TEIXEIRA, Anísio. A mensagem de Rousseau. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.38, n.88, out./dez. 1962. p.3-5.

A MENSAGEM DE ROUSSEAU

Há dois séculos (1762) editava-se o Émile de Rosseau, que tanta influência exerceria na sociedade moderna do Ocidente. Participando das homenagens comemorativas, a REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS abre êste número dedicando à efeméride suas primeiras páginas.

Rosseau foi um dêsses raros pensadores que à originalidade de pensamento souberam dar a graça da arte. Nada ajuda tanto a perenidade de uma mensagem.

Por isto estamos todos, duzentos anos depois do Émile, a lembrar a contribuição extraordinária de nos haver mostrado quanto depende o homem da educação para a sua formação e vida social. Antes, talvez sòmente Platão, que tanto sôbre êle influiu, sentira de forma tão aguda a dependência da organização da sociedade da educação para a distribuição adequada das várias modalidades da natureza humana. Vinte e dois séculos depois, redescobre Rousseau essa vária natureza humana e, já agora, pode vê-la em sua ilimitada diversidade. Enquanto Platão imaginou a sociedade ideal rìgidamente estratificada nas três classes em que vislumbra distribuir-se a natureza humana, Rousseau lança as bases de uma organização social extremamente livre, dentro da qual pudesse mover-se essa natureza humana múltipla, diversa, individual e até, de certo modo, anti-social.

Ambos, não se esqueça, são reformadores da ordem vigente e não lhes poderemos julgar as contribuições ao pensamento humano sem levar em conta essa circunstância.

A sociedade platônica teria a sua realização dependente do acaso dos filósofos se fazerem reis e a de Rousseau de cada indivíduo poder receber a educação de um princípe. Nenhum dos dois chega efetivamente a mostrar como êstes dois milagres se poderiam concretizar.

O extremo individualismo de Rousseau escapa à pulverização social, implícita em sua concepção da natureza humana, pela integração do individuo na humanidade. A sua sociedade seria uma sociedade universal, livre e progressiva. Mas, como realizá-la? Que instituições, que organizações iriam concretizá-la?

A hostilidade à ordem vigente levava-o a imaginar uma reforma social apenas negativa. Tudo consistiria em reduzir ao mínimo as restrições da organização social. A humanidade do seu sonho sòmente poderia, entretanto, funda-se numa perfeitíssima educação de cada indivíduo.

Como conseguí-la? Quem iria fazê-la? O próprio indivíduo, diriam pouco depois os filósofos individualistas, excluindo a educação dos deveres do Estado. Sendo o indivíduo a sede e a fonte de tudo, só os próprios particulares poderiam efetivá-la. Com isto se poderia fazer para todos os indivíduos, não ficava claro nem se tornou possível.

O idealismo germânico resolve a dificuldade retornando ao Estado e fazendo dêle a própria forma da natureza humana realizar-se. A liberdade do homem se tornaria efetiva pela subordinação ao Estado.

Da sociedade universal, do homem membro da humanidade, passamos à sociedade nacional e o homem, súdito do Estado. A educação se faz pública e uma das funções supremas do Estado.

São estas as três fases por que passa o pensamento humano, desde que Platão descobre a natureza humana e a sua variedade e percebe a necessidade de educá-la adequadamente, para uma organização social justa. Rousseau reencontra a natureza humana, percebe-lhe a ilimitada variedade individual e imagina a sociedade estendida a tôda a humanidade e contida apenas por singelíssimos Estados-gendarme, conseqüentes do Contrato Social. O idealismo germânico percebe que essa natureza humana sòmente se realizaria por meio das instituições sociais, instrumentos da efetivação de suas liberdades, e daí parte para o Estado como algo de absoluto.

Cada uma das fases do pensamento humano completa a outra, para se chegar hoje à nossa concepção moderna, em que pensamos, com Platão, que sòmente pela educação se pode organizar a justiça social; com Rosseau, que essa natureza é vária e individual e exige liberdade para se desenvolver; com o idealismo germânico, que as instituições sociais, longe de inimigas dessa natureza, são os instrumentos de sua realização; e, finalmente, com Dewey, que, reconhecendo quão importante é a educação, mostra que se acha ela subordinada ao tipo de instituição e à forma de organização social adequados à natureza simultâneamente individual e social do homem. Sòmente com instituições democráticas e com o Estado democrático pode realizar-se o que sonharam Platão e Rousseau. O Estado dos idealistas germânicos será o meio de se realizar a educação harmoniosa e completa do indivíduo, se fôr êle democrático, isto é, se fôr o Estado que se organize dentro de amplo pluralismo social, que se funde na máxima participação do indivíduo em suas diversíssimas instituições, que promova o máximo de interrelações entre os grupos e classes da sociedade e, neste sentido, estimule o constante alargamento dos interêsses e estímulos de cada indivíduo, para o enriquecimento cada vez mais amplo de sua personalidade.

Êste pensamento democrático moderno tem assim as suas raízes imersas no solo intelectual que construíram Platão, Rousseau, Kant, o idealismo alemão, e afinal John Dewey. Todos êles se somam para a nossa visão de hoje do homem livre e da sociedade democrática. A atualidade de Rousseau está em que, mais do que ninguém, viu o homem e previu a educação do cidadão. Hoje vemos o homem e o cidadão e a educação do cidadão e do homem, um não contrariando o outro, mas mùtuamente se fecundando, no jôgo múltiplo do pluralismo social do Estado democrático.

ANÍSIO TEIXEIRA
Diretor do I.N.E.P.

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