TEIXEIRA, Anísio. A Revolução dos nossos tempos. Discurso pronunciado na solenidade da instalação do XII Congresso Nacional de Estudantes, na Faculdade de Medicina da Bahia, em 17 jul. 1949. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1949.

ANÍSIO TEIXEIRA

A Revolução Dos Nossos Tempos

DISCURSO PRONUNCIADO NA SOLENIDADE DA INSTALAÇÃO DO Xll CONGRESSO NACIONAL DE ESTUDANTES, NA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA, EM 17 DE JULHO DE 1949.

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IMPRENSA OFICIAL DA BAHIA
JULHO DE 1949

"Meus colegas estudantes:

Não vos venho falar - obedecendo ao convite com que me honrastes - como mais velho. Tão extraordinários são os nossos tempos, que até esta diferença ou distância, se quizerdes, está apagada. Somos todos hoje velhos, ou somos todos moços, tão precoce é, por um lado, o vosso amadurecimento e tão palpitantes são, por outro lado, as nossas perplexidades e desajustamentos. E ser moço não é, em parte, viver ainda esta fase de busca e de coordenação que todos estamos vivendo? E ser amadurecido ou velho não é alimentar as determinações, as seguranças e, por vêzes, as obstinações de modo nenhum raras, hoje, entre os jovens? Convenhamos, pois, que somos todos, mais ou menos, da mesma idade, para que vos possa falar de igual para igual, sem falsos constrangimentos nem deferências falsas, mas com a franqueza e o abandono de companheiro e colega.

Êstes congressos de estudantes com que, há doze anos, vindes saudávelmente agitando o país, são, por si mesmos, um sinal dos tempos e comprovam a observação que acabo de fazer do vosso amadurecimento e, simultâneamente, a das grandes mudanças de nossa época.

Destinam-se, em essência, não a iniciar debates, mas a participar do grande e comum debate dos povos e dos indivíduos, em face da revolução social em curso, no mundo inteiro. Porque êste é o fato que temos de encarar frontalmente e friamente, se é que desejamos entender os problemas de nosso tempo.

Não estamos preparando, não estamos esperando, nem estamos evitando a revolução. Estamos em plena revolução social e estamos nela desde, pelo menos, os fins da década anterior a trinta. Nosso problema não é, pois, o de fazer a revolução, mas o de dirigí-Ia e orientá-la para o maior bem do homem e o menor sofrimento possível da coletividade. A revolução social, como a revolução industrial de ontem, não se faz pela vontade dos homens mas pela eclosão de forças acima do contrôle humano.

Em que consiste, entretanto, essa revolução, que sentimos em volta de nós, e cujo curso já está marcado pelo maior cataclisma da história - a última guerra - e que, ainda assim, tão ligeira é a memória humana, muitos dentre nós, parece, agora, já estarem dela despercebidos?

As tendências fundamentais dessa revolução já se acham definidas, com razoável consenso de opinião. Não se trata de matéria política e controvertida mas de verificação de sociólogos e pesquisadores sociais e, em rigor, de história, de história contemporânea, desta história que tanto ignoramos, talvez por apenas vivê-Ia em vez de a aprendermos na escola e nos livros. Julian Huxley, para citar um cientista mais do que um pensador político, condensa a revolução de nossa época nas três grandes tendências seguintes, que, de um modo ou de outro, se encontram em operação em tôdas as nações do mundo, sejam revolucionárias ou não. (Porque, como diz êle, muito bem, muitos hoje fazem revolução, como Monsieur Jourdain fazia prosa, sem o saberem). A primeira tendência é a da subordinação do econômico-financeiro ao não econômico-financeiro, a subordinação do dinheiro e da riqueza a motivos sociais. A segunda, é a tendência para a ação planejada em substituição ao atomismo do laissez-faire da revolução industrial. A terceira, é a tendência para maior unidade e integração social, com o desaparecimento progressivo das divisões sociais e a sua inevitável sequela de iniquidade econômica.

Antes de prosseguir, tranquilizemos, de logo, as conciências que, suportando, embora perfeitamente, o impacto dessas grandes tendências ou forças, recusam-se, entretanto, a ouvir algum chamá-las pelo nome de revolução e ainda menos de revolução social.

Não lhes alteramos o contôrno por lhes dar o verdadeiro nome. Elas são, queiramos ou não, a revolução social. E a sua atuação é clara e manifesta em tôdas as nações, dêsde a velha Inglaterra e as velhissímas China e India, até a novissíma Israel. De todos os países, talvez sejam os Estados Unidos a nação em que o fenômeno é menos conciente, mas, nem por isto, deixam as forças a que nos referimos de ali atuar. E para prová-lo, bastariam o New Deal da era Rooseveltiana e hoje o plano Marshall, na sua política exterior, a despeito das intenções que o alimentem, e a vitória de Truman e de seus planos e programas, na política interna. O perigoso é não reconhecer tais tendências como revolucionárias e não nos ajustarmos às suas imposições, tornando mais doloroso o processo inevitável de transformação por que passa a sociedade. Mas se a revolução é inevitável, não é inevitável a forma que pode ela assumir. Aí é que se abrem as alternativas que estão sob o contrôle da vontade humana. Pode a revolução assumir a forma totalitária ou democrática. A forma totalitária foi esmagada no último grande embate violento da guerra e todos esperamos que jamais ressurja, e a forma democrática se dividiu em duas modalidades, a das democracias populares do oriente e a das democracias socialistas ou pre-socialistas do ocidente. O entendimento entre êstes dois estilos democráticos parece difícil mas não de todo impossível. Estamos a viver, agora mesmo, um momento de esperança, com a diminuição das tensões entre o leste e o oeste.

Êste é um dos grandes problemas de nosso tempo, em que a penosa operação de rever os nossos conceitos e as nossas fórmulas e clichês mentais, o penoso trabalho de re-pensar os nossos pensamentos e julgamentos é mais urgente e mais necessário. O fato é que precisamos e devemos chegar a algum entendimento, pois não poderemos sofrer nova guerra, tão alto chegou o poder destrutivo do homem. O conflito entre os dois estilos de democracia, em que hoje se divide o mundo, pode e deve ser superado pacificamente. E ai de nós, se não fôr possível tal superação!

A base comum, que deverá ou poderá permitir tal entendimento, está em que ambas as modalidades democráticas buscam os mesmos objetivos - o bem-estar de todos os indivíduos e a sua participação em uma coletividade socialmente integrada e ativa. O conflito está no modo e no método de conseguir tais objetivos comuns.

Tenhamos a honestidade de reconhecer que, em ambos os métodos, há virtudes e perigos. Entre as democracias populares, o perigo está em poder a determinação de apressar a revolução social levá-la ao ponto de trair os seus fins, tornando-se, assim, insensívelmente, totalitária, sob o pretexto de guardar a unidade de ação.

Nas democracias ocidentais, o perigo é o oposto, levando a consequências idênticas. Aí, sob o pretexto de salvar a liberdade individual, pode-se levar a revolução a se perder em anarquia e confusão, que poderão gerar a contra-partida da ditadura totalitária.

As virtudes seriam a da eficiência entre as democracias populares e a da cooperação e participação concientes e voluntárias nas democracias ocidentais, além de julgarem estas poder dirigir a revolução com a preservação mais equilibrada dos valores acumulados do esfôrço humano.

O debate desta tese não é ocioso no campo internacional, antes sumamente urgente, mas não tem razão de ser no campo nacional, onde o povo brasileiro já fez a sua escolha, no mais livre dos pleitos. Somos uma das democracias ocidentais pré-socialistas do mundo contemporâneo, conduzindo a nossa revolução pelos métodos moderados, brandos, pacíficos e livres do ocidente. Êstes métodos podem ser velhos e clássicos no mundo anglo-saxônio, mas são novos, novíssimos em nossas plagas e constituem, só por si, um dos aspectos da revolução brasileira.

Por meio dêles, estamos realizando a nossa revolução política e se atentarmos em que temos de aprender a lidar com êstes novos métodos políticos, ao mesmo tempo em que também processamos a nossa revolução social, logo podemos vêr quanto é difícil e árdua a missão que pesa sôbre os nossos ombros.

Uma cousa seria levar a efeito a revolução de métodos políticos, nos sossegos do século dezenove, com uma ordem econômica estável e uma sociedade que embora julgada, ao tempo, tumultuária, hoje nos parece acadêmica e requintada como uma edição popular do século dezoito. E outra, concretizar, como estamos concretizando, o govêrno representativo, o voto livre e verdadeiro, em plena efervescência social, com a transformação econômica, a súbita participação de todos nos benefícios da civilização e a eclosão de seções novas, populares e inesperadas no conjunto de fôrças em operação na vida do país.

Esta é a contradição mais viva da cena contemporânea brasileira e que explica, em parte, algumas decepções que o movimento de 1945 já registra em sua marcha. Estamos a fazer a nossa revolução política. Restabelecemos as instituições livres, elegemos um congresso constituinte, votamos uma constituição e fundamos govêrnos livres em todos os estados e todos os municípios. Criamos, em todo o país, a autoridade impessoal da lei, restabelecemos a igualdade jurídica, restauramos a república, fundamos os partidos políticos nacionais e conseguimos que tôda essa nova aparelhagem funcionasse com o mínimo de acidente e de atrito, sem lançar mão, nem uma só vez, de remédios excepcionais. Se tudo isto fôsse feito no século XIX, ou no princípio dêste século, a obra política do país seria, por todos os padrões, considerável. Mas, estamos a aprender e a iniciar a democracia política em pleno segundo quartel do século vinte, quando as fôrças econômicas e sociais deflagradas, originariamente, pela primeira guerra mundial e poderosamente fortalecidas pelo segundo cataclisma universal, exigem e impõem algo de mais profundo e radical que uma simples revolução política.

Decorre daí êste vago sentimento de crise e de frustração em que se debate certa parte da opinião pública e que importa examinemos para descobrir o verdadeiro sentido dos acontecimentos. Não resta dúvida que a aparelhagem política do país funcionou, um pouco, sob o deslumbramento de sua própria liberdade e produziu menos do que seria necessário. Não resta dúvida que pouco fizemos, ou fizemos menos do que poderíamos fazer, no campo do que seria a direção e orientação da revolução social. Não fomos além do que já havíamos ido na subordinação do econômico ao não econômico, embora os planos da recuperação do S. Francisco, da Companhia de Energia Hidro Elétrica do S. Francisco e os esforços do Conselho Nacional do Petróleo sejam modestos exemplos, no sentido daquela subordinação. Com efeito, são todos projetos que o regime do lucro e do laissez-faire dificilmente empreenderiam. Não chegamos, até agora, a aprovar o plano Salte, que era outro passo promissor no sentido da ação planejada. Pouco fizemos, salvo como obra de assistência, para a integração social das muitas parcelas em que se divide o país e, sobretudo, para a integração do grande grupo da população rural e dos não sindicalizados das cidades, que vegetam ainda em nível quase sub-humano.

Pouco fizemos, também, no sector da legislação complementar da constituição, que em suas seções mais importantes, como a da educação e a dos direitos econômicos e sociais, está ainda por se cumprir.

Tudo isto parece-me constituir a bagagem negativa dêstes primeiros anos de reconstrução nacional. Mas, tudo isto é algo de tremendamente difícil e que se tornou ainda mais difícil, em face das contingências da reconstrução política e do êrro basilar da nossa divisão tributária.

Apesar de havermos restabelecido a federação, só muito modestamente demos comêço a uma melhor redistribuição da renda tributária do país. A responsabilidade de administrar as populações brasileiras está com os municípios e os estados, mas êstes pouco recebem para dar cumprimento às suas funções e deveres. A União continua com a parcela agigantada de cêrca de 60% da arrecadação total do país, deixando aos estados alguns 30% e aos municípios cêrca de 10%. Dêste modo, não foi siquer possível aproveitarmo-nos da saudável descentralização federativa, pela qual parte do país desenvolveria seus planos de trabalho, mesmo que faltasse ao Centro unidade e concêrto de ação para traçar os seus.

Os estados, porém, são pobres e os municípios, paupérrimos e, enquanto esta situação não se alterar, viverão tão rigorosamente subordinados à União, que a própria federação será muito mais de forma do que de essência. Não alinho, contudo, êstes déficits do nosso esfôrço reconstrutivo para efeito de desânimo, mas para que sintamos a dificuldade da tarefa...

Todos êstes deficits provêm da divisão de fôrças políticas em que se debate a nação. Não poderemos empreender o grande esfôrço coletivo necessário para dirigir e guiar as forças econômicas e sociais, que sacodem o país sem unidade conciente de propósito e sem um grande programa comum, que suscite a necessária integração social. Para essa unidade, precisamos de uma mobilização total da opinião pública e para essa mobilização precisamos de uma campanha contínua de esclarecimento.

Por isto mesmo é que nenhum esfôrço foi mais lucidamente patriótico no país, do que o do acôrdo entre os partidos mais diretamente responsáveis pela nova ordem estabelecida, acôrdo que visou e conseguiu aquele mínimo de unidade indispensável para chegarmos, como chegamos, até aqui, sem sossobrar completamente em nossa experiência de redemocratização.

O que desejo acentuar, acima de tudo, é que êste acôrdo não representa, como poderia parecer a alguns, apenas o apoio ao govêrno, mas a conciência da necessidade de unidade de propósito para que se possa conduzir um movimento do vulto dos movimentos políticos e sociais de hoje.

Seria algo de insensato pensarmos que hoje se podem reproduzir aquelas cenas de situação e oposição, tão comuns no período da simples democracia política do século dezenove ou começos dêste século.

Os problemas, em que se debatem hoje os povos, já não têm mais a simplicidade nem a linearidade daqueles tempos e, de um modo ou de outro, a unidade, um mínimo de unidade se impõe para que a obra de govêrno não se esterilize e para que a nação não venha a perecer. Seja nos Estados Unidos, onde funciona ainda, em muito, apenas a democracia política e industrial, ou seja na Inglaterra onde já vigora, em grande parte, a democracia social, a unidade sempre se estabelece em face das circunstâncias de caráter social.

Com efeito, não estamos lidando com problemas tão fáceis, que nos seja possível dar-nos ao luxo de divisões personalistas ou partidárias, sem maior lastro ideológico. Quando os partidos têm ideologias semelhantes, fôrça é que se unam, se não querem perecer e fazer que, com êles, pereça o regime.

A lição, assim, que me ocorre tirar da atual conjuntura brasileira e que vos trago, hoje, nestas palavras que, sendo de saudação, são também de exame e de tentativa do esclarecimento, é a de que o Brasil marcha, como todos os demais povos, dentro da grande tempestade social de nossa época. Em plena tempestade não cabe aos homens se dividirem, mas unirem-se, não para deter a tempestade, pois as tempestades não se detêm, mas para conduzirem o barco ao destino almejado, utilizando para isto os próprios ventos da borrasca.

Tais situações pedem união, pedem unidade de ação, como os períodos de guerra. Os estudantes brasileiros foram os líderes da unidade de ação durante a guerra. Que o sejam de novo hoje, pois os problemas da paz têm agora a gravidade e a urgência dos problemas de guerra.

Tôda a nossa vigilância tem que se exercer contra os que nos queiram desviar do regime democrático, para nos lançar em aventuras de perigosa divisão das fôrças nacionais. Precisamos preservar o pouco - mas que é muito sob tantos aspectos - que conseguimos dêsde 1945 e preparar-nos, para o próximo período de govêrno, com uma sucessão que nos torne possível ainda maior unidade do que a obtida, com o modesto mas salutar entendimento político, realizado sob a presidência, constitucionalmente exemplar, do atual primeiro magistrado do país.

O país confia, para isto, na fôrça de opinião da juventude universitária, que hoje aqui se reune, em congresso, sob os ceus da Bahia, no ano de suas festas quadricentenárias. As circunstâncias permitiram que a Bahia se encontre, neste ano de tanta significação para ela, sob o govêrno do maior de seus filhos vivos, vivendo uma hora que se pode chamar, sem exagêro, de renovação, com a sua confiança restabelecida, a sua união política realizada, a sua paz social assegurada e o seu ritmo de trabalho acelerado tanto quanto lhe permitem os recursos.

Mas estas mesmas circunstâncias, por outro lado, não permitiram que estivesse presente êsse seu grande líder político e governador, no momento em que a mocidade do país se reune, em sua terra, para os seus debates anuais. Ninguém, como êle, se sentiria tão bem neste convivio e ninguem vos poderia, neste instante, dirigir, com mais autoridade, mais calor e mais entusiasmo, as saudações da Bahia. Sinto, como sei que sentis, que não o tenhamos entre nós, para nos dizer a todos as palavras de confiança e de fé, que lhe quereriamos ouvir, nesta hora de preocupação e de esperanças que vive o Brasil.

POST-SCRIPTUM*

Meu caro redator:

Diante dos comentários dêsse jornal ao discurso que proferí, no XII Congresso de Estudantes, não posso deixar de trazer o meu esclarecimento aos pontos em que se pôs em dúvida a minha consciência de educador. As afirmações daquele discurso foram ditadas exatamente por aquela consciência. Por isto mesmo que me dirigia a jovens, recusei-me a acentuar a terrível divisão em que se debate o mundo, nesta hora de transição e de apreensões.

Acenei aos moços com a possibilidade e a necessidade de entendimento, declarando que o conflito entre os dois estilos de democracia pode e deve ser superado pacificamente. Reconheci a existência do conflito, mas o que não poderia fazer era prejulgar a posição de cada um dos lados, para me definir por um dêles, fanàticamente, e contradizer, assim, a minha própria esperança de conciliação.

Estou convencido de que atuam, de um lado e de outro da chamada "cortina de ferro", as mesmas fôrças de reforma e revisão social. Estou convencido de que ambos os lados estão em transformação, não sendo estáticas as posicões das ideologias contendoras, mas dinâmicas e fluidas. Creio numa possível convergência. Não perdi de todo a esperança nessa terceira fôrça, que seria a Europa socialista, entre o comunismo de leste e o capitalismo de oeste, equilibrando e talvez dirigindo o mundo para um regime de reforma social e de justiça.

O que não poderia, porém, fazer e, sobretudo, a jovens, era condenar em absoluto a experiência, duríssima é verdade, mas respeitável que povos inteiros estão fazendo para se libertarem da miséria e da iniquidade. E ainda menos, elogiar sem reservas o nosso lado, em que gozamos, nós das classes dominantes, uma liberdade econômica por certo deliciosa, mas que só é possível por não estarmos cumprindo o nosso dever de reforma social, pela qual teríamos de incorporar as classes populares ao nosso festim, reduzindo-o por isto mesmo, a um frugalíssimo repasto.

Chegamos, meu caro redator, a um ponto de saturação nêsse debate dos nossos dias pela equidade social. Podemos ser capitalistas por contingência de evolução histórica, mas ninguem mais o é por convicção. A própria igreja católica, com seu inalterável senso de adaptação, já se diz socialista. Sabemos que a liberdade ou melhor o individualismo econômico do século XIX logrou-nos, melancòlicamente. Prometeu-nos a liberdade, mas a liberdade dependia da propriedade, de recursos e de educação. Como nenhum dêstes elementos existia em quantidade suficiente, a liberdade ficou para os que chegaram primeiro e o resto, o grande resto, o imenso resto ficou mergulhado na miséria e na ignorância, que são as formas supremas da escravidão.

Daí nasceu o nosso novo conceito de liberdade que não é o irresponsável "faz o que quiseres", mas o sério, o denso, o duro e justo "faz o que deves". Liberdade hoje, significa igualdade nas restrições. Se a riqueza e a produção são poucas, fôrça é que cada um viva dentro de restrições, para que reine a justiça social e possamos dormir em paz.

A feliz América do Norte, mercê de um conjunto de circunstâncias, pôde construir um regime capitalista que é, no mundo, cousa única. Graças ao seu puritanismo e incrível espírito de competição e de trabalho, resolveu magnìficamente o problema da produção e pôde chegar a tamanha riqueza que, a despeito da iniquidade do seu regime distributivo, deu a cada cidadão um nível de vida invejável. Pôde a América dar-se ao luxo de manter o regime de liberdade econômica. Até quando o poderá manter, não sei eu. As suas circunstâncias não se repetiram, porém, nesta nossa América do Sul, nem na Europa, nem na Ásia, nem na África. E o relógio do Tempo não permitirá mais que criemos, artificialmente, nestas extensas áreas do mundo, o clima necessário à expansão capitalista.

Se fôsse possível criá-lo, talvez não fôsse eu quem o iria combater. Entre a dureza da reforma social planejada e o áspero mas saudável espírito de competição, talvez também eu me inclinasse para êste regime de estímulos grosseiros mas eficazes. Mas já não possuimos nem os corajosos pioneiros de outro tempo, nem muito menos, a esplêndida docilidade das massas. Nem capitães de indústria, nem suaves rebanhos de operários para as jornadas de doze e catorze horas e salários de fome. Hoje, os capitães de indústrias são fragílimas criaturas a rogar e pedir proteção nas ante-salas ministeriais. E os operários, fôrças jovens e vivas, cheias de inquietações e de perigo. Em rigor, estamos todos, meu caro redator, todos nós das classes dominantes, demitidos. Ocupamos, por favor, os nossos lugares, que já foram dados a outros. Somos reis que já não governam.

A situação de países, como o nosso, em que um pseudo-pre-capitalismo está em desagregação e as fôrças operárias renascentes começam a ascender, é uma situação que nos deixa transidos de apreensões.

A falta de uma teoria de reforma que nos guie no tumulto das mutações econômicas e sociais e a ausência de sentimento de responsabilidade nas classes dominantes estão nos conduzindo, de concessão em concessão, a uma posição, insustentável para o povo que está pagando as concessões. Não somos capitalistas, nem temos livre iniciativa. Também não somos socialistas. Corrompemos ambos os regimes, criando, no que resta de capitalismo, a irresponsabilidade, e no que se faz de socialista, a impressão de dadiva e de suborno. As repressões sem sentido ao patrão desestimulam e geram o cinismo e a especulação, e as concessões ao trabalho longe de erguê-lo, como o faria a conquista dessas vantagens, desmoralizam-n'o. Temos, cada dia mais, um produto mais caro e pior, porque o patrão defende-se em um regime que é o de salve-se-quem-puder e o operário diminui a sua produtividade porque não é ela quem lhe comanda o ganho, mas o susto crescente do pais, desarmado para as reformas que se impõem. Todos vemos isto. É isto que todos dizemos em voz baixa. Não desejei, entretanto, falar aos jovens essa linguagem. Procurei mostrar-lhes antes o panorama geral das fôrças econômicas e sociais em marcha, e acentuei a necessidade de unidade para acompanharmos, em nosso país, o seu desenvolvimento. Essa unidade preguei-a eu, não para lançar o brasileiro contra o fantasma de uma Rússia, que está do outro lado do mundo, mas para armá-lo contra a realidade perigosa de sua casa, para aparelhá-lo para a sua responsabilidade interna, para o seu dever de reconstrução do Brasil, nesta jornada democrática, apenas iniciada e já em perigo.

Julgaria fútil ou, talvez, perverso, lembrar-lhe o sofrimento - de que sei tão pouco - das massas do oriente, quando o meu dever era o de chamar a atenção para o sofrimento, ainda tão grande, de nossas massas urbanas e rurais, para tôda essa imensa população nacional que vive, em plena pseudo-democracia cristã, em nível semelhante ao dos animais, pedindo e clamando não por direitos, que não sabem o que é isto, mas por assistência. Quando se tem, meu caro redator, em casa, demônios tão perigosos como êstes do nosso país, não precisamos mobilizar ninguem contra os demônios de fora. A mobilização de vontades, de inteligências e de consciências, cuja necessidade proclamo, deve ser para nos erguermos à altura de desafio que nos lança o Brasil. Temos de resolver os seus problemas sob pena de não o merecermos. Os meus votos, e muito claro os deixei no discurso aludido, são para que os resolvamos dentro da ordem democrática do ocidente. Mas, se não os resolvermos, não sei, meu caro redator, para onde iremos! ...

Bahia, 30 de julho de 1949

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