TEIXEIRA, Anísio. Romper com a simulação e a ineficiência do nosso ensino. Formação. Rio de Janeiro, v.16, n.176, 1953. p.11-16.

"Romper com a simulação e a influência do nosso ensino"¨

ANÍSIO TEIXEIRA

"A Campanha de Formação Integral da Juventude que, hoje, aqui se instala, é um sinal dos tempos. Nunca a escola se viu alvo ou objeto de um movimento de tais proporções e será justo acreditar que acordamos, afinal, para o perigo por que ela está passando.

Perdõem-me, pois, que, velho estudioso de suas mazelas, lhes venha aqui dizer como vejo a crise escolar e com que alvorôço saúdo êste movimento.


Como as demais instituições, a escola brasileira representa um esforço de transplantação social. Sendo, porém, a de mais difícil transplantação, há de permitir que se observe no seu caso muito do que vai em outros setores institucionais, mas que aí não se apresenta com a nitidez encontrada na escola, que constitui o caso extremo de nosso esfôrço de transplantação da civilização ocidental para os trópicos e para uma sociedade etnicamente mista e culturalmente heterogênea.

O defeito original, mais profundo e permanente, de nosso esfôrço empírico de transplantação de padrões europeus para o Brasil, esteve sempre na tendência de suprir as deficiências da realidade por uma declaração legal de equivalência ou validade dos seus resultados. Com os olhos voltados para um sistema de valores europeus, quando os não podiamos, atingir, buscávamos, numa compesação natural, conseguir o reconhecimento, por medida oficial, da situação existente como idêntica à ambicionada. Aplicávamos o princípio até a questões de raça como o comprovam os decretos de branquidade.

Acostumamo-nos, assim, a viver em dois países, o real, com as suas particularidades e originalidades e o oficial com os seus reconhecimentos convencionais de padrões inexistentes. Enquanto fomos colônia, tal duplicidade seria natural e até explicável, à luz dos resultados que daí advinham para o prestígio nativo perante a sociedade metropolitana.

A independência não nos curou, porém, do velho vício. Continuamos a ser com a autonomia um país de dupla personalidade, a oficial e a real. A lei e o govêrno não eram para nós instituições resultantes de condições concretas e limitadas mas algo como um poder mágico capaz de transformar as coisas por fiats milagrosos.

A divisão do país entre uma diminuta classe dominante e um grande povo analfabeto e deseducado, segundo os padrões convencionais, permitia essa dualidade que nos dava o aspecto de teatro, personificando alguns o palco da nação supostamente civilizada e estendendo-se, pelo imenso território nacional, silenciosa e "bestificada", a grande platéia brasileira.

Nas últimas décadas, porém, o país se desenvolveu, as classes sociais se misturaram, a grande massa popular se incorporou à nação e já não podemos apenas "representar" de país civilizado. Temos de ser um país civilizado. As instituições "transplantadas" não se podem conservar como instituições simbólicas e aparentes mas tem-se de fazer reais, extensas e eficazes sob pena de não atender às imposições do real desenvolvimento brasileiro.

É esta a conjuntura em que nos encontramos. O progredir ou desaparecer de Euclides da Cunha está hoje superado. Progredimos… e desapareceremos se não nos organizarmos em condições de poder suportar e dirigir o nosso progresso. E a organização de que aqui falamos não é nenhum plano nacionalizante mas a da adaptação de nossas instituições à realidade nacional, para que elas não sejam fictícias nem inadequadas mas os instrumentos eficazes da solução de nossos problemas reais. Seja a instituição da família, seja a da propriedade, seja a da escola, tôdas têm de ser reexaminadas à luz do nosso conhecimento atual das condições brasileiras a fim de melhor atender aos seus objetivos, na sociedade brasileira, hoje unificada em todo o país. Temos de sair de um estado de ficção institucional para o de realidade institucional, integrando o país real em suas instituições assim tornadas reais.

Vejamos, quando o caso da escola exemplifica e ilustra estas observações. Dentre as instituições nenhuma, como já dissemos, oferece, ao ser transplantada, maiores perigos de se deformar ou perder mesmo a eficácia. A escola em parte já é de si uma instituição artificial e abstrata, destinada a complementar apenas a ação de educação muito mais extensa e profunda que a vida e as demais instituições ministram.

Contém assim em si mesmo, algo de "parcial", de abstrato e, portanto, de artificial, devendo não só ajustar-se, mas, completar-se com as demais instituições e o meio físico e social.

Não é, pois, de admirar que não se tenha tentado senão com extrema prudência a sua transplantação. O fato de os portuguêses sempre se terem recusado a transplantar a universidade parece-me, hoje, uma grande prova de sabedoria, a despeito dos possíveis motivos políticos dessa orientação.

O que é fato é que chegamos à independência, com a maior parte de nossa elite formada na Eurpa e assim continuamos boa parte do império. O país percebia obscuramente o perigo de uma transplantação de instituições delicadas e complexas como as da educação, em seus níveis mais altos.

Durante todo o império, a expansão do sistema escolar se fêz com inacreditável lentidão. A consciência dos padrões europeus era muito viva para que pensasse poder abrir escolas como se abrem lojas e armazens. Por outro lado, o desenvolvimento do país era tão lento e as condições até a abolição, de certo modo, tão estáveis, que a nação não se ressentiu demasiadamente da escassez de sua armadura educacional.

Com a abolição e a república, entramos, porém, no período de mudanças sociais, que a escola teria de acompanhar. O modesto equilíbrio do tempo do império, obtido graças à lentidão do nosso progresso e ao número reduzido de escolas, em que se buscava conservar a todo custo os melhores padrões, rompe-se definitivamente a começamos a expandir o sistema escolar sem maior reflexão nem prudência.

O fenômeno a registrar era sempre êste: a escola, como instituição da cultura, não era realmente exigida e imposta pelo meio; representava, antes, um esforço para elevá-la ao nível do meio europeu, de que desejávamos copiar padrões. Assim, ao se iniciar, apresentava algo de semelhante ao modêlo que se queria transplantar, mas logo depois, entrava a se deformar e a se reduzir às condições do ambiente. A luta para mantê-la no nível inicial, permanente e incessante, era vencida pela tendência inevitável para se deteriorar.

Os analistas de nossas escolas sempre nos referiam êsse impasse: como construir um sistema escolar para uma nação, cujo progresso o requer, mas, não o determina? Precisávamos de educação, mas, as condições existentes não nos preparavam para a espécie de educação de que careciamos.

A escola, assim, não pôde fugir a certo aspecto irreal, se não absurdo, no melhor dos casos, e, nos demais, paternalista, assistencial e salvador.

Sucede, porém, que se a escola, hoje, a todos prepara para a vida e para o trabalho, em outros tempos, destinava-se à classe dos que não precisavam de trabalhar para viver. E, neste sentido, educação escolar era sobretudo uma educação destinada a "classificar" socialmente ou seus alunos.

Foi por aí que o nosso país julgou poder romper o impasse de construir um sistema escolar sem os meios adequados nem a devida preparação social.

A nossa velha tendência nativa para a revalidação, para a transformação da realidade pela declaração oficial, exercida a princípio contra a metrópole, para forçá-la a reconhecer-nos virtudes ou qualidades, passou a se exercer contra nós mesmos, ou uns contra os outros.

O legislador, também êle possuído do velho vício metropolitano, entrou a fixar condições e padrões para a educação, tomado do susto de que os nativos entregues a si mesmos fizessem da escola algo de reprovável. Fora dessas condições, não haveria educação. Como não podia, porém, ministrá-la, passou a dar "concessões" de educação aos particulares, aos Estados e aos municípios.

O govêrno federal tomou, assim, rigorosamente, as antigas funções da metrópole. E os colonizados, como todos os bons colonizados, entraram a lograr os colonizadores, obtendo o "reconhecimento" para os seus colégios, fôssem quais fôssem as suas deficiências, mediante o cumprimento formal dos prazos exigências estabelecidas.

Está claro que nada disto se poderia dar se a educação fôsse um processo de preparação real para a vida, pois, então, de nada valeria burlá-lo. Mas, como a escola se fêz, muito mais que essa preparação, uma formalidade para a "classificação" social e uma condição ou requisito para o exercício da função pública, a sua simulação se tornou não sòmente possível mas frutuosa.

Vimos, então, a escola primária entrar em declínio, as escolas profissionais e agrícolas fenecerem e as esoclas secundárias e superiores entravam em um subito e inacreditável florescimento.

Todo o país só possui hoje escolas "oficiais" e "federais" e escolas oficiais e federais significam escolas que dão vantagens a seus alunos, sejam lá quais forem os seus resultados. Nestas escolas, o período escolar se reduz cada dia um pouco mais, a educação se faz cada dia mais um exercício de audição, o contacto entre aluno e professor é cada vez menor e os exames são cada vez mais fáceis.

A escola é um processo formal que dia a dia, mais se simplifica, de se obter um diploma.

É nessa conjuntura que nos encontramos. É essa conjuntura que nos congrega hoje em tôrno desta mesa. Mas, o país está superando as condições de sua própria base educacional.

Já não nos basta manter um sistema educacional destinado tão somente a conservar o status social de alguns e facilitar a mudança de status das camadas inferiores, em processo democrático de ascenção. A situação presente do Brasil está a exigir uma escola capaz de preparar efetivamente os homens as mulheres brasileiras para o trabalho em um novo estágio de produção nacional e para a vida social, complexa e diversificada, de um nação industrializada e moderna.

A escola brasileira do período de que vimos emergindo, não podia deixar de ser a instituição irreal que foi, a despeito dos esforços dos nossos educadores. Tratava-se, na realidade, de uma transplantação a que faltavam as condições históricas e sociais que nutriam e justificavam, nos demais países, de onde as copiávamos, a sua existência e o seu florescimento.

As alternativas, então, haviam de ser o fornecimento, no caso das escolas de tipo profissional, ou a deformação, no caso das escolas de cultura geral. Como as condições sociais do país não exigiam, em rigor, tais escolas, estas últimas se fizeram formais e decorativas e aquelas ficaram abandonadas e vazias.

A justeza dessa observação se comprova, mesmo nos casos de êxito da escola brasileira. Vemos, assim, as escolas chamadas profissionais lograrem certo sucesso em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde as condições sociais as recomendavam e decair nas demais zonas do país, que não haviam chegado ao relativo progresso industrial daqueles Estados. Por outro lado, as três escolas superiores profissionais - de medicina, engenharia e direito - por isto mesmo que respondiam a necessidades reais, também lograram um coeficiente razoável de êxito e eficácia.

Os demais tipos de escola não conseguiram vingar nem criar tradições, deixando o país, na hora que vivemos de expansão e desenvolvimento, sem as diretrizes indispensáveis para o seu progreso educacional. Daí o crescimento atual desordenado e anárquico das escolas e a ameaça em que nos achamos de ver o sistema escolar brasileiro transformado em uma farsa e uma simulação.

Temos que reconstruir a escola brasileira para as novas necessidades do país, que já podem ser estudadas e conhecidas a ponto de indicarem os rumos a seguir.

Primeiro, temos que planejar as escolas para o mercado de trabalho existente, desde o que exija apenas o nível primário até os que imponham o nível superior. Em cada caso, temos de adaptar a escola às exigências das atividades correntes. Isto, do ponto de vista pròpriamente econômico do preparo para a produção.

Do ponto de vista social, temos que dar à escola a função de formar hábitos e atitudes indispensáveis ao cidadão de uma democracia e, portanto, estender-lhe os períodos letivos, para se tornarem possíveis as influências formadas adequadas.

A escola tem de se fazer prática e ativa e não passiva e expositiva, formadora e não formalista. Não será a instituição decorativa pretensamente destinada à ilustração dos seus alunos, mas a casa que lhe ensine a ganhar a vida e a participar inteligente e adequadamente da sociedade.

* * *

Ao lado dêste sistema comum e popular de educação, temos de formar as elites e de dar, aos mais capazes as oportunidades máximas de desenvolvimento. A plasticidade e flexibilidade da escola irá permiti-lhe que se ajuste as condições mais adequadas para o seu aperfeiçoamento.

Os colégios que esta Companhia visa criar poderão ser a mais perfeita resposta so desafio da atual conjuntura brasileira.

A nação real - com a sua consciência e as suas necessidades - vai-se erguer contra a nação fictícia, prêsa ainda à imaturidade de sua atitude semi-colonial, que julga estar burlando algum tirano fantástico, quando não está senão burlando a si mesma, e exigir que se criem condições reais para a educação de nossos jovens.

O exemplo já tem seus precedentes. E um dêles é o Centro Técnico de Aeronáutica, de que irá falar, dentro em pouco, o professor Ernesto de Oliveira, um dos seus fundadores. Outro exemplo, é o da educação militar com os seus cursos de graduação e pos-graduação. Outros, são algumas escolas superiores modelares que existem em algumas das nossas Universidades.

A educação - como tudo na vida - só exige para ser real e autêntica, seriedade e acêrto de propósitos, meios adequados e pertinácia inquebrantável em realizar aquêles propósitos.

É esta a chave que explica o Centro Técnico de Aeronáutica e que explicará os colégios que esta Campanha vai abrir para romper com a simulação e ineficiência da escola brasileira e oferecer, enfim, ao jovem nacional as condições indispensáveis para êle se pôr à altura dos estudos do seu país.

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