TEIXEIRA, Anísio. Revolução e educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.39, n.90, abr./jun. 1963, p.3-7.

REVOLUÇÃO E EDUCAÇÃO

Não parece haver dúvida quanto à instabilidade da fase que estamos vivendo no Brasil. Como há pouco recordou o professor Hermes Lima, tudo está em questão: a propriedade da terra, a distribuição da riqueza, o regime tributário, a legislação eleitoral, a organização administrativa, o regime político, o sistema de educação.

A terra como que está fugindo a nossos pés, mal permitindo equilibrar-nos na fluidez social e política em que estaríamos ingressando. Está, entretanto, o comportamento brasileiro correspondendo a êsse estado de coisas?

De modo nenhum. Muito pelo contrário, outra realidade, mais imediata, a dinâmica de uma sociedade em mudança e em crescimento, embora desordenado, leva-nos não à disposição de reforma e reestruturação, mas à de tirar proveito imediato das riquezas emergentes.

Discutem-se reformas, mas as palavras caem no chão de estranha inércia social. Por baixo das palavras, correm poderosas as águas – mais ou menos turvas – mas nem por isto menos seguras e tranqüilas, dos interêsses dos grupos de pressão. Tais grupos estão longe de se identificar com a Nação. São antes a antinação. Lutam por si, pouco se dando do que venha a suceder à nação. Quais são êles? O grupo de pressão do café, o grupo de pressão dos funcionários civis e militares, o grupo de pressão dos empregados dos Institutos, o grupo de pressão dos ferroviários, o grupo de pressão da Marinha Mercante, o grupo de pressão dos construtores de estradas de rodagem e, por último, o grupo de pressão da indústria pesada e leve, subvencionada pelo Govêrno.

Tais grupos não chegam sequer a ter nítida configuração de grupos de classes. Em cada um dêles se misturam pessoas de classe alta, média e baixa. São, de fato, privilegiados a se beneficiar da ausência de integração nacional, que lhes permite a atitude de privilégio, ou seja, a de poder afirmar seus direitos sem a contrapartida de sua responsabilidade. Privilégio nada mais é do que isto. Ter direitos e, por isto, deveres – não é privilégio, mas ônus, encargo, vigília, preocupação...

Quando a nação se faz uma só e os direitos de todos são reconhecidos, nenhuma classe pode ter mais direitos do que as demais, sem que a êstes direitos corresponda cota também maior de deveres. Assim foi nas sociedades em que dominava a classe aristocrática, até que esta se corrompeu e se fêz apenas classe privilegiada, cheia de direitos e sem deveres. Assim foi com a ascensão da classe média, no século dezoito e dezenove, justificando as líricas exaltações com que tanto se distinguiu essa classe. Assim está sendo com as sociedades proletárias ou comunistas, em que a classe trabalhadora se despe ou é despida de todo e qualquer privilégio, para dar ênfase aos seus deveres.

A saúde social requer tal regime de responsabilidade, seja lá qual fôr a classe dominante.

Entre nós, não parece havermos chegado sequer a essa consciência de classe. Não há classe, mas grupos, e grupos que se valem do seu reduzido tamanho, para não se considerarem responsáveis pelo todo. E isto sòmente é possível porque abaixo dêles vegeta uma grande massa, muda e passiva, que se constitui dos ineducados da coletividade, analfabetos e semi-analfabetos, que não sonham a sua própria emancipação, mas a saída individual dos mais hábeis ou mais dóceis para algum dos grupos privilegiados, dentro dos quais se distribuirão em qualquer dos níveis de classe dêsses gordos conglomerados.

Não se pode, pois, dizer que haja luta de classes no país. Enquanto existir a massa de ineducados, não se caracteriza a luta de classes. O ineducado é candidato ao ingresso num dos grupos privilegiados. Dentro dêles é que poderia haver luta de classes, mas isto também não existe porque o grupo precisa de unidade para a garantia de sua própria e privilegiada situação e daí não haver luta entre seus membros contra a ascensão da massa indiscriminada.

Não é outro, parece-nos, o motivo da resistência nacional a qualquer expansão séria e em massa da educação. Tal expansão é que viria quebrar a tranqüila viabilidade dos sistemas de privilégio. A expansão desordenada, ineficaz, marcada pelo signo do acidente e da sorte, é a única expansão tolerada. Daí escolas primárias de pilhéria, pobres e ineficientes, ginásios improvisados e inoperantes e ensino superior confuso e verbalístico. Para tudo isto, o apoio é manifesto e os recursos – aliás modestos - não faltam.

Tudo isto se corrigiria com a integração nacional, com a vitória sôbre o dualismo estrutural de povo e grupos privilegiados. Mas tal integração exigiria uma dupla concentração, que ainda não existe no Brasil. A concentração geográfica e a concentração demogrófica. Dispersos, anulamos pela distância, pelo arquipélago, que faz do país um sistema de ilhas, o sentimento comum dos sofrimentos coletivos, os quais deixam assim de ser nacionais ou comuns e, dêste modo, atuantes. Concentrados – nas grandes metrópoles – não o somos por crescimento interno dos núcleos demográficos, mas por migração de analfabetos ou semi-analfabetos e, graças a êste fenômeno, mantemos ou, pelo menos, prolongamos a ilusão da emancipação de um à custa de outro, suprindo-se a solidariedade da massa de deserdados, recém-concentrada nas cidades.

Retardamos, assim, o processo integrativo e conquistamos um instável equilíbrio, que nos vai permitindo conservar o sistema de privilégios. Por tudo isto é que, sem nenhum exagêro, me parece ser a revolução educacional a maior revolução. As duas revoluções que já se processaram mais completamente no mundo, são a revolução americana e a russa. Ambas sòmente se fizeram reais pela educação. A revolução americana é da mesma família da revolução inglêsa e da francesa, as quais acabaram, de certo modo, expandindo-se por grande parte da Europa. Não se pode, contudo, dizer que a revolução européia se tenha expandido do mesmo modo que a americana. Qual a razão? É que os conceitos de educação que acompanhavam essa revolução não se aplicaram na Europa do mesmo modo por que se aplicaram nos Estados Unidos.

Com efeito, embora o conceito de educação democrática universal fôsse comum a todo o movimento, deve-se observar que, na Europa, êste conceito dominou apenas a educação elementar e vocacional, enquanto nos Estados Unidos se estendeu, na segunda metade do século XIX, aos três níveis de ensino, primário, secundário e superior. Nem sempre-se tem dado a esta diferença o relêvo necessário.

Até muito depois da primeira guerra mundial, a estrutura da educação na Europa é nìtidamente dualista: educação prática e útil para o povo, educação intelectual, "desinteressada" e profissional superior para a elite. O próprio prolongamento da chamada educação popular até os 16 e depois 18 anos, sòmente começa a concretizar-se na Europa, no segundo quartel do século XX.

Já nos Estados Unidos, na década de 60 a 70 do século XIX, temos a educação secundária generalizada e iniciado tipo nôvo de educação superior geral, para fazendeiros e mecânicos, nos então chamados "Land-Grant Colleges".

Era a revolução democrática a instituir o sistema educacional apropriado a tôda a sociedade, quebrando-se o dualísmo entre educação do povo e educação da elite, eufemismo pelo qual se encobria a separação entre a educação da classe popular e a das classes superiores.

Na realidade, o que praticava a Europa era a manutenção do caráter aristocrático da educação das classes dominantes e a democratização da educação do povo.

Sòmente agora começa na Europa o movimento de democratização da universidade e dos cursos preparatórios à universidade e, dêste modo, a vencer-se o dualismo educacional em essência antídemocrático.

Já nos Estados Unidos, graças à constituição mais igualitária da sociedade, pelo menos no Norte, e, posteriormente, depois da guerra de integração nacional (a chamada "Guerra de Secessão"), estendida a todo o país, tivemos uma educação em que o prático ou útil e o intelectual ou ornamental (como o chamava Benjamin Franklin) nunca puderam ser completamente separados ou isolados. Tôda a educação devia ter os dois aspectos, conforme os documentos iniciais da fundação dos "Land-Grant Colleges" muito enfàticamente demonstram. Embora estivessem os Estados Unidos fazendo algo de completamente nôvo na história, ou seja, educação geral e útil no nível secundário e no superior, a formulação do movimento teve sempre o hábil cuidado em sublinhar o mais completo respeito pelas formas tradicionais de educação acadêmica.

Na realidade, entretanto, o movimento democrático iniciado no século dezoito antecipava-se, nos Estados Unidos, de mais de meio século sôbre a Europa, na instituição de um sistema educacional unificado, em todos os três níveis, elementar, secundário e superior, aberto a tôdas as classes e camadas sociais.

É verdade que as condições econômicas poderiam limitar o acesso ao nível superior, mas êste não estava isolado nem se limitava a certo grupo de educados. Todos podiam aspirar ao ensino superior. Tôdas as atividades e ocupações poderiam vir a preparar as suas elites no nível universitário, substituindo-se assim a idéia de elite, no singular, pela de elites, ou seja, as elites pluralísticas da sociedade democrática.

Para isto é que hoje se encaminham as próprias sociedades democráticas da Europa, em marcha para uma estrutura social muito mais próxima da que a sociedade americana vem construindo desde o século dezenove.

Retardados sôbre a própria Europa, o Brasil deve agora empreender simultâneamente a democratização do ensino elementar e a do ensino médio e superior, estabelecendo a continuidade de todo o sistema escolar, a sua diversificação pelas diferentes atividades e ocupações e a expansão de todos êsses níveis até o máximo de sua capacidade.

Como mudança intrínseca do processo educativo, deve-se abandonar a velha dicotomia, para usar a expressão de Benjamin Franklin, de útil e ornamental, para se conceber tôda educação, seja lá qual fôr o seu nível, como simultâneamente prática ou vocacional e geral, isto é, capaz de habilitar-nos a usar os conhecimentos e a cultivar, por intermédio dêles próprios, a nossa imaginação e o nosso espírito.

Todo conhecimento, desde que seja ministrado em suas inter-relações, é suscetível de ganhar a dimensão que chamamos de geral, e servir ao mesmo tempo de instrumento prático ou útil e de meio ou processo de nosso aperfeiçoamento mental e espiritual.

Essa unidade fundamental de todo saber e a percepção de que, se o ministrarmos imaginosamente, poderemos, com qualquer dos seus fragmentos, dar ao homem êsse instrumento de trabalho ou o cultivo de seu espírito, constituem o segrêdo da integração do mesmo processo dos objetivos utilitários e culturais de tôda educação.

A unidade na diversidade, velho ideal universitário, faz-se o ideal da educação em qualquer dos seus níveis. A imensa explosão do conhecimento humano, a que se segue a imensa diversificacão das educações possíveis, reencontra-se assim com o antigo conceito de educação, como formação do espírito e formação profissional.

Viemos da pura e simples educação da elite dominante para a educação da elite e também do povo. Desta educação, discriminada da primeira e limitada ao ensino primário e de ofícios, partimos para a educação de todos, dentro da diversidade de ocupações, nos diferentes níveis, mas com o mesmo espírito e destinada à formação de quadros qualificados, médios e superiores de uma sociedade democrática, cujas elites dirigentes pluralistas e distribuídas por todos os ramos e níveis não se recrutam em apenas uma classe, mas em todo o povo.

Por êste modo é que se irá concretizar a revolução, que não é o resultado de revoltas populares, mas conseqüência do progresso do conhecimento humano e do despertar das aspirações que a sua difusão, pelos novos meios de comunicação, gera inevitàvelmente.

Nesta situação é que já se encontra o Brasil, cuja necessidade maior é a de preparação do homem para os novos deveres de produção da sua conjuntura atual e os direitos que decorrem daqueles deveres.

ANÍSIO TEIXEIRA
Diretor do INEP

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