TEIXEIRA, Anísio. Unidade do Brasil. Boletim Informativo CAPES. n.132, nov.1963. p.1-4.

UNIDADE DO BRASIL

Anísio S. Teixeira *

Desde a sua descoberta, o Brasil tem sido objeto de curiosidade e estudo de eminentes homens de cultura e de espírito de outros países. A nossa Brasiliana conta, talvez, com tantos autores estrangeiros quantos nacionais. No longo esfôrço de introspeção em que todos nós brasileiros estamos imersos, sentimo-nos sem dúvida extremamente ajudados pela visão mais desprendida e por isto mais objetiva do observador estrangeiro. Nos tempos presentes, poucos autores poderiam como Charles Wagley, pelo treino profissional, pela longa experiência e pela penetração de espírito, dar-nos uma interpretação do Brasil. E outra coisa não é o que nos oferece êle agora neste admirável livro, ao mesmo tempo simples e profundo, escrito como uma livre meditação sôbre a nossa terra, meditação apenas possível graças aos longos anos de estudo, reflexão e afetuosa identificação com o país.

Ao ler-lhe os originais, disse-lhe logo que me senti seu discípulo, que muito aprendera ali, que nada poderia acrescentar, mas, se me permitisse, não teria dúvida em apresentar algo como um "aparte" às suas considerações sôbre o "mistério" da legendária unidade do Brasil, a despeito dos seus extraordinários contrastes e de sua extrema diversidade.

Sem dúvida, tudo leva a crer que essa unidade decorre da unidade de língua, consideràvelmente uniforme em tôda a imensa extensão geográfica, do singular e eficaz cuidado português de isolar-nos durante os três séculos de colonização e do caráter relativamente pacífico de nossa expansão territorial, em virtude da fragilidade das culturas indígenas, ràpidamente destruídas ou assimiladas. Como pôde, entretanto, essa unidade ser mantida ao longo do século XIX e do século XX? Por que escapamos - a despeito das lutas pela independência, dos tumultos de nossa emancipação política, das crises de nossas evoluções econômica, das desigualdades de nosso desenvolvimento social e das lutas pela defesa, integração e expansão territorial - de todo e qualquer divisionismo, para não dizer balcanização, característico do movimento de emancipação da América espanhola ? Ouso acreditar que isto devemos ao fato de havermos sido e até hoje sermos antes um lmpério que um Estado, governado por podêres centrais, que lembram, para dizê-lo brutalmente, os do govêrno da Roma Imperial sôbre o seu extenso território.

A supremacia do poder político não se estabeleceu no Brasil como uma gradual evolução de poder local, mas caracterizou-se sempre como imposição de poder central sôbre a ordem tradicional social e econômica. Dêste modo, constituiu-se sempre como um poder imperial e não como a natural emergência da soberania popular.

Se considerarmos o Brasil como um império, como um poder metropolitano central e um sistema colonial interno periférico, muitas das nossas dificuldades de interpretação da sua "misteriosa" unidade caem por terra. Essa "unidade" passa a explicar-se em grande parte como resultado da apatia, impotência, subordinação e atraso das áreas periféricas em face das áreas metropolitanas.

Efetivada durante o período de colonização externa e consolidada pelo regime de colonização interna, a nossa unidade não sofreu nenhum sério abalo nem muito menos fratura, exatamente devido à profunda desigualdade econômica que põe o Sul, industrial e rico, a cavaleiro do Norte, arcaico e pobre.

A chamada Revolução de 1930 poderia ter-se desenvolvido como a revolução de integração nacional, ao longo de linhas que lembrariam a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, se essa revolução não tivesse sido esmagada pelo movimento de contra-revolução, que se sucedeu à aparente derrota de São Paulo, no seu levante contra o poder central. Foi a rendição política dêsse poder às fôrças conservadoras da nação que manteve o Brasil em suas linhas tradicionais e restaurou o sentido de império do governo da República Brasileira.

Com efeito, desde a independência, em 1822, nada mais havíamos feito do que transferir o poder da Metrópole estrangeira para a Metrópole nacional, conservando o sentido colonizador do govêrno central. Aos que estão familiarizados com a história das províncias, ao tempo do Império, e depois dos estados, ao tempo da República, será impossível evitar a comparação das autoridades imperiais e depois das autoridades federais aos procônsules romanos. Verificava-se sempre entre a autoridade e o povo a mesma distância social e a mesma profunda incompreensão que deveria caracterizar a autoridade colonizadora. Episódios de levantes populares nas cidades, ao tempo do Império, e, talvez ainda mais eloqüentemente, episódios de fanatismo religioso, já na República - nenhum mais famoso do que o de Canudos, imortalizado por Euclides da Cunha - foram tratados pela autoridade central do govêrno brasileiro do mesmo modo por que semelhantes incidentes seriam resolvidos pelas autoridades romanas no Oriente Médio. A ordem política era uma ordem externa, "federal", de cúpula, sob cuja proteção e domínio viviam os povos provinciais, com os seus costumes, hábitos e tradições, substancialmente semelhantes devido à unidade de língua e aos três séculos de calculada e planejada uniformização imposta pelo domínio português.

Com a proclamação da República, concedeu-se autonomia às províncias, agora estados à maneira da federação norte-americana. Mas, enquanto que a federação nos Estados Unidos resultava da limitação dos direitos originários dos estados, os quais subsistiam sempre que não expressamente transferidos, no Brasil os direitos dos estados foram outorgados pela União. Encerra-se essa verdadeira experiência política nos primeiros quarenta anos da república. Na prática, consistiu a experiência no estabelecimento da hegemonia dos dois estados mais importantes sôbre a União. Os Estados de São Paulo e de Minas Gerais repartiram entre si o poder federal e exerceram até 1930 o comando político da nação. Com a cisão entre êles e a aliança de Minas Gerais ao Estado do Rio Grande do Sul, sobreveio a Revolução de 1930, provocando a instabilidade política conseqüente de um período ditatorial que sòmente se encerra em 1946, com uma nova constituição, em que se restabelece o poder da União em linhas semelhantes em muitos aspectos à situação reinante ao tempo de Império, lembrando os estados agora as antigas províncias sob o comando do poder econômico e político extremamente ampliado do govêrno federal.

Essa concepção do Estado Brasileiro como poder imperial sôbre as culturas locais das províncias, hoje estados, é que permitiu manter-se a unidade política dentro da extrema diversidade cultural de todo o país. Tal natureza imperial do govêrno central, que se transferiu da Colônia para o Império e dêste para a República, retardou, sem dúvida, o desenvolvimento global do país, mas, por outro lado, permitindo e mesmo promovendo o desenvolvimento desigual e particular de certas zonas de hegemonia e contendo as demais, operou como que uma super-ordem para a manutenção da integridade nacional.

Graças a êsse processo de retardamento causado pela natureza colonizadora do govêrno central pôde o Brasil atravessar o possível período de desmembramento e chegar à época contemporânea, quando o progresso da tecnologia das comunicações e dos transportes já permite enfrentar os problemas de desenvolvimento global sem perda da unidade política. Ninguém poderá dizer se a divisão do Brasil não teria ocorrido se o avião e os meios de comunicação não tivessem chegado a tempo de mantê-lo unido, a despeito de seu desenvolvimento desigual e contrastante. A observação que assim ouso ajuntar à análise lúcida e percuciente de Charles Wagley em relação ao "mistério" da unidade brasileira não escapa a certo aspecto paradoxal.

A nossa unidade resultou, no passado, de uma estrutura colonial interna, que retardou o desenvolvimento global e conteve o país atrasado em face de sua região em desenvolvimento, impedindo qualquer fragmentação; e, no futuro, em face do desenvolvimento global ora iniciado, será mantida graças aos novos meios de comunicação e de transporte, que já agora tornam plenamente exeqüível o desenvolvimento material de nações de tipo continental como o Brasil. Se o retardamento do nosso desenvolvimento não tivesse ocorrido, ou nos desmembraríamos, ou realizaríamos a nossa integração com a violência que marcou a integração política e a expansão territorial dos Estados Unidos. Ficamos unidos porque éramos atrasados e seremos unidos porque hoje os meios tecnológicos permitem o desenvolvimento pacífico de nações de porte continental.

Não desejo encerrar este rápido comentário sem renovar a Charles Wagley a gratidão de um brasileiro por mais êste livro, que tanto nos ajuda a ver e sentir a nossa realidade e a formar a consciência nacional, sem o que não poderíamos dirigir o movimento de nossa emancipação econômica, mantendo íntegro o nosso caráter nacional.

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