TEIXEIRA, Anísio. Reorganização do Ensino Normal e sua transposição para o plano universitário: creação. Boletim de Educação Pública. Rio de Janeiro, v.2, n.1/2, jan./jun. 1932. p.110-117.

REORGANIZAÇÃO DO ENSINO NORMAL E SUA TRANSPO-
SlÇÃO PARA O PLANO UNIVERSITÁRIO: CREAÇÃO DO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO

Exposição de motivos Director Geral de Instrucção, acompanhando o Decreto que tomou o nº 3.810, de 19 de Março de 1932.

Exmº. Sr. Interventor

Dentro do plano geral já submettido a V. Ex. de reorganização e reajustamento do systema educacional do Districto Federal, occupa logar de preeminência indiscutível o projecto de reorganização da antiga Escola Normal, que ora entrego à apreciação e approvação de V. Ex.

Nenhuma reforma, como nenhum melhoramento de ordem essencial se pôde fazer em educação, que não dependa, substancialmente, do mestre a quem vamos confiar a escola.

Em nossa preoccupação, tão viva hoje, pela educação popular e universal, não nos temos apercebido de que, acima do número de escolas e do número de alumnos matriculados, importa a qualidade do mestre, o seu preparo cultural e technico, as suas condições de remuneração e de trabalho e os seus attributos de formação moral e social.

Em uma verdadeira democracia o valor da educação só é igualado pelo da saúde physica. O nosso povo, máu grado a sua pequena experiência democratica, tem desse facto uma intuição profunda e singular. E é isso que o faz querer a escola como o instrumento supremo das suas legitimas reivindicações.

Por intermédio da escola, pressente o nosso povo que se lhe deve dar o certificado de saúde, de intelligencia e de caracter, imprescindivel para o seu concurso á vida moderna.

Semelhante tarefa, sem duvida a maior em uma organização democratica, não póde ser confiada a quaesquer pessoas. Muito menos a um corpo de homens e mulheres insufficientemente preparados, sem visão intellectual e sem visão social e que mais não podem fazer do que abastardar a funcção educativa até o nível desolador de inefficiencia technica e indigencia espiritual, em que se encontra em muitos casos.

Essa não é, felizmente, a situação do Districto Federal, onde certa selecção social se vem fazendo no magistério público, que, alliada á unidade vocação e trabalho, nos tem proporcionado um corpo docente de invejáveis qualidades moraes. Nem por isso, porém, se faz menos precisa uma comprehensão mais robusta da funcção social do mestre, para lhe darmos a preparação intellectual e profissional indispensável.

A pessoa a quem vamos confiar as nossas crianças por varias horas durante o dia e a quem vamos pedir, não que as guarde sòmente, mas que as eduque, acompanhando e animando o seu desenvolvimento intellectual e moral, a par e passo do seu desenvolvimento physico, deve possuir um coração e uma intelligência superiormente formados, o conhecimento aperfeiçoado do seu mister e uma visão social larga e harmoniosa.

Taes pessoas não se conseguem se não tivermos, pelo preparo dos nossos mestres e pela retribuição do seu trabalho, o carinho especial que nos deve despertar a classe mais importante de uma sociedade verdadeiramente democrática.

Uma democracia póde ser julgada pelo que lhe merece a classe do magistério, médico esse merecimento pelo esforço feito para o seu preparo adequado e pela importancia da retribuição que se lhe reserva.

* * *

O projecto de reforma do Instituto de preparação de professores, que acompanha esta exposição, busca resolver a primeira parte do problema: a formação adequada do mestre.

Nesse projecto, a actual Escola Normal é transformada em um Instituto de Educação, destinado a ministrar educação secundaria e a preparar professores primarios e secundarios.

Tornam-se dispensaveis maiores esclarecimentos sobre a installação da Escola Secundaria, nos moldes da legislação federal, porque já foi isso objecto de decreto anterior de V. Ex.: Decreto nº. 3.763, de 1º de Fevereiro ultimo.

Na organização dessa escola, introduz o presente projecto medidas de alcance technico, que visam dar unidade e flexibilidade aos seus cursos, agindo á rigidez pouco aconselhavel de certos institutos de instrucção, em que a extrema divisão e independencia das materias faz do ensino um conjuncto de conhecimentos fragmentarios e isolados.

Para obviar semelhante defeito de organização escolar, agruparam-se as materias por secções, confiando-se a direcção das mesmas a professores chefes, aos quaes incumbirá:

a) promover a unidade e a articulação do ensino das differentes materias da secção, entre si;

b) organizar, além dos cursos ordinarios, outros de revisão e de gráos mais avançados, que se tornem necessarios;

c) superintender e acompanhar a execução dos programmas, suggerindo a melhoria dos processos didacticos.

Em complemento a essa medida, estabelece o projecto a constituição de um conselho technico, formado pelos diversos professores chefes. Esse conselho technico promoverá, em um cyclo mais elevado, a unidade cultural de todos os cursos da Escola, que, no seus caracter secundario, visa, acima de tudo, a formação integral da personalidade do adolescente.

Essas medidas, como a de conservação dos cursos de Hygiene e Puericultura e de Trabalhos Manuaes (*), que também se encontra no corpo do projecto, visam, assim, dar à Escola o caracter educativo e geral que deve possuir, como instituição de ensino secundario.

No mais, obedecerá a nova Escola à legislação federal em vigor, tendo em vista a validade dos seus diplomas para as escolas superiores da Republica.

Dado, porém, que o ensino secundario se divide, no segundo cyclo, complementar, em cursos já especializados para aaquellas differentes escolas superiores, tornou-se necessario provêr a organização de um curso complementar especial para o ingresso à Escola de Professores. É sobre o que dispõe o art. 5º do projecto, estabelecendo o ensino das matérias básicas, necessárias ao futuro preparo do mestre.

Emquanto a Escola de Professores não mantiver cursos para a preparação de professores secundarios, o curso complementar será de um anno, limitação que se faz necessaria para não tornar excessivo o tempo exigido à formação do mestre-primario.

* * *

Na Escola de Professores, que se crea no presente projecto, é que se processa, realmente, a profunda renovação dos nossos methodos de formação do mestre.

Estivemos, até hoje, a preparar os nossos professores primarios em escolas secundarias em que se introduziam, para aquelle fim especial, cursos de pedagogia e de psychologia e uma pratica nominal do ensino.

Confundiamos, assim, finalidades culturaes e profissionaes em um só instituto, servindo mal a umas e outras.

Instituto de educação geral ou de cultura é o instituto em que se ministra o ensino para o proveito individual do alumno na formação de sua personalidade. Instituto de educação profissional é o instituto que ministra o ensino, tendo em vista a necessidade do aluno no exercício de sua futura profissão. No primeiro a materia é absorvida pelo alumno para sua formação cultural; no segundo a materia é o seu futuro instrumento especial de trabalho.

Parece-me que essa simples distincção viria subtrair muitas das nossas escolas superiores à permanente confusão em que vivem os seus cursos, que não são nem legitimamente profissionaes, nem verdadeiramente culturaes.

As nossas escolas normaes soffrem egualmente desse vício de constituição. Pretendendo ser, ao mesmo tempo, escolas de cultura geral e de cultura profissional, falham lamentavelmente aos dous objectivos.

É em obediencia às solicitações imperiosas de uma formação aprimorada do mestre, bem como às inevitáveis contingencias de finalidades uniformes para os estabelecimentos de ensino, que o projecto ora submettido à apreciação de V. Ex. eleva, definitivamente, o preparo dos professores ao nivel universitario, criando, na Escola de Professores, que se segue à Escola Secundaria, cursos nitidamente profissionaes para o preparo do mestre. A primeira necessidade desse preparo profissional está na differenciação dos programmas, de accordo com os diversos typos e gráos de professores de que precisa um systema escolar.

Dentro do proprio quadro do ensino primario, torna-se indispensavel differenciar os programmas para o preparo do professor dos tres primeiros gráos e dos dous ultimos. Não só representa o ensino dos tres primeiros annos da escola primaria um ensino que tem caracteristicas especiaes de methodo e de objectivos, como tambem ahi se limita um estagio da idade infantil já apreciavelmente diverso do que se segue, de 10 a 12 annos.

A formação differenciada do mestre para os gráos chamados primarias do ensino (1º, 2º e 3º annos) e do mestre para os gráos chamados intermediarios (4º e 5º annos) se impõe, não sòmente como uma necessidade da organização escolar, diversa em um e outro periodo, como ainda pela transição psychologica e de desenvolvimento physico dos alumnos.

Além dessa differenciação de programmas para o ensino primario geral, tornou-se necessario promover a formação de professores especiaes, ainda primarios, hoje exigidos pelo desenvolvimento que vae tendo o referido ensino.

O projecto determina a formação de mestres especializados para musica, desenho e artes industriaes e domesticas, educação physica e saúde. Todos esses professores receberão o preparo especializado necessario ao exercicio efficiente do seu mistér na escola primaria, não sendo precisos maiores esclarecimentos para fundamentar a necessidade de sua especialização e a das funcções que lhes competirão na escola renovada.

Só o professor de saúde parecerá a alguns uma innovação talvez excessiva. Não o é, porém, dada a importancia do problema na escola primaria brasileira e a insufficiencia de outros agentes ou do proprio ambiente social para prover recursos á educação sanitaria do escolar. O professor de saúde será, não sòmente o instructor de hygiene na escola primaria, como ainda o promotor da acquisição de habitos hygienicos, por parte do alumno, em toda a sua vida escolar, e o visitador social, que levará os conhecimentos de hygiene até o ambiente da residencia familiar da criança.

* * *

Explicados, nesses traços rapidos, os objectivos do Instituto de formação do professorado do Districto Federal, passo a justificar, perante V. Ex., a estructura interna da propria Escola de Professores, segundo foi traçada no projecto.

De accordo com a variedade de programmas que se devem organizar em taes centros de educação e com a necessidade de flexibilidade para a mais perfeita organização technica de seus differentes cursos, não era possivel dar á nova Escola a estructura habitual das escolas brasileiras, mesmo superiores. Nella não se encontra a divisão classica de cadeiras, isoladas umas das outras, mas um largo agrupamento de materias sob titulos do conjuncto.

Só assim haverá, por parte da administração do Instituto, a possibilidade de prover a todos os cursos necessários para os differentes typos de professores a formar e só assim poderá o lnstituto ser o laboratorio de experimentação e ensaio, que deve ser, para o aperfeiçoamento progressivo da preparação dos nossos futuros mestres.

Em cada uma das secções de ensino da Escola de Professores haverá um professor chefe e os professores assistentes necessarios, especializados no conjuncto de materias comprehendidas na secção, embora com preferencias mentaes e tendencias mais accentuadas para alguma das divisões especiaes do grupo.

Acham-se definidos no projecto os cursos que virão a competir a cada secção, assim como a funcção especial de cada um delles na formação unificada, integral do mestre.

De modo geral, esses cursos deverão ser ministrados dentro do schema que passo a expôr, cabendo ás instrucções, que deverão ser baixadas, posteriormente, dar os pormenores dos differentes programmas.

Os cursos funccionarão em trimestres, para permittirem maior variedade em sua organização e melhor distribuição de tempo.

Para a formação do professor primario, o periodo fixado de dous annos assim se distribuirá. O primeiro trimestre será commum a todos os programmas e se constituirá com os cursos geraes e de introducção, necessarios para darem ao estudante uma vista do conjuncto da profissão do magistério e lhe permittirem a escolha do typo de ensino a que se deseja consagrar. Os quatro trimestres subsequentes manterão os cursos de especialização necesssarios para a formação do mestre, segundo o nivel e objectivo do ensino escolhido. O sexto e ultimo trimestre conterá os cursos mais geraes de educação, destinados a synthetisar para o estudante os conhecimentos especializados adquiridos, bem como dar-lhe a visão social e philosophica do seu trabalho e das theorias que o iluminam e explicam.

Dentro desse rithmo de cursos de introducção, cursos de especialização e cursos de resumos ou de syntheses, devem ser organizados os differentes programmas necessarios ao funccionamento da Escola.

A formação dos professores, assim comprehendida, é uma formação de tal ordem pratica, que o centro de gravidade da escola são os estabelecimentos annexos de ensino primario, que devem funccionar como laboratorios para a demonstração (ensino modelo), para a experimentação (ensino de novos methodos) e para a pratica do ensino (classes de applicação).

O alumno, logo no segundo trimestre do curso, começa a frequentar esse laboratorio para observar o ensino (secção de demonstração da escola primaria). No 3.º e 4º trimestres inicia a participação do ensino, ensinando a pequenos grupos de alumnos. E no 5º trimestre pratica regularmente o ensino, assumindo a direcção de classes.

Todo esse curso de pratica do ensino é feito sob a direcção de professores primarios selectos e especializados, constituindo a sua organização os objectivos de uma das secções da Escola de Professores (secção de Pratica de Ensino).

Resta-nos, sòmente para maior esclarecimento do assumpto, explicar o funccionamento das secções e suas relações entre si.

A secção de Educação, á qual compete dar todos os cursos technicos de educação (veja-se o artigo 12), superintende e coordena todas as demais secções, de modo a estabelecer entre os cursos technicos (secção de Educação), os cursos de materias de ensino (secção de Materias de Ensino) e os trabalhos de pratica de ensino (secção de Pratica de Ensino), correlação, harmonia e estreita dependencia. Essa secção de Educação providenciará para que os professores da secção de Pratica acompanhem, pelos programmas e pela constante troca de ideas e informações com os demais professores, o progresso do ensino e dos alumnos.

As secções de Materias de Ensino e de Artes, cujos cursos serão especializados nos termos previstos no artigo 15, ministrarão elementos para a direcção da pratica do ensino, de modo a concorrer para que a desejada collaboração se faça o mais estreitamente possivel, entre os estudos e a pratica dos alumnos.

Pela exposição que acabo de fazer, verá V. Ex., Sr. lnterventor, que o projecto foi elaborado com o desejo de organizar uma Escola de Professores que fosse, realmente, um instituto para a formação profissional do mestre. Não é uma escola para formar especialistas em educação, mas para formar professores primarios e, logo que possivel, professores secundarios.

Mais tarde, com o seu desenvolvimento, poderá esta Escola, que agora attinge o nivel universitario, incluir entre os seus objectivos o estudo especializado da Educação, vindo a ser tambem uma escola de pesquizas educacionaes e de cultura superior no ramo.

Não é, porém, essa a sua finalidade immediata. No momento, cabia-me apresentar a V. Ex. o projecto de reforma do actual systema de preparo do mestre. É o que tenho a honra de fazer com o decreto annexo, no qual devo dizer a V. Ex., collaboraram principalmente o director da Escola Normal, que ora vae ser transformada, a Commissão de Professores designada pela respectiva Congregação, para nos assistir nesse trabalho e offerecer suggestões, e o actual regente dos cursos de Psychologia experimental e suas applicações á Educação, da referida Escola.

Renovo a V. Ex., os protestos de minha elevada estima e distincta consideração. - Rio de Janeiro, Março de 1932.

(a) Anísio Spinola Teixeira
Director Geral de Instrucção Publica

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