TEIXEIRA, Anísio. Ensino humanístico e ensino científico em nosso tempo. Temas. São Paulo, v.1, n.1, maio 1971. p.5-12

ENSINO HUMANÍSTICO
E ENSINO CIENTÍFICO
EM NOSSO TEMPO

Considerações preliminares

Anísio S. Teixeira

O problema que julgo subentendido nesta formulação do nosso tema – ensino humanístico e ensino científico em nosso tempo – não é o de humanismo e ciência, mas o de ser ou não ser possível o estudo científico dos valôres e fins da vida humana, ou seja, dos problemas mais profundamente humanos, aquêles que lidam com o destino e a qualidade da vida, que o inevitável – parece inevitável – mal-estar da "civilização" nos está dia a dia a oferecer e que devemos poder resolver e não apenas suportar.

Whitehead lembra em um dos seus diálogos, ou conversas, em casa, entre discípulos e amigos – diálogos que Lucien Price nos preservou em seu admirável livro "Diálogos de Whitehead" – que a inteligência humana parecia-lhe haver chegado a seu apogeu naquele distante século V, antes de nossa era, em que Platão lançou seu grande esbôço do pensamento humano, sendo tudo que fêz e pensou o homem após êsse período nada mais do que comentário e desenvolvimento daquelas iniciais intuições. Ocorrendo-lhe essa lembrança, indagou se as grandes religiões não teriam também surgido nesse século. E na conversa que se seguiu, confirmou-se que assim fôra. Não era de outro século Çakia Muni (Buda), notando-se ainda que tinha pouco mais de 20 anos quando fundou o budismo.

Que buscava a inteligência humana nesse século? Buscava a sabedoria. E que era a sabedoria, senão a aplicação do saber à conduta inteligente da vida humana. Como explicar-se não ser mais a busca da sabedoria objeto do estudo humano? Era a filosofia – amor da sabedoria – a mestra dêsse campo da reflexão humana. Que fios da inteligência humana foram destruídos para que êsse campo não mais aparecesse na tessitura do saber humano, e a busca da sabedoria se voltasse apenas para a busca do "saber", e êste viesse a limitar-se ao saber extrínseco ao homem, ficando o seu mistério entregue ao saber sobrenaturalmente revelado, ou então às elocubrações da mente humana, debruçada sôbre as inclinações e desinclinações ou se quiserem os gostos e desgostos do homem?

Essa história, que é longa, todos nós a conhecemos. O saber grego foi tido como resultado do método de observação, sem dúvida, mas de natureza especulativa e intuitiva, e, como tal, intemporal e eterno. Vinte séculos após a sua luminosa explosão, os homens desenvolveram, acima do método de observação, o método da experimentação, e êste lhe deu o conhecimento científico, conhecimento relativo e temporário, mas singularmente eficaz. Êste método último, o da experimentação, não permitiu apenas conhecer, mas também descobrir e inventar. E o método da invenção, uma vez criado, deu-nos o imenso saber físico que já possuímos e as múltiplas tecnologias com que transformamos o mundo e ganhamos o contrôle das condições materiais da existência, a tal ponto que hoje um dos problemas humanos é lembrar ao homem que a angústia fundamental da escassez e da miséria continua, por certo, a esmagá-lo, mas já não é nem inevitável nem fatal, como fôra antes dos conhecimentos de que hoje dispõe. A riqueza e a afluência já estão no mundo: o problema de hoje é: o que fazer dela?

Voltemos, porém, às nossas considerações gerais. Por que assim se limitou o campo do saber humano? As causas não foram intelectuais, mas sociais, embora se revestissem de grande aparato terminológico. Todo saber humano era global e unificado e sôbre êle é que se exercia o poder de contrôle das grandes fôrças sociais da cultura da época. Para que a ciência, com seus novos métodos, viesse a ser aceita, houve que se aceitar o expediente de limitar o saber experimental e verificado, o saber hoje em dia eficaz, o saber pragmático, ao que não afetasse o mundo dos valôres humanos, os quais continuaram autônomos, sob a égide do saber revelado sobrenaturalmente, ou então, sob a égide da pura especulação humana, como saber subjetivo interior, governando as crenças e os gostos, ou desgostos humanos sem outra eficácia senão a do confôrto e consôlo que poderia dar aos homens.

Com êsse expediente, separam-se as áreas do conhecimento em conhecimento espiritual e material, conhecimento objetivo e subjetivo, conhecimento religioso e secular, conhecimento de meios e conhecimento de fins. O conhecimento científico passou a ser, essencialmente, um conhecimento de meios e, geralmente, apenas de meios materiais, guardando seu objetivo de eficácia, mas apenas para dar meios aos homens de fazer meios aos homens de fazer o que vinham fazendo, ou livremente viessem a querer fazer. Assim, quando chegamos à bomba atômica, o problema da ciência era fazê-la, mas jamais o de debater se se devia fazê-la ou para que fazê-la? Isto seria resolvido pelos gostos do homem. Gostando êle de destruir, a bomba seria feita para destruir. E Oppenheimer perdeu seu lugar e quase o convívio dos cientistas, quando julgou dever levantar a questão.

À separação da ciência, do mundo dos problemas humanos para o mundo dos problemas físicos, especializou o cientista de tal modo que chegou a ser excluído do mundo do pensamento pròpriamente dito, com o que êle próprio veio a aprofundar a separação, passando a considerar impróprios para seu espírito os problemas que considerariam "espirituais", ou "subjetivos", ou "religiosos", ou "teológicos", e por fim, de modo geral, os problemas, não diria humanos – pois o bem material é também humano e neste sentido enriqueceu extraordinàriamente o homem - mas humanísticos, ou seja, os de sua política e os da convivência humana, os problemas dos valôres humanos, criando-se, afinal, a falácia das duas culturas do homem.

Tão física fôra obrigada a ser a ciência, que a própria fisiologia teve dificuldade em ingressar nos seus domínios e, depois, a psicologia precisou de um gênio para abrir-lhe a porta. E as ciências sociais, de modo geral, só abriram um comêço de caminho, quando se limitaram a ser ciências descritivas, querendo apenas estudar os meios para fazer o que fôsse corrente, não aceitando jamais a função crítica que arriscaria de pô-la em contradição com os fins, a serem achados ou esclarecidos pelo outro tipo de conhecimento, fundado nos costumes e nas crenças dominantes entre os homens. E aquêles dentre os pensadores sociais que avançaram em seu pensamento social não são considerados homens de ciência, mas "pensadores" da primeira cultura, que seria a humana e humanística.

A ciência, entretanto, que, para sobreviver, tivera de reduzir e limitar o tipo de conhecimento que cultivava, logrou tamanho êxito em sua tarefa, que se fêz a fôrça dominante do conhecimento humano. E, sem dúvida alguma, fêz-se a fonte do nôvo poder do homem sôbre a natureza e as condições materiais da vida, tornando-se a causa principal da presente riqueza do mundo desenvolvido e o instrumento do seu poder material pràticamente ilimitado, chegando, por isto mesmo, a ser uma das causas do presente teor humano, não mais apenas do clássico mal-estar da civilização, não faltando quem lhe quisesse dar-lhe férias, pondo-a em recesso, como certos outros poderes do campo político e social.

Diante dêste isolamento do conhecimento científico, que sucedeu aos outros campos de conhecimento já cultivados pelo homem desde o momento luminoso e criador da antiga Grécia? Refugiaram-se nos métodos convencionais anteriores ao método científico, fazendo êsse tipo de conhecimento humanístico, ou teológico. Era conhecimento sem comprovação, tendo sido, em nosso mundo ocidental – que já houve quem o chamasse de mundo da civilização acidental – seu último período unificado o de Sto. Thomaz de Aquino. Quebrada essa unidade com a Reforma, entrou em processo de variação até se transformar em crenças de grupos e até, de certo modo, individuais, a serem decididas na intimidade do ego, ou da consciência individual.

Não pensemos, porém, que essa pulverização individualista do mundo de valôres tenha produzido imediata anarquia. A compartimentalização do conhecimento não decorreu de caprichos individuais, mas foi o resultado do jôgo de fôrças sociais de dominação, de ordem e de um natural conservadorismo humano. Em têrmos mais neutros, do jôgo das fôrças culturais do nosso tempo.

Os Estados separaram a Igreja do Estado, para assegurar-lhes a coexistência pacífica. Com o Estado, ficou o pensamento secular, com a Igreja o pensamento pròpriamente espiritual e religioso. Com a ciência, ficara o mundo físico, mas o político, econômico e social ficara com as profissões liberais e a iniciativa privada, reduzindo-se ao desenvolvimento do conhecimento convencional, substancialmente não crítico, proposto à criação e conservação das instituições e do poder como se fôsse constituindo. Aí não entravam nem o método da experimentação, nem muito menos, o da invenção, salvo em aspectos técnicos que não afetassem senão a maior ou menor eficácia dos meios. Como antes, a razão, o saber científico era "o escravo das paixões humanas".

Nessa imensa área do poder secular, oposto ao poder das igrejas, o pensamento humano foi declarado "livre", considerando-se "livre", vale acentuar, desde que praticado por homens "livres", significando isto homens alheios a necessidades materiais, conceito que herdamos ainda dos gregos, e que pensassem dentro do socialmente "estabelecido". Dentro, contudo, dêsse natural condicionamento, a inteligência humana criou os métodos e as instituições democráticas e desenvolveu a arte (incluindo, está claro, a poesia) e o conhecimento estético, considerado também como forma isolada de conhecimento e, de certo modo, como refúgio religioso para o pensamento secular. As separações e isolamentos da época tinham de resultar em expedientes de acomodação para a possível coexistência.

O conhecimento humano desenvolveu-se, nessa época, dentro dêsse contexto, realmente dividido entre áreas de poder. A ciência foi, talvez, a que logrou dentro de sua limitação pràticamente aceita pelos cientistas e pela sociedade, de cuidar sòmente do "material" e dos "meios", maior liberdade real. E, por isto mesmo, foi a que foi mais longe, pondo-se a serviço do sistema econômico dominante, dando origem à "indústria", como solução do problema de produção sem consideração a quaisquer aspectos humanos. Aliada ao sistema econômico predominante, criou as tecnologias que transformaram materialmente o mundo, tecnologias que, por sua vez, moldaram os homens para a fácil domesticação às condições do sistema econômico.

A arte, também isolada como forma diferente e excepcional de conhecimento, criou à maneira das profissões suas formas de auto-proteção, passando o artista a ser razoàvelmente livre, dentro do conceito "liberal" de livre, e graças à sua relativa alienação social. Separado o pensamento secular das formas profundas de interação no contexto social, encontrou o homem na arte consôlo e confôrto. Fêz-se a arte uma espécie de religião leiga e secular.

Desprovido do método científico experimental, o pensamento filosófico, político, psicológico, artístico e social ficou entregue a "escolas de pensamento", sob a liderança de "fundadores", inspiradores, mestres excepcionais de "doutrinas", de algum modo "não científicas", mas ideológicas. Como a democracia criara certa atmosfera "liberal", isto é, liberdade dentro do sistema estabelecido vigente, êsse método compartimentalizado desenvolveu-se em nosso complexo, organizado e poderoso e confuso mundo moderno, com suas sociedades de "mercado" e culturas do dinheiro.

A educação é um reflexo dêsse mundo. É êle que separa a educação humanística da educação científica, a educação geral da educação para a profissão e a vocação, a educação de "ciência pura" da educação tecnológica, e, de certo modo, a educação artística das demais formas de educação.

Às vêzes, ponho-me a pensar que se a espécie humana apenas dispusesse, como os insetos, de seus sentidos para completar sua evolução e adaptação ao seu mundo, essas formas divididas de educação poderiam ser fatôres dessa evolução para a perfeita conformação dos seus "corpos" à vida possível no mundo. Mas havendo o homem descoberto e desenvolvido as línguas como forma de sua convivência, e, depois, da língua, o alfabeto e depois a escrita e a tipografia, e afinal, o telégrafo, o rádio, a televisão, e os processos eletrônicos de comunicação, sua evolução já não vai, talvez, ser biológica, mas social, sendo cada homem uma súmula da espécie, unidade não-especializada da espécie. A idéia da igualdade humana nasce, em rigor, daí. Parece, a valer a intuição de Whitehead, que o homem terminou sua evolução biológica nas alturas do século V antes de nossa era, em pleno meio-dia helênico. Daí por diante, não a mais saltos biológicos, mas desenvolvimentos sociais. Mas, tais avanços vêm sendo verdadeiros saltos, não mais biológicos, talvez, mas tecnológicos, de extensão dos sentidos e das faculdades e poderes mentais do homem, desde a marcha pela roda até a mente pela língua, o alfabeto, a escrita, a imprensa e finalmente a comunicação pelo telégrafo, o rádio, a televisão e todos os atuais recursos eletrônicos, inclusive os satélites. E o problema da educação é o de adaptação do homem aos seus próprios inventos, às suas próprias tecnologias, concebidas como extensões dos seus sentidos e dos seus podêres.

Em nosso tempo, para ficarmos dentro do tema, processaram-se vários dêsses saltos tecnológicos e nos encontramos em um mundo, que para acompanhar a classificação de Raymond Williams, em seu livro Cultura e Sociedade, teve seu desenvolvimento dominado por cinco "palavras-chaves: indústria, democracia, classe, arte e cultura". "Cultura" é conceito nôvo de nosso tempo atual, significando o esfôrço do homem por controlar, pela tomada de consciência, pela conscientização do processo de sua vida, o desenvolvimento em que o lançam as extensões "tecnológicas" dos seus sentidos e podêres.

É pela "cultura, assim concebida, que o homem vai ganhar o contrôle da situação extremamente complexa em que está a viver. Ora, essa cultura, que é algo dinâmico, em constante mudança, o homem sòmente pode dela tomar consciência, por um esfôrço extraordinário de educação. E essa educação não pode ser para fazer dêle o inseto especializado da espécie, mas o homem capaz de compreender e controlar todo o processo de sua vida. Logo, jamais êle disto poderá tornar-se capaz se a educação apenas o especializar para a produção e suas ocupações pessoais. À necessidade é habituá-lo para muito mais do que isso. É habilitá-lo a compreender a cultura em que está mergulhado e em que vive, a fim de poder aceitá-la e adaptar-se a ela e, ao mesmo tempo, poder contribuir para sua constante revisão e reforma.

Para essa educação, teremos que voltar ao tempo em que a educação era a busca da sabedoria e não apenas do saber especializado que precisa para seu trabalho produtivo. Esta é apenas parte de sua educação. Para dar-lhe a outra, precisamos que voltem a existir filósofos devotados aos problemas humanos, nesse amplo e compreensivo aspecto de que Platão nos deu o exemplo.

Mas a filosofia, dentro do processo de especialização que obcecou o nosso tempo, fêz-se também uma especialidade altamente técnica a estudar uma realidade superior (o ser em si), ou o conhecimento em si, ou a lógica formal em seus aspectos mais delicados e sutis. Tudo isto é essencialmente importante mas há que fazê-la voltar às suas origens a fim de novamente ser a "mestra da compreensão da vida", a despeito de sua extrema complexidade. Para isto, não irá ela afastar-se da ciência, mas fazer-se a estudiosa dos usos da ciência e dos valôres humanos e estudá-los pelos seus mesmos métodos, a fim de nos oferecer os decálogos do comportamento e da sociedade humana.

A ciência, melhor diria, o método científico produz o conhecimento, a filosofia produz o conhecimento de como usá-lo para êle contribuir para a vida boa e digna do homem. Os valores humanos são o seu estudo, concebidos tais valôres como os "instrumentos", como na ciência física, para o tipo de vida humana boa e digna de ser vivida.

O uso da ciência e do saber é o que tornará tal vida possível, e, dêste modo, humanística a educação ministrada pela instrução científica.

Em nenhum período da história a necessidade de educação fazer-se a mestra do processo de viver foi tão extrema e urgente, por isto mesmo que a vida se fêz incrìvelmente organizada e complexa, tornando o problema de compreender-lhe o processo infinitamente mais dificultoso do que nos tempos em que o homem lutava apenas contra os mistérios da natureza. Êsses mistérios a ciência hoje os desvendou. Os novos mistérios são os do uso que o homem fêz do seu conhecimento e saber. Êste, o problema do nosso tempo: estender o método científico aos valôres humanos, voltar ao amor e à busca da sabedoria, consumando para o mundo social e moral a epopéia da ciência, ainda limitada ao mundo material.

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