TEIXEIRA, Anísio. O alto sertão da Bahia. Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia. Salvador, v.52, 1926. p.295-309.

ALTO SERTÃO DA BAHIA

COMMUNICAÇÃO
feita no dia 14 de Julho ao Instituto Geográfico e
Historico pelo Dr. Anisio Spinola Teixeira
1916

Dr. Theodoro Sampaio insistiu commigo para fixar, aqui, em uma communicação ao Instituto, o minuto sertanejo que tive occasião de viver na minha ultima excursão ao centro do Estado.

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Quando parti para o interior, de onde estava afastado havia longos mezes, no dia 29 de março, levava esse contentamento natural de revêr os velhos campos conhecidos e as velhas estradas e a velha hospitalidade sertaneja.

Aguardava-me, logo a entrada do alto sertão, uma primeira surpreza.

As chuvas, nessa zona sertaneja, raramente se prolongam pela segunda quinzena de Março.

Habitualmente, nessa época opera-se a transição entre as duas unicas estações annuaes – a das chuvas e a das seccas - por um regime de neblinas, que espalha, por todo sertão, uma côr uniforme de humidade e de tristeza.

Esperava essa paysagem.

No entanto, foi uma terra de janeiro que tive diante dos olhos aturdidos.

Os aguaceiros diluviaes ainda a salteavam, communicando-lhe o aspecto desabrido e tumultuario que esse regime de transposições violentas imprime ao nosso paiz tropical.

As aguas e a vegetação se encarregavam de fazer e desfazer scenarios, assistindo-se a um verdadeiro furor de empresario allucinado.

Pequenos ribeirões ganhavam vulto inesperado, lagôas resurgiam do sólo imprevistas, estradas hontem transitaveis, desfaziam-se em tremedaes terriveis, emfim todo um impeto ephemero da natureza, imprimia ao scenario essa physionomia transitoria de forças em ensaio.

Tudo isto, porém, emprestava ao panorama uma seducção quasi dramatica.

Tinha-se a impressão de uma terra em festa.

A nossa viagem, de longos nove dias atravez do sertão, desse sertão em flor, cortado, de espaço a espaço, pela musica de um corrego apressado, ou pelo estrondo de uma corrente impetuosa, ou, abrindo-se de improviso, na clareira alvacenta de uma lagôa – foi eintretanto, máo grado o encanto e o prazer dos meus olhos contentes de sertanejo, penosissima para a minha observação.

Por toda parte, esse esplendor constituia um scenario de ironia para o habitante daquellas terras.

As chuvas demasiadas tinham-lhe devastado grande parte da lavoura; a colheita se ia tornando difficil, sinão impossível; o feijão grelava nas roças; as reprezas haviam sido arrastadas pelas aguas impetuosas e com ella os arrozaes em pendão; – emfim todo o trabalho estava com os resultados prejudicados, ou na imminencia disto.

A exuberancia da natureza dissipada feria o pobre homem mal armado para a lucta.

Vencido e abatido pela grandeza desabrida da terra, o homem era a nota desolada dessa paysagem magnifica.

Quando desciamos á porta de sua pequenina casa de rustico e naquelle intervallo do café ou do copo dagua das bôas vindas, indagavamos como iam as cousas..., era sempre o mesmo desfiar dos maleficios do regime excepcional e excessivo das chuvas.

Mas a sua palavra não era queixosa, nem triste. Uma resignação quasi contente nos olhos e no espirito. Por vezes até jovial, sublinhava a ironia de soffrer da distribuição irregular e excessiva já do sol, já da agua: annos de sol, annos de chuva, e a mesma falta da fartura rara com que Deus os premeia de tempos a tempos.

A sua vida habituada por um longo tirocinio de privações, á renuncia e á sobriedade continuava, assim, a ser a vida de um forte e de um atormentado, que eu sempre conhecera.

Cada vez se sente mais só e mais resignadamente vencido no seu isolamento.

A minha impressão, talvez, devido á minha alongada ausencia, era de grande desolação pelo estado em que ia encontrar essa nobre e abandonada sub-raça de caboclos que labuta nos sertãos.

Não era só o primitivo e o rudimentar da vida, que nos poderia dar até um acre sabor de pureza e de saude.

Era qualquer cousa, que já sentia um pouco a decadencia, que magoava as nossas observações.

E esforçamos por nos explicar esse phenomeno de regresso, que nos chocou profundamente.

Se, no famoso conceito, que por ser demasiado dynamico não é menos actualmente verdadeiro, civilisar é communicar, a terra sertaneja segregada dos meios modernos, naturalmente conserva, hoje, ainda um feitio muito diverso do que caracteriza os centros civilizados.

Mas, nem por isto deixaram de existir, alli, as componentes de uma civilização que seria sui-generis, para o nosso criterio moderno, mas que se affirmava muito expressiva.

Nessa gente simples e dada a um trabalho simples, as características de moralidade, de respeito aos sentimentos de familia e de prosperidade foram sempre desenvolvidas e profundas.

Por outro lado o sentimento de justiça não adstricto á formalistica moderna, mas generalizado e verdadeiro dominava essa sociedade primitiva e laboriosa.

Entregue aos labores quotidianos e difficeis de lavoura ou industria, o sertanejo era um elemento de equilibrio e de ordem mais ou menos solido.

Das instituições que lhe pretendiam organisar o quadro da vida, elle não aspirava sinão, o que nem sempre acontecia, que ellas lhe não estorvassem o modo singelo e unico de trabalho.

Esse trabalho tinha as suas inclemencias desmesuradas na terra brava e hostil sobre que se projectava; e tudo o que obrigava o sertanejo a desviar a sua attenção dessa labuta ingrata pela subsistencia o atemorisava.

Consciente da precaridade de suas condições intellectuaes, esse temor crescia facilmente até a supertição.

Dahi a sua falta de lucidez no julgamento de certas situações e o seu caracter profundamente pacifico e timido.

Elle receia os choques, as luctas, as convulsões de que não vê a immediata utilidade e cujas consequencias não é capaz de prevêr com exactidão.

E ainda esse é o motivo da sua docilidade congenita em soffrer os maiores desatinos, antes de acceitar a resistencia e o seu desejo e a sua necessidade do chefe, que representa para elles, como os antigos chefes patriarchaes, o guia, o juiz e o administrador.

Entregue a esse chefe, de quem procura ter a protecção e a força nos menores actos de usa vida, elle o acompanha com docilidade e bondade.

Quando esse guia de clan o quizer procurar para a lucta e para a resistencia, recusa-se quasi sempre. Não é feito para isto.

Quer paz, quer tranquillidade, quer segurança para o seu rustico labôr. A guerra, com seu estrépito, sua insegurança, sua aventura, não o fascina.

O chefe que desejar elementos para uma exteriorização mais aguerrida do seu poder, tem que fazer um recrutamento, entre os elementos derrotados do trabalho perseverante e longo, entre aquelles que um incidente infeliz afastou, pelo estigma de uma condemnação raramento cumprida, do convivio legal da sociedade, ou entre os temperamentos desviados desse typo de honestidade e operosidade sertanejas.

Então, forma-se um verdadeiro corpo bronco de exercito, que não tem quartel, nem instrucção militares, mas que está sempre prompto para ser mobilizado, para a aventura da briga e os acasos interessantes da lucta.

No fundo, porém, o que ha, ainda, é uma apparelhagem apropriada à organização social sertaneja.

A lucta pode descair para a injustiça e a desordem, mas o seu fito remoto e constante é, sempre, a defêsa de interesses rezoaveis e legitimos.

Por isto, é que, o problema da legalidade nos sertões é um problema sociologico e não policial. Por isto, é que os Governos nem sempre têm acertado nas suas investidas bellicas contra o sertão.

Existem elementos de organização social que não devem ser combatidos, mas, utilizados.

A remessa de contingentes armados para implantar a ordem no sertão é uma pilheria perigosa e quasi sempre fecunda em desastres. Esses implantadores da legalidade a tiros de fuzil, implantam-n,a , às vezes, ruidosamente, allucinadamente, mas, para fazer crescer, mais tarde, cheio de novos impetos e de razões novas o calumniado banditismo sertanejo.

Ora, o que se dá, actualmente é uma approximação mais efficaz do littoral semi-civilisado e do sertão, enfraquecendo esta união a solida vida sertaneja.

Não pelo juizo, nem pela intelligencia dos nossos estadistas, mas pela acção do tempo e pelo progresso real embora lento do sertão, essas organizações locaes se estão enfraquecendo sensivelmente.

A cidade central está cada vez mais perto da sociedade sertaneja.

A sua organização de poder pessoal e de mandonismo honesto, mas, arbritrario, cada vez se vae tornando mais difficil de ser exercitada.

Aquellas incursões policiaes, e a acção constante e constitucional de promotores e juizes vão minando profundamente a autoridade do chefe sertanejo.

Está, assim, o sertão no risco de perder a sua possante e efficaz organização de autoridade, para ganhar a apparelhagem judiciaria e constitucional da republica nem sempre efficiente e quasi sempre desadaptada e perigosa.

O facto que observamos filia-se, pelo menos em parte, a essa circumstancia. O sertão atravessa um periodo transicional.

Essa transição poderia ser benefica, se fosse guiada com tacto, com habilidade, com intelligencia.

É o que se não tem verificado, é o que as nossas proprias instituições demasiado hirtas, demasiado civilizadas, estão difficultando com serio perigo para a ordem sertaneja e para a sociedade sertaneja.

Não se deve enfraquecer a autoridade do chefe local. Deve-se guial-o, oriental-o, utilizal-o. Elle é a força congregadora natural dessa sociedade dispersa, debil, mas honesta do sertão. É a protecção confiante e natural do homem do interior. Reduzir-lhe a acção é destruir os laços de autoridade e de cohesão da sociedade sertaneja, entregando-a de mãos e pés atados, ao poder impessoal vaporoso, e, sem receio ao paradoxo, anarchico da Lei e do Governo.

Esses devem fortalecer o chefe, ter nelle o seu instrumento, mais efficiente, mais adaptado, mais profundamente formador da mentalidade legal sertaneja.

Só assim não serão temidos, não serão tidos em suspeição, não serão odiados.

O chefe sertanejo intelligente e honesto é mais civilizador do que mil e um promotores eivados de um fetichismo academico pela lei e pelo seu formalismo.

Elle é mais capaz de a adaptar, de a fazer amada e comprehendida do seu povo do que o juiz que quizer transportar para a cidadesinha humilde do interior o espirito impessoal e adiantado de um juiz da Capital.

A acção do juiz poderá ser constructora e civilizadora, comtanto que elle faça uso de sua autoridade pessoal, que irradie a sua acção para fóra dos processos e dos autos inuteis e insignificantes, que seja realmente o embaixador sincero e intelligente da Lei.

Quando o juiz comprehender que as suas funcções são condicionadas pela terra e pelo meio onde vive, e que elle deve ser, tanto quanto possivel, juiz de paz, teremos o problema da implantação definitiva da legalidade nos sertões em caminho de solução.

A situação, no presente momento, é a de um chefe local cujo poder pessoal se vae enfraquecendo, a custa do poder organizado central.

Cada vez o chefe precisa mais desse governo e cada vez o governo póde ou quer menos auxiliar esse chefe.

Existe, pois, no sertão o que se poderia chamar uma crise de autoridade.

Não me respondam com alguns chefes sertanejos que apparentam grande força e invencibilidade.

É profundamente illusorio. Precisam, como os mais chefes, da força do governo.

O esforço com que elles querem fazer suppôr que se acham em uma rara excepção, já por si demonstra a agonia do antigo e muitas vezes benefico poder pessoal do chefe local.

Ao lado dessa crise de autoridade que é uma crise social e que me parece, é o que communica ao sertão o seu aspecto de insegurança e possivel decadencia, devemos citar uma circumstancia filha, talvez, desse ultimo facto.

A sociedade sertaneja se empobrece visivelmente dos seus homens mais representativos.

Hoje, ninguem quer morar; ninguem mora no sertão.

Aquellas grandes e fecundas influencias sertanejas vão desapparecendo a olhos vistos.

Pela approximação inefficiente e talvez perigosa do poder central ou pelo afastamento das figuras, que seriam as influencias naturaes da terra e do meio, o que é certo é que a civilização sertaneja a que me referia vae perdendo as suas côres, as suas virtudes e a sua solidez.

Das minhas longas conversas com os velhos sertanejos obtive sempre impressões identicas ás que vos relato.

Vae, pela grande terra que elles tanto amam, um pouco da inquietação barbara que sacóde hoje todo o mundo e, aqui e alli, já se tem nitido, dominador, o sentimento do que se vae perdendo de legitimos valôres civilizadores, em troca de certos progressos demasiado apparentes, para illudir os olhos sinceros e nobres daquelles bons elementos sertanejos.

Essas, as condições em que vive e progride o sertão.

Esses os quadros oscillantes em que se fecha a sua actividade social e privada.

A terra – rica mas hostil; a sociedade – vacillante na sua organização definitiva.

Foi, nesse ambiente de ordem em formação ou melhor em vacillação que tive de presenciar o attentado mais inesperado à nossa nacionalidade de que ha noticia, com a incursão em pé e estado de guerra de uma columna de mais de mil soldados no sertão da Bahia.

A aventura militar desse joven capitão de artilheria Luiz Prestes veiu lançar, no seio dessa sociedade pacata e fragil, o mais profundo sobresalto e a mais perturbadora das confusões e feril-a de morte no seu trabalho e prosperidade presentes, e na economia sagrada e difficil de sua tenaz laboriosidade e nos alicerces oscillantes de sua tenaz laboriosidade e nos alicerces oscillantes de sua organização social.

*
* *

O que foi essa incursão?

Felizmente já não faltam relatos e testemunhas e entrevistas para nos dizer o que tem ella sido. Eu direi, rapidamente, o seu trajecto na zona do alto sertão da Bahia, que foi egualmente a percorrida por mim e citarei um ou outro facto para me permittir a procedencia de certas considerações.

No dia 4 de Junho, data da minha chegada á cidade de Caiteté, correram pela localidade rumôres assustadiços de proximidade de revoltosos. Constava que os mesmos se achavam em Macahubas.

Inexacta a noticia, reatou-se a antiga tranquillidade e estava eu já entregue aos trabalhos que me levavam ao sertão, quando a chegada espavorida de um vendedor ambulante no sertão vindo da cidade do Livramento distante de Caiteté 18 leguas, deu noticia da incursão dos rebeldes nessa cidade.

Foi o signal de alarme e de panico.

Por toda a noite, a população, em grande sobresalto abalou, desenganadamente para fóra da cidade.

Admiravelmente identificadas com a catinga, quando clareou o dia quatro mil pessôas haviam desapparecido não se sabia para onde.

Debalde se procurava estabelecer um pouco de bom senso. Os rebeldes vinham precedidos de uma fama tal que ninguem comprehendia possibilidade de não fugir.

Não vos posso descrever as condições dessa retirada brusca e precipitada, dentro da noite.

Carros de bois surgiam como por encanto, nas ruas, mas para assumirem proporções de vehiculos de luxo que poucos poderiam pagar.

A debandada se fazia a pé, pela noite a dentro, debaixo da inclemencia de um inverno sem precedentes que ainda perdurava.

As poucas familias que tentaram conservar-se na cidade, retiravam-se um dia depois, pela falta absoluta de subsistencia no perimetro urbano.

Toda a vida se paralysara.

Prestes, a 18 legoas de distancia, bloqueava, pelo puro prestigio do terror, a pequena cidade sertaneja.

Os homens que ficaram, auxiliados pelo Dr. Mario Teixeira, organizaram, então, uma pequena resistencia armada.

Retiradas as familias, isto se tornou mais facil e por 5 a 6 dias a cidade viveu uma vida de quartel e de trincheiras.

Afinal a columna rebelde, como eu vos vou mostrar, passou ao lado da cidade.

Com effeito, vêde o percurso da columna de Prestes.

(Esse percurso foi indicado no mappa da região projectado no écran do Instituto).

De Catolês a Bom Jesus do Rio de Contas, dahi a M. do R. de Contas, a Filla Velha, a Tamboril, a Lag. do Thimotheo, Lag. Real, S. Sebastião, Rio do Antonio, Caculé, Gamelleira, Umburanas, Urandy, Jacaracy, Condeúba, Agua Quente, oeste de Tremedal, e volta por S. João do Alipio, Gamelleira do Machado, Porto Santo Antonio, Laços, Carahybas, Ituassú, Barra da Estiva, Mucugê etc.

Quem aprecia, no mappa essa linha traçada pelos rebeldes percebe que não houve ahi outra preoccupação que a de acompanhar a linha divisoria das aguas, passando com segurança pelas cabeceiras dos rios.

Dessa sorte nada interrompeu, com efficiencia, a sua marcha. As tropas legaes foram, desde o nordeste, forçadas a uma perseguição que, de todo ponto fracassou.

Só as difficuldades physicas do caminho, o inverno, neste anno, tão prodigiosamente prolongado, que o sertão, se nunca esteve tão esplendente, tambem nunca esteve tão intransitavel, com os rios transbordando, as estradas destruidas, os atoleiros transformados em verdadeiros tremedaes – poderia deter o galope das tropas rebeldes.

Luiz Prestes tudo evitou, ganhando as nascentes dos rios e multiplicando furiosamente os animaes de sua tropa.

Essa corrida, sem sentido, através do Estado, de uma horda de rebeldes, que não recua deante de nenhum meio para a consecução dos seus fins immediatos, pilhando, roubando, saqueando, mesmo incendiando e assassinando – além dos incalculaveis prejuizos materiaes, espalhou, pela terra sertaneja, aquella onda de pavor quasi supersticioso, de que falamos.

Por toda parte, reinou o sobresalto e a intranquillidade. A vida economica paralyzou-se. Toda sorte de trabalho ficou mais ou menos interrompido. Quem conhece, de perto, a psychologia dos factos sertanejos, comprehende facilmente esses resultados extremos.

Os movimentos, no sertão, vibram como se fossem em vasos fechados. As repercussões são longas e profundas e custam a desapparecer.

E esse abalo se prolonga, como na superficie tranquilla de um lago agitado em um unico ponto, num raio de trinta legoas em volta do elemento perturbador que é esse troço de soldados insubordinados, que marcham em ordem de batalha, com columna central e columnas rectaguardas e flancos e que occupam militarmente as cidades e que saqueiam, pilham e assassinam com o desembaraço insolente de soldados victoriosos e barbaros.

Dahi o terror explicavel que tornou cruciante a afflicção sertaneja.

Um positivo que tive opportunidade de enviar a Caculé e que esteve, emprevistamente, entre os rebeldes, em S. Sebastião, homem rustico e simples dizia-me assombrado: – "Seu doutor, elles nem parecem gente. Andam vestidos de vermelho e parecem – teve uma pequena hesitação, – parecem demonios...

É um simples facto que denota como agiam sobre a imaginação dos sertanejos a enscenação militar, o lenço vermelho de alcobaça e os cabellos e barbas crescidos dos rebeldes.

Na minha volta para a Capital em que tive, de novo, o desprazer de quasi encontrar-me com os revoltosos e presenciar as afflicções por elles produzidas, seria longo narrar todos os pequenos incidentes de uma viagem de quasi uma quinzena de dias.

Basta que vos diga que o boato e o terror já compunham as historias e as versões mais inverosimeis e mais inacreditaveis, o que, somente, fazia crescer os motivos da debandada.

Em toda parte encontrei os moradores ausentes e os poucos que persistiam em suas casas, inquietos e assustados, imaginando as confusões mais comicas possiveis.

O sertão vivia uma pagina de edade-media.

A sua organização social e legal precaria soffria o abalo profundo e desorientador que costumava affligir a sociedade medieval quando as guerrilhas entre os senhores a assolavam.

Apenas o contacto rubro com o exercito foi ainda mais terrivel e mais inesperado.

Mil e tantos soldados, na mais allucinada das carreiras, percorreram o sertão de norte a sul e de sul a norte, como um flagello unico e diabolico.

E essa população que desconhece profundamente a lucta politica do littoral e das capitaes, que não é ouvida nos accordos nem arranjos partidarios dos paiz, viu-se de um dia para outro, assolada pela mais inclemente das columnas da desordem, porque alguns militares politicos expulsos dos centros civilisados do paiz, pretenderam refugiar-se no deserto sertanejo, afim de escapar ás justas represalias do Governo.

Fere-nos, assim, a vista, a covardia do procedimento do capitão Prestes, arrastando, pelo sertão, a ultima columna de rebeldes, na qual se amortalham os caprichos mortos do militarismo nacional.

Todo o sertão soffreu e soffre com esse attentado unico, que espalhou pelas suas cidades, suas casas, seus lares e suas familias, todos os flagellos de uma invasão victoriosa militar.

Porque, para os seus effeitos, foi a columna de um exercito victorioso e invasor que percorreu o sertão.

Essa columna espalhou o terrôr e a mais profunda desolação.

Toda a actividade de um povo se suspendeu; abandonaram suas casas, os seus trabalhos, as suas proprias familias. A pequena fortuna accumulada foi roubada. Os fructos presentes do trabalho foram destruidos. A sua confiança que, como vimos, já se ia enfraquecendo nos chefes, que se revelaram impotentes e no Governo sempre tardio e tantas vezes malefico, transformou-se numa especie de desespero sem remedio.

Feriu-se, assim, no coração a vida sertaneja, a sua relativa prosperidade e o seu relativo conforto.

Não ha nisto o menor exaggero.

A chronica está se fazendo ahi, nos jornaes, nos relatos verbaes, nas cartas. Todo o sertão está mais do que abalado, está golpeado nas suas fontes vitaes: destruiu-se o trabalho; pilharam-se as economias.

Que seria preciso mais para ferir profundamente um povo?

Mas, isto não ha de passar sem o protesto vibrante do elemento sensato brasileiro e sem o castigo exemplar aos responsaveis pela criminosa aventura dos rebeldes. E, muito menos, sem o nosso carinho pelo problema sertanejo que ganhou um aspecto doloroso e aflictivo que está a desafiar as nossas observações e as nossas suggestões.

A acção do Juiz no meio da gente simples

Apoiando os conceitos do Dr. Anisio Teixeira, na communicação supra ao Instituto Historico, de referencia aos homens e ás coisas sertanejas, o Dezembargador Pedro Ribeiro, traçou rumo seguro aos juizes do interior, estudando o ambiente afastado onde exerceu, por muito tempo, a judicatura e onde, da influencia dos bons juizes, resultarão os mais salutares effeitos.

Do chefe da magistratura bahiana é a seguinte carta enviada a "A Tarde", dois dias após a conferencia:

"ILLMº SR. REDACTOR D’A TARDE – Acabo de ler no "Diario Official" a communicação feita ao Instituto Historico pelo Dr. Anisio Teixeira, e venho por vosso intermedio dirigir as minhas felicitações ao illustre collega conterraneo pela intuição com que encarou o problema sertanejo, principalmente no que diz respeito á acção do Juiz no meio de gente simples, cujos predicados, para actuarem convenientemente, apenas dependem de uma bôa direcção.

Não tenho agido do modo adverso na superintendendia do serviço judiciario.

Desde que assumi a presidencia do Tribunal tem sido uma de minhas constantes preoccupações chamar a attenção dos Juizes, para o modo pelo qual devem exercitar a sua acção nas comarcas do interior. Em 1924, no discurso inaugural, assim falei aos Juizes.

"Na Monarchia a magistratura foi uma verdadeira civilização dos sertões. Ainda permanece em comarcas do interior a lembrança da acção bemfazeja de magistrados do regimen extincto que de lá sairam sob as bençãos da população sertaneja. Não se limitavam elles a distribuir justiça; identificavam-se com as necessidades das populações, promoviam melhoramentos locaes, e com os seus prudentes conselhos muitas vezes evitavam questões irritantes, sendo que até as lutas politicas não tomavam o caracter odioso que tanto perturbam a vida das localidades. Citarei entre muitas a figura do venerando Juiz Paranhos Montenegro, cujo nome ainda é lembrado com saudades no sertão de S. Francisco, na antiga cidade de Barra do Rio Grande. No regimen actual ha tambem exemplos da influencia benefica de alguns magistrados em comarcas onde a ordem local soffria constantes interrupções, e que voltaram a gozar de toda a tranquillidade pelo prestigio unico de seus juizes.

A justiça bahiana deve portanto tomar a si esta tarefa, mantendo esta tradição honrosa e digna. A figura do juiz, pairando sobre as paixões locaes, garantindo superiormente todos os direitos, auscultando as inclinações para lhes dar direcção conveniente, com este bom senso, que alguem já denominou, a forma suprema do genio, será verdadeiramente providencial.

E a indole do nosso povo muito concorrerá para se conseguir o resultado almejado.

Tenho passado grande parte da minha vida entre as populações do interior, principalmente da zona sertaneja, e conheço bem suas tendencias e inclinações.

Faltando-lhes em extremo os beneficios da instrucção, sem o incentivo dos resultados do trabalho, que ainda não temos devidamente organizado facilmente exploradas por espiritos trefegos em apoio de suas ambições, têm entretanto muito pronunciados os principios de honra, e altivez habitual e os sentimentos religiosos que nunca os abandonam.

Em um campo desta natureza toda bôa semente fructificará.

Aplaine o poder Judiciario o terreno para os melhoramentos que naturalmente se realizarão pela acção dos outros poderes do Estado".

Neste sentido tem continuado a minha acção, chamando sempre a attenção dos Juizes para a missão que lhes está confiada como parte integrante do Governo do Estado.

Não tem sido diversa, graças a perfeita união de vistas entre a presidencia do Tribunal e os seus dignos membros, a feição que temos dado ao habeas-corpus, recurso pelo qual se exerce essencialmente a acção politica do Poder Judiciario, como faz ver o saudoso Aurelino Leal, no seu ultimo trabalho de commentarios à Constituição Brasileira. Por meio de tal recurso vamos corrigindo a acção da justiça da 1a instancia, quando esta, por qualquer desvio, em casos concretos, não se mostra digna do papel que lhe é dado desempenhar, chamando-a ao cumprimento do dever, impondo-lhe as penas legaes.

Com as outras providencias que o Tribunal vae tomando no sentido da maior elevação moral do Poder Judiciario apurada nos concursos para a magistratura vitalicia, e com os quaes continúa a esperar do poder Legislativo estou certo que chegamos a um resultado satisfactorio, quanto a acção dos Juizes no interior do Estado.

Está entretanto na missão dos outros poderes o complemento desta obra. Como diz o Dr. Anisio Teixeira, realmente o sertão se empobrece dos seus homens mais representativos. As antigas e beneficas influencias sertanejas vão desapparecendo. A vida simples já não seduz a nova geração que procura expandir-se em meio mais amplo.

É preciso portanto, ter muito em vista a bôa orientação e prestigio dos elementos novos que ali se vão formando e tomam a iniciativa das direcções locaes, prestigiando-se os chefes sertanejos que se mostrarem mais dignos.

A acção conjuncta destes e dos Juizes devidamente orientados, acredito, fará renascer a confiança nas populações sertanejas neste periodo de transição pelo qual vão passando, prendendo-se á terra por ellas tão amada".

Dr. Pedro Ribeiro

Presidente do Superior Tribunal de Justiça

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