TEIXEIRA, Anísio. Sôbre o problema de como financiar a educação do povo brasileiro. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.20, n.52, 1953. p.27-42.

SÔBRE O PROBLEMA DE COMO FINANCIAR
A EDUCAÇÃO DO POVO BRASILEIRO *

BASES PARA DISCUSSÃO FINANCIAMENTO
DOS SISTEMAS PÚBLICOS DE EDUCAÇÃO

Anísio Teixeira
Diretor do I.N.E.P.

Aqui estou para mais uma vez examinar, de público, o problema em que muito tenho pensado, sôbre o qual muito já tenho falado e que reputo crucial, cada vez mais instante: de como financiar a educação pública no Brasil e para todo o povo brasileiro.

Ainda há pouco, convidado pelo Rotary Club do Rio de Janeiro a versar ali assunto da minha especial e prolongada responsabilidade na vida pública, não hesitei no tema a expor aos Rotarianos, de improviso, mas à base de constantes e sedimentadas investigações e reflexões, como dirigente da Educação, por várias vêzes, no meu Estado de nascimento e no Distrito Federal, e ora à frente do I.N.E.P. (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), no Ministério da Educação e Cultura.

Transpondo-me agora com o mesmo tema essencial para esta audiência, especialmente credenciado para debatê-lo, entregando-lhe ao estudo o levantamento procedido pela Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) relativo às despesas e custeio da educação, ao qual servem estas minhas palavras de breve apresentação preliminar. De educadores para educadores, de responsáveis para responsáveis por serviços de educação em todo o Brasil, aqui reunidos, debatê-lo-emos, na esperança de que todos poderemos colhêr de todos novas luzes e contribuições úteis.

De muito tempo, repito, o fundamental problema me absorve atenção e diligência indagadoras, à procura da solução de base, indispensável. Convendo, entretanto, em que a sua premência nunca me feriu tanto e tão amplamente como no exercício do cargo de diretor do I.N.E.P., que, na administração federal, é sobretudo uma espécie de catalisador de soluções emergentes, mediante apelos, instâncias, solicitações diuturnas e até súplicas dos próprios poderes públicos locais (Estados e Municípios), dos mandatários políticos ou de simples particulares, que ali vão bater, de todos os quadrantes, em busca de auxílios para instituições e empreendimentos parciais, enquanto a obra educacional geral, integrativa, - que é preciso empreender, que urge empreender a todo custo, - fica à espera da solução básica, em que se deverá apoiar. E como as soluções de emergência não bastam, as injunções de expediente, no I.N.E.P., não me impediram, antes me desafiaram ao máximo, aquelas minhas amadurecidas reflexões sôbre o problema dos problemas quanto ao sistema educacional brasileiro, seus fundamentos construtivos, sua organicidade e sua efetividade.

* * *

Antes de tudo, devemos convir em que o fenômeno mais significativo, talvez do desenvolvimento do Brasil, nos últimos vinte anos, é a tendência crescente para o que já podemos chamar a unificação ou integração do povo brasileiro, em que pesem fatôres de diversificação, velhos e novos, divisões e estratificações, às vêzes artificial ou artificiosamente exacerbadas, quando menores poderiam ser ainda os seus acentos, que, entretanto, dir-se-ia, mais estimulam e aguçam as aspirações e afirmações reivindicativas daquela unificação ou integração em marcha. É certa já a impossibilidade de reviver as épocas em que podíamos dizer - "Nós e o povo". . . Estamos sendo instados a declarar sempre - "Nós, o povo" ... E, mais ainda: somos agora obrigados a agir em conformidade com o que declaramos, sem possíveis enganos, engodos ou ilusionismos diversionistas, cuja eficácia, seja dito, vai diminuindo a olhos vistos.

As tendências unificadoras, integrativas, nos dias em que vivemos, representam já um estado de consciência comum dos direitos e legítimas aspirações do povo brasileiro. E é no campo da educação, sobretudo, que essas reivindicações, legítimas como as que mais o possam ser, se revelam em maior extensão e com intensidade maior de clamor público - o povo todo, por tôdas as suas camadas, a desejar e a exigir que lhe sejam proporcionados meios de educar-se: educar-se para viver.

Até o século passado e, quanto a nós, muito especialmente, até as primeiras décadas dêste, cuja metade já transpusemos, a educação (e não me refiro só à educação pública ou dita popular) era um problema que, impregnado de idealismo, tudo ou muito tinha de paternalista e assistencialista. Era, precìpuamente, uma dádiva, uma concessão dos que achavam que podiam fazê-la e, podendo, deviam outorgá-la, aureolando o estrito fervor com as galas de filantropia ou a glória da benemerência pública.

Vem a propósito lembrar o resumo a que nas práticas se reduzia o grande ideal - ideal populista - de então, em quantidades e qualidade reais, bastando-nos para tanto recordar as palavras do Sr. Fidelino de Figueiredo, em seu recente livro Um Colecionador de Angústias (página 85), onde diz que "entre os latinos" (generalização sua) a palavra democracia (aspeada ou grifada) significava "a massa esquecida como incapaz, perpétua criança, que nada reclama e nada merece ou só merece o que lhe queria dar um ministro português de educação: ler, escrever e contar, mas sem ter depois de ler, nem escrever, nem contar... "

Resumindo, pelo melhor, essa educação-concessão, educação-dádiva, educação-assistência, até os primórdios dêste século, diremos que, então, queríamos educar o Brasil e que, hoje, - é o Brasil que exige ser educado. E é tempo de reconhecer que não há empreendimento maior e mais indeclinável para uma democracia - mesmo uma simples democracia política que não seja uma burla ou uma fraude grosseira - que educar tôda uma nação, ou todo o povo para ser efetivamente a nação.

Vejamos, portanto, desenganadamente, o que isso, pôsto por obra ou transposto para a realização efetiva, representa de encargo e custo a serem providos.

Nas atuais condições demográficas brasileiras, a distribuição por idades da população leva-nos ao cômputo de nunca menos de oito milhões de crianças na idade da instrução primária. A êste mínimo de obrigação legal e ao mínimo dos oito milhões de credores dessa obrigação, mesmo não computando seus sucessivos acréscimos, temos necessidade de adicionar os adolescentes, os jovens na idade da instrução secundária. Da soma resulta pelo menos um total de dez milhões de brasileiros a educar, por obrigação legal, constitucional, ou por necessidade social, contingente. Eis a preliminar - a primeira das preliminares - do nosso problema.

Não fica aí, entretanto, o ônus da democracia brasileira. Examinando mais analìticamente, e comparativamente, as nossas condições demográficas, relativamente à distribuição da população brasileira por idades, verificamos: que 51% desta população se encontram na área de idade de 0 a 19 anos; que apenas 43% se encontram na idade de 20 a 59, constituindo êste o núcleo pròpriamente produtivo e ativo do Brasil; e que de 60 anos para cima temos os 6% restantes. Vê-se, assim, que a nação brasileira se encontra sobrecarregada, relativamente a outros países, por não contar senão com um grupo pequeno de população ativa, à qual compete educar e sustentar a maior parte da população, ainda inativa, constituída dos habitantes de 0 a 19 anos, além dos encargos de assistência aos de mais de 60 anos.

A situação brasileira, em relação a outras nações, é sensìvelmente agravada por uma tal conjuntura. Os próprios Estados Unidos, onde o crescimento demográfico também é extraordinário, têm 34% de população jovem até 19 anos, 54% de população ativa e 12% de população idosa. De maneira que é mais fácil aos EE. UU. suportar o ônus de educar a população jovem, por ser êsse grupo demográfico relativamente menor. E a situação da Inglaterra ainda é mais favorável: apenas 29% da população pertencem ao grupo de 0 a 19 anos, 56% ao de 20 a 59 anos e 15% ao de 60 e acima.

Mas, a despeito de ser para o Brasil particularmente pesado o encargo de educar, está o nosso país se desincumbindo dêle melhor, aparentemente, do que poderíamos talvez pensar. Com efeito, despendemos, em 1950, com a educação pública e particular, mais de seis bilhões de cruzeiros. Êstes seis bilhões ou, para ser mais preciso, Cr$ 6.400.000.000,00, contadas também as despesas particulares com a educação, representam 2% da renda nacional brasileira, proporção muito significativa, porque importa em percentagem igual à das melhores e mais bem educadas nações do mundo. Apenas, a nossa renda nacional não é suficientemente grande para que êste mesmos 2% nos dêem o que seria necessário para educar tôda a população brasileira, em condições adequadas. E aqui temos outro gravame para a solução do nosso problema, decorrente do subdesenvolvimento da riqueza, em que nos dispensamos de insistir.

É diante de tudo isso que se torna urgente verificar, se não poderíamos administrar melhor os seis bilhões e tanto de cruzeiros que já se despendem em nosso país com a educação.

E não há sòmente a obrigação de manter tôdas as crianças na escola primária. Há também, depois de dar a instrução que é obrigatória, a necessidade de proporcionar a secundária e a conveniência também socialmente indiscutível, de ministrar a superior a número considerável de habitantes brasileiros.

Cumpre-nos, assim, insistimos, verificar se um melhor modo de administrar tais despesas, se melhor inteligência na aplicação de tais recursos não poderia levar-nos a tirar melhor proveito da mesma soma na solução do magno problema que defrontamos.

Presentemente, teríamos a obrigação de manter nas escolas primárias uns oito milhões de crianças. Já mantemos, bem ou mal, cinco milhões, em escolas de dois e três turnos e em cursos supletivos com horários muito reduzidos, para só falar nas deficiências quantitativas e, decorrentemente, qualitativas de mais vulto.

No curso médio, já mantemos seiscentas mil crianças. A rigor, deveríamos manter, pelo menos, 20% da população que freqüenta a escola primária, o que daria, no mínimo, um milhão e meio de alunos.

No curso superior, temos, presentemente, trinta e sete mil estudantes e, segundo a proporção verificada em países de desenvolvimento semelhante ao do Brasil, deveríamos dar educação superior a cêrca de sessenta mil estudantes, ou seja, a quase o dôbro.

Como, porém, poderia o Brasil conseguir recursos para financiar êste tremendíssimo serviço social? - Eis o ingente e instante desafio, de ordem cívica, política e social, que nos cabe enfrentar e que não comporta mais delongas.

Primeiramente, gostaria de vos mostrar, Senhores Congressistas, como as nossas despesas com a educação realmente se distribuem entre a União, os Estados, os Municípios e os particulares. Em 1950, de modo geral, e nas órbitas oficiais, estávamos gastando:

- no Ensino Primário:

os Estados .................. 2.400.000.000,00
os Municípios .............. 451.000.000,00
a União ........................ 16.000.000,00
2.867.000.000,00

- no Ensino Médio:

os Estados .................. 1.110.000.000,00
os Municípios ............. 26.000.000,00
a União ....................... 463.000.000,00
1.599.000.000,00

- no Ensino Superior:

os Estados .................. 452.000.000,00
os Municípios ............. 4.000.000,00
a União ....................... 489.000.000,00
945.000.000,00

Vê-se, por tal demonstrativo, que as três órbitas do govêrno cooperam nessas despesas e como cooperam.

Quanto ao ensino particular, mantido pelas taxas de matrícula dos próprios alunos, vamos ver que o seu orçamento não é, ao lado dos gastos com o ensino público, tão grande quanto poderíamos pensar.

Com o ensino primário as três órbitas do Poder Público despenderam Cr$ 2.867.000.000,00, enquanto os gastos particulares foram apenas de Cr$ 117.000.000,00 - menos de 5% do dispêndio público. Veja-se como, realmente, o encargo é público, é do Estado, ficando certos todos nós de que a educação brasileira é dever, e não favor, que só se cumprirá com os recursos do poder público.

Com o ensino médio, a despesa particular (a maior notem bem, de tal procedência) foi apenas de Cr$ 860.000.000,00, enquanto a das três órbitas do poder público subiu a cêrca de um bilhão e seiscentos milhões de cruzeiros, ou seja quase o dôbro. É preciso esclarecer que, neste ensino médio, estão compreendidos o ensino industrial, o comercial, o agrícola e o secundário ou acadêmico, e que os gastos particulares, no nível do ensino médio, são feitos predominantemente com o secundário acadêmico. Ainda aqui o ônus maior é, indubitàvelmente, dos poderes públicos, porque com êles ficaram as escolas mais dispendiosas, que são as industriais, as agrícolas ou técnicas em geral.

Com o ensino superior, os gastos públicos montam a Cr$ 944.000.000,00, enquanto os particulares são apenas de Cr$ 55.000.000,00 - pouco mais de 5% daqueles.

É evidente que o empreendimento só poderá ser levado a têrmo pela decisão e a providência dos poderes públicos, em cooperação. Só êles poderão arcar com o ônus de financiar, de manter o imenso sistema de educação que a democracia brasileira já está a exigir. Quando declaro que "está a exigir", não o digo por eufemismo, mas porque, na realidade, está a fazê-lo e vai consegui-lo, de um modo ou de outro. Notemos ainda que os brasileiros estão se transferindo, em virtude de intenso movimento de migração das populações rurais, para as cidades. É fenômeno fatal no desenvolvimento de qualquer nação: a crescente urbanização da vida que decorre do progresso da industrialização. No Brasil, o aumento da população urbana foi de 50%, nos últimos dez anos. Quer dizer, as cidades brasileiras receberam um acréscimo de 50% em sua população. Em 1950, possuíamos 36% da população brasileira nas cidades e apenas 64% no campo, enquanto há trinta anos passados tínhamos apenas 27% nas cidades e 73% no interior.

Tôda essa população que vem para a cidade começa a exigir educação, como necessidade absoluta, idêntica à da alimentação. Não é mais uma questão de paternalismo, como no caso das populações rurais, que ainda não exigem imperiosamente a educação escolar, que, entretanto, lhes é devida. Para a população urbana, ocupada em níveis de trabalho mais especializado, a educação escolar é condição essencial para ganhar a vida. Os habitantes urbanos passarão, estão passando a exigir a criação, cada vez mais numerosa, de escolas, públicas ou particulares, em boas ou más condições, - contanto que se lhes dê alguma educação, pois dela precisam para que possam encontrar trabalho. Pelo menos, a educação primária se faz assim indispensável. Ora, dar ensino primário a todos os habitantes, pelo menos da cidade, constitui encargo, ônus tremendíssimo para os orçamentos públicos.

A democracia brasileira, pela Constituição de 1946, não se revelou desatenta a êsse dever. Antes o encarou, explìcitamente, estabelecendo um regime de percentagens tributárias, pelo qual não será impossível financiar o sistema público de educação nacional.

Há dois processos, em geral, nos países civilizados, para financiar a educação. Um dêles é o de impostos privativos e específicos para o custeio da escola. Outro é o de percentagem da renda tributária geral para manter as escolas.

O sistema adotado pela América do Norte é o de impostos privativos. Alguns impostos foram escolhidos para custear o sistema público de educação. Um americano, habitualmente, paga, além de seus impostos federais, estaduais e municipais, os seus impostos escolares. Tais impostos foram e são lançados ali pelos Conselhos Locais de Educação, e não pelo Govêrno, havendo, por isso mesmo, boa vontade extrema para seu pagamento, dada a consciência da necessidade de utilidade da educação, que prevalece naquele país. Podem, assim, crescer na proporção devida, para manutenção efetiva do sistema de escolas necessário.

Entre nós, a Constituição preferiu o regime de percentagens, determinando que 10% da tributação federal, 20% da estadual e 20% da municipal sejam aplicados na educação. Mas a despeito do dispositivo constitucional referente à aplicação de 10% da receita tributária federal e 20% das receitas tributárias estaduais e municipais nos serviços educativos oficiais, forçoso é reconhecer que a nação, com a utilização que vem fazendo dos recursos assim auferidos não alcançou ainda os meios de estender a educação a todos, segundo dispõe essa mesma Constituição.

Impõe-se-nos (e já não é sem tempo) o exame acurado da questão e um fundamentado plano, realístico, de aplicação, nas bases que a Constituição de 1946 estabeleceu, como previsão e provisão de inegável descortino. Impõe-se-nos, portanto, verificar se a manipulação mais inteligente dos recursos constitucionais básicos não nos poderia levar a um plano crescente de desenvolvimento escolar, capaz de estender a educação a todos e prover condições para seu gradual e constante aperfeiçoamento.

Outro não é o objetivo do que alinhei para vos dizer, no intuito, repito, de provocar debate, que mais ainda focalize e esclareça o problema que a todos nós desafia, tendo em vista que as três órbitas de govêrno se articulem e se coordenem no empreendimento vital, que é o da escola pública brasileira, e não se tripliquem, com desperdício de dinheiro e outros lamentáveis desperdícios.

* * *

Focalizados até aqui os delineamentos preliminares e mais gerais do problema, com sumários elementos de análise demográfica, estatística e comparativa, subentendidos os econômicos e sociais (subentendidos porque óbvio) e referências à deliminação constitucional dos recursos previstos em percentagens de receitas da União, dos Estados e dos Municípios, cremos que poderemos recapitular e passar a outros delineamentos, mais específicos, que formulamos como postulados numerados, embora ainda esclarecedores ou iluminativos do que virá a constituir um ante-projeto formal de plano concreto ou definitivo, para convênios entre os vários poderes públicos entre si e a êles correspondentes.

1. Declara a Constituição Brasileira que a educação é um direito de todos.

Para ser atendido êsse direito, torna-se indispensável a manutenção de um sistema de escolas públicas e gratuitas, para tôda a população, que ofereça o mínimo de educação reputado necessário para a vida normal do brasileiro.

2. Êsse "mínimo" está condicionado pelo desenvolvimento brasileiro e pelos recursos disponíveis da nação para a educação.

O desenvolvimento brasileiro impõe a escola primária de cinco anos para tôda a população urbana e, para a população rural, uma modalidade quiçá e provisòriamente menos longa de educação fundamental. Além disso, cumpre aos poderes públicos promover a educação pós-primária e a superior para certo número de alunos aptos e sem recursos para custear a sua educação mais prolongada, além da obrigatória gratuita.

3. A manutenção de um sistema público e gratuito de escolas em tôda a nação representa um considerável esfôrço econômico, não se podendo conceder, portanto, nenhum disperdício, qualquer gasto supérfluo ou evitável em empreendimento de tal natureza e magnitude.

A experiência dos países mais bem sucedidos nesse empreendimento tem consistido em confiar aos poderes locais a manutenção das escolas, auxiliando-os com subsídios oriundos de outras ordens governamentais.

4. Temos, presentemente, cêrca de 19 milhões de população urbana e 33 milhões de população rural. Para os primeiros, será indispensável um sistema escolar de cinco anos, que atenderá a cêrca de quatro milhões de crianças, e para os segundos a educação menos extensa, talvez, ou de três anos, no mínimo, deverá atender a outros quatro milhões de crianças, pelo menos ou aproximadamente.

Um tal empreendimento exigirá: um exército de 130 000 professôres, no mínimo, para as escolas urbanas, outros 130 000 para as escolas rurais; uma rêde de prédios com 260 000 salas de aulas e com equipamento e material didático e comum para oito milhões de alunos. Admitido o custo mínimo por aluno de 600 cruzeiros por ano, teríamos que a nação precisaria despender 4 bilhões e oitocentos milhões de cruzeiros para o exclusivo custeio das suas escolas, primárias ou elementares, de 5 e de 3 anos mínimos fundamentais de currículo, sem levar em conta as necessidades de inversão de capital e tôdas as demais despesas de um modesto sistema escolar.

5. Trata-se, assim, de emprêsa que não pode ser atacada globalmente, mas pela unidade local (na órbita do município), em tôrno dela conjungando-se os demais esforços, estaduais e federais, e que se ajuste a escola às condições econômicas locais - contingência a que não há fugir na realidade - e que os recursos das demais ordens governamentais se acrescentem a êsses recursos, e não os dupliquem ou não os desmoralizem dado o maior vulto dos seus montantes.

O empreendimento se desenvolverá gradualmente à medida que as condições locais venham a tornar possível a sua expansão e melhoramento, numa situação real e não artificialmente imposta. Com efeito, aquêles números gerais acima indicados sofrem as alterações decorrentes das condições diversas de desenvolvimento, exigindo aqui mais e ali menos, já na zona urbana, devido aos diferentes níveis de progresso das cidades, já nas zonas rurais, devido à dispersão da população. Importa muito mais criar um serviço que tenha em si mesmo as possibilidades de desenvolvimento progressivo do que, de jato, dar escolas perfeitas e acabadas, como simples amostras não estendidas, equitativamente, a tôda a população brasileira.

6. Presentemente, despende a nação cêrca de dois bilhões e quatrocentos milhões de cruzeiros na educação primária, o que não deixa de ser substancial.

Pretendemos conseguir a aplicação mais adequada dêstes recursos pela instalação de um mecanismo de financiamento de nosso sistema escolar capaz de lhe dar fôrças para um desenvolvimento automático e progressivo.

7. As despesas da educação representam o custo da manutenção das escolas e as inversões em prédios e respectivo aparelhamento permanente.

Teríamos progressos a fazer na aplicação dos recursos existentes, tanto em um campo quanto em outro.

8. Antes do mais, caberia transformar tais recursos em fundos de educação, com administração especial e autônoma.

Esta providência permitiria tratar êsses recursos como o patrimônio das crianças do país, a ser administrado para o seu máximo proveito e dentro de regras especiais, que tornassem difícil, senão impossível, qualquer desvio dos seus estritos objetivos educacionais.

9. O Fundo Federal de Educação, representado pelos 10% da receita tributária federal, constituiria a verba global mínima ou irredutível do Ministério da Educação e Cultura, que se veria, dêste modo, transformado em sua estrutura, para poder atingir os seus objetivos com a flexibilidade e a autonomia necessárias.

Competindo-lhe administrar êsse fundo, destinado a custear o programa federal de educação, não poderia o dito Ministério ter a organização convencional dos demais, mas a de um órgão autônomo, com suas normas próprias e uma grande amplitude de ação no cumprimento dos seus fins de velar pela melhor formação nacional possível.

10. Os Estados e os Municípios, por sua vez, também passariam a administrar os seus recursos - 20% de suas receitas tributárias - como fundos respectivamente estaduais e municipais de educação.

Assim, em cada Estado, como em cada município, se transformariam os respectivos órgãos de educação em órgãos autônomos, com orçamentos próprios, mínima organização técnica adequada e autonomia administrativa, para gerir as partes correspondentes da renda e patrimônio do educando brasileiro.

11. Estabelecida, por êsse conceito de Fundo de Educação, a necessária autonomia de todos os recursos, - como iríamos multiplicá-los para levar avante o plano do desenvolvimento crescente das escolas?

- Primeiro, separando-os em verbas de investimento e verbas de custeio, podendo estas representar as despesas com empréstimos escolares. Os orçamentos da educação, elaborados pelos órgãos autônomos, previriam uma parcela dos recursos dos respectivos fundos para empréstimos escolares de modalidades diversas, inclusive os de capitalização e, dêste modo, se multiplicariam as possibilidades de inversão e constituição dos seus patrimônios de prédios e equipamentos.

- Segundo, pelo ajustamento do custo das escolas às condições dos recursos locais. As escolas seriam municipais e o seu custeio se fundaria nos recursos dos fundos municipais, ajudados pelos auxílios estaduais e federal.

12. Duas idéias estariam contidas nessa sugestão de fundos de educação ou fundos escolares: a da integração dos recursos de origem federal, estadual e municipal em uma só obra conjunta de educação e a do ajustamento das escolas às condições econômicas locais. Tanto uma quanto outra concorreria para a maior produtividade dos recursos existentes.

Com efeito, as escolas passariam a ser locais e, dêsse modo, a ser mantidas em condições desiguais, segundo os recursos dos municípios, mas, por isso mesmo, a serem mais numerosas pois umas custariam menos do que outras. O Estado, por sua vez, não constituiria outro sistema escolar mais caro e paralelo ao municipal, mas ajudaria o município com um auxílio por aluno matriculado, destinado a elevar o nível do seu ensino. E o govêrno federal, do mesmo modo, acorreria ainda em auxílio do município, dando-lhe algo que nem o Estado nem êle próprio poderia dar com os seus exclusivos recursos.

13. Já se pode ver, por aí, que ocorreria uma verdadeira multiplicação dos atuais recursos, constitucionalmente providos à educação nacional, já pelo ajustamento básico das escolas às condições econômicas de cada município, já pela utilização da idéia de empréstimo, que poderia ser aplicada em conjunto com financiamentos garantidos pelos três poderes, federal, estadual e municipal.

14. Necessário se faz, entretanto, indicar desde logo o funcionamento básico do sistema municipal de ensino. Cada município teria, como vimos, seu fundo escolar municipal. Êste fundo seria dividido pelo número de crianças escolarizáveis do mesmo município. As escolas deveriam ser mantidas dentro dessa quota individual por aluno; isto é, o ensino deveria custar, por aluno, o que representasse a aludida quota. Essa quota-aluno responderia, pois, pelos salários ou vencimentos dos professôres e pessoal de ensino, pelos prédios e sua conservação, pelo material didático, pelas atividades extra-classe e pelas despesas de empréstimo ou patrimoniais, na proporção que fôsse estimada mais adequada.

Tal seria o soalho do sistema escolar municipal. O teto seria o que pudesse ser atingido com os "auxílios por aluno" do Estado e da União. Êstes últimos auxílios concedidos uniformemente a tôdas as crianças do Estado e do Brasil, conforme o caso, atuariam como fôrças uniformizantes ou equalizadoras do sistema, de todo o sistema escolar nacional.

15. Criado, em cada município, nessas bases, o sistema de escolas primárias necessário para as suas crianças, com os recursos municipais, o Estado partiria em seu auxílio por três meios: formando-lhe o professor e, dêste modo, assegurando a sua equivalência com o sistema dos outros municípios; dando-lhe assistência técnica e orientação, por meio de um corpo de inspetores escolares, com a missão antes de guiar e aconselhar que a de fiscalizar, e concedendo-lhes o "auxílio financeiro" por aluno destinado a permitir melhorar a qualidade do ensino e dar sentido real e eficácia à sua ação. Por último, o govêrno federal atuaria sôbre êsses serviços estaduais, com um mecanismo de assistência técnica e de auxílios financeiros destinado a melhorar e sistematizar a ação dos Estados, assim como a dos Estados já melhora e sistematiza a ação dos municípios.

16. Pode-se ver que todo o país se estaria empenhando em um esfôrço comum pela escola fundamental brasileira, que, administrada pelo município será em verdade, simultaneamente, municipal, estadual e federal, pois todos os três governos estariam a cooperar no seu desenvolvimento.

17. O sistema pode e deve expandir-se, gradualmente, à escola secundária e à superior, sempre, entretanto, conjugados os esforços comuns das três órbitas de govêrno.

A escola secundária, que já vem entrando nos hábitos da administração municipal, poderia, de logo, ficar com o município, e as superiores, organizadas sempre com uma larga autonomia, ficariam a cargo dos Estados e da União. A esta caberia, ainda, a obrigação de criar e manter centros superiores de estudos de educação e a preparação ou o aperfeiçoamento de pessoal de alto nível para os Estados.

O ensino particular, sempre que organizado com o espírito de cooperar com o poder público, isto é, em empreendimentos sem intuito de lucro e com estatutos que não discriminem a sua clientela de alunos, seria considerado parte integrante do sistema público de ensino e auxiliado por um sistema de bôlsas para alunos desprovidos de recursos.

18. A máquina administrativa dêsse amplo, complexo e harmônico sistema compreenderia o Conselho Escolar Municipal, com o seu respectivo órgão executivo; o Conselho Estadual de Educação e Cultura, com um Departamento Estadual de Educação e Cultura, como órgão executivo; e o Ministério da Educação e Cultura organizado fundamentalmente sob a forma de um Conselho, com os respectivos órgãos executivos.

Os conselhos seriam, precìpuamente, conselhos de administração dos fundos de educação, cabendo-lhes funções semi-legislativas, como a de aprovar os orçamentos e planos de trabalho e a de nomear os chefes dos respectivos órgãos executivos, com exceção do federal, em que o Ministro de Estado seria o presidente do Conselho, com os poderes de propor ou nomear diretores dos órgãos de estudo e execução.

19. Os princípios de aplicação dos fundos de educação seriam os de sua melhor e mais equitativa distribuição pelos seus beneficiários - que são as crianças, os adolescentes e os estudantes de todos os níveis e ramos de ensino.

Sendo o ensino primário gratuito e obrigatório, a criança de 6 a 12 anos é a mais geral e a primeira beneficiária do fundo, devendo os recursos do fundo municipal serem divididos pelo seu número no município. A restrição admissível, por contingência, seria a de considerar sòmente a criança escolarizável, isto é, a criança residente em núcleos de povoação que possibilitem a criação de uma escola isolada.

20. Achada a quota municipal atribuída a cada aluno, o orçamento do ensino seria feito de modo que suas despesas não ultrapassassem aquela quota, criando-se, assim, um limite para os vencimentos de pessoal e para as despesas de conservação e material.

A quota-auxílio do Estado, por aluno, seria um acréscimo ao orçamento municipal, que iria permitir um melhoramento proporcional de cada item do orçamento municipal.

Exemplificando: o município Z tem Y de recursos globais e o seu número de crianças escolarizáveis é X. Logo, dispõe por criança de . A sua escola será mantida por tantas vêzes quantos alunos tiver de matricular. Imaginemos um município com Cr$ 1.000.000,00 de renda tributária. O seu fundo de educação será de Cr$ 200.000,00 e a sua população escolarizável é, digamos, de 1.000 crianças. A cada criança corresponderão 200 cruzeiros para a sua educação. Uma escola isolada, de uma só classe, com 40 alunos de matrícula, deverá ser mantida com a despesa de Cr$ 8.000 anuais. Êstes oito mil cruzeiros deverão responder pelos vencimentos do professor, administração do ensino, prédio e sua conservação, material didático e assistência ao escolar, em percentagens devidamente estabelecidas. Admitamos que a despesa de pessoal não possa exceder de 60%, a de manutenção material de 30% e a de investimento de 10%. Teríamos: 4.800 cruzeiros para o pessoal, 2 400 para material e 800 cruzeiros para inversão, por meio de empréstimos escolares, nos prédios escolares. Dos 60% de pessoal, deduzamos que até o máximo de 70% poderia caber ao professor e os restantes 30% à administração e pessoal auxiliar. A professôra, portanto, nesse município não poderia perceber do fundo municipal mais de 3 360 cruzeiros anuais e a administração geral e o pessoal auxiliar 1 440 cruzeiros anuais. Essa escola teria mais 2 400 cruzeiros anuais para material e lhe corresponderiam 800 cruzeiros para o fundo de investimento.

A quota-auxílio do Estado, por aluno, viria melhorar êsse soalho e promover o enriquecimento de todos os fatôres da escola, dando, ao mesmo tempo, ao Estado, perfeitas condições de contrôle dêsse progresso.

21. A quota-auxílio do Estado seria achada depois de abatidas do seu Fundo Estadual de Educação as despesas gerais, que iriam competir ao Estado, com a preparação do professorado, a supervisão e assistência técnica aos sistemas municipais e a criação de órgãos de cultura em geral e de escolas a seu cargo. O teto para tais despesas devia ser fixado em certa percentagem do fundo estadual de educação que, ao meu ver, não deverá exceder de 30% a 40% do Fundo.

Restariam, assim, 60% a 70% do Fundo Estadual para ser distribuído pelos municípios, na proporção de suas crianças matriculadas em escolas primárias e secundárias sempre que também estas existissem. Digamos que o município lembrado se encontra em um Estado em que a quota-auxílio, assim calculada por crianças, forneça outros 200 cruzeiros por criança matriculada. Teremos cada classe com mais outros 8 000 cruzeiros para custeá-la. O salário do professor será aumentado de mais 3 360 cruzeiros, os seus recursos materiais de mais 2 400 cruzeiros e o fundo de investimento do município aumentado em relação a essa escola de mais 800 cruzeiros.

* * *

Embora julguemos pouco êsse lastro ou fundamento geral, o importante é notar que se criaria um sistema de progresso permanente e de possibilidade de previsões e planejamentos inteligentemente progressivos, em que todos os itens da despesa escolar estariam acautelados. E isso concluímos sem levar mais adiante as correlações e etapas da geral coordenação de todo o dinâmico sistema planejado.

A articulação entre os três fundos, mediante convênios e entendimentos, poderia permitir ações conjuntas para a construção de prédios, a compra de equipamento e o fornecimento a tempo de material de consumo.

A superioridade e independência dos recursos do Estado permitiria, por outro lado, a ascendência do ponto de vista mais desenvolvido dos Estados nesses esforços cooperativos, uma vez que fôsse estabelecido nos planos para cada um o cumprimento por parte dos Municípios de determinadas condições para a recepção do auxílio do Estado. E a ação da União Federal, partindo ainda de mais alto, viria ajuntar a sua experiência à do Estado, no esfôrço conjunto de elevar a educação, fôsse a de nível primário, secundário ou superior, a cargo dos Municípios ou dos Estados, - mediante auxílio direto ou instituições de demonstração, ou a preparação em alto nível de pessoal especializado para a supervisão de todo o sistema nacional de educação.

Sem querer examinar, aqui, tôdas as virtualidades do plano, aqui delineado e introdutòriamente esboçado, permiti-me, entretanto, que saliente quanto de unidade orgânica e não imposta se poderia obter com essa orientação, entre as três áreas de govêrno da República, a federal, a estadual e a municipal. A despeito da administração de ensino ficar confiada a cêrca de 2 000 municípios e 20 Estados, o plano seria um só. E nêle os Municípios, os Estados e a União estariam conjunta e solidàriamente empenhados em esforços que mutùamente se enriqueceriam. Presentemente, tais esforços, paralelos e por vêzes dispersados ou dispersivos, quando não antagônicos, no mínimo se duplicam estèrilmente e até se prejudicam ou se anulam.

Não estamos em condições de retardar êste ou outro plano equivalente, pelo qual possamos, não sòmente estender a educação a tôdas as crianças que dela precisem e que a estão exigindo, mas ensejar aquêle mínimo de condições adequadas, por meio do qual a escola pública venha a constituir a verdadeira solução do problema de educação e não ela própria mais um problema para a nação.

Euclides da Cunha afirmava que a nossa alternativa era "Progredir ou perecer". Hoje, nossa alternativa é "Progredir e perecer" ou "Progredir e ... não perecer", o que só conseguiremos se nos dispusermos a preparar e planejar as etapas sucessivas do nosso progresso espontâneo e acelerado. Do contrário o próprio progresso, desordenado e anárquico, nos fará submergir no caos.

| Scientific Production | Technical & Administrative Production | Literature about the Educator |

| Journal articles | Chapter of book | Speeches | Pamphlets |
| Books | Prefaces and Postfaces | Text in book flaps |
| Unpublished papers | Conference papers | Translations |