a mestra da paz entre os homens. A guardiã dessa razão humana, origem e instrumento do saber, é a universidade, em cujo seio deve palpitar essa suprema esperança humana.

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