TEIXEIRA, Anísio. A propósito da "Escola Única". Revista do Ensino. Salvador, v.1, n.3, 1924.

A PROPÓSITO DA "ESCOLA ÚNICA"

Carneiro Leão em seu último notável livro, sobre a educação nacional, affirma que a "escola unica" é uma aspiração universal. E neste momento, a França faz da implantação do regimen da "escola unica", um dos pontos do seu programma de governo.

Realmente, a idéa tem o seu aspecto seductor, justificam-n’a dois formosos principios: todo homem tem direito a que a sociedade lhe forneça os meios de desenvolver plenamente as suas faculdades; este direito do individuo é, por outro lado, o interesse natural da sociedade.

Uma "escola unica" obrigatoria para todos, ministrando ensino de um modo integral e uniforme, seria o apparelho magico destinado a dar a todos os homens o pleno desenvolvimento de suas faculdades.

A perfeita unidade da cultura e o seu perfeito desenvolvimento creariam a perfeita unidade e a perfeita grandeza nacionaes.

Tal edificio grandioso e simples de instrucção abriria para esse paiz privilegiado o maior caminho de todos os tempos para a republica, para a democracia e para a felicidade nacional.

A simplicidade, entretanto, do projecto trae a sua inexequibilidade.

O seu perigoso ideologismo leva-o a desprezar os mais triviaes elementos da complexa realidade humana.

Se é verdade, que o homem, na sociedade, tem direito ao desenvolvimento da intelligencia em sua plenitude, dahi se não segue que a organização de um instrumento unico, identico para todos e a todos accessivel alla "escola unica", venha abrir para todos os homens a possibilidade de um pleno desenvolvimento de suas faculdades.

Um desenvolvimento absolutamente egual de natureza desiguaes, desenvolve-as plenamente?

Antes pelo contrario, semelhante apparelho de ensino não irá produzir o nivelamento intellectual e moral de um paiz, com a creação de um "typo médio", sem grandes defeitos, porém sem grandes virtudes, typo abstracto de cidadão, em que desapparecessem todas as qualidades e particularidades individuaes?

Como pensar em desenvolvimento identico para todas as intelligencias de um paiz, se uma dellas vae constituir a intelligencia de um paiz, se uma dellas vae constituir a intelligencia do campones, outra a do industrial, outra a do lettrado, a do profissional, a do artista?...

A intelligencia de um dos nossos vaqueiros, por exemplo, de um daquelles sertanejos tão admiravelmente descriptos por Euclides da Cunha, conhecedor da sua terra e das cousas da sua terra, sabio na arte de pastorear o seu gado e na equitação barbara das caatingas, não tem a intelligencia altamente desenvolvida para a melhor adaptação ao seu meio e à sua actividade?

Dar-lhe, dentro das condições desse meio, a educação e a instrucção necessaria ao melhor aproveitamento de suas energias, é completar-lhe a formação.

Mas, atiral-o à educação integral onde elle e o intellectual requintado recebem num mesmo methodo um identico ensino, é desenraizal-o e inutilizal-o.

No seu aspecto fundamental a escola unica se apresenta, assim, em sua simplista uniformidade, desadequada para attender a variedade complicado da especie humana e a sua applicação como um possivel e sempre desastroso nivelamento da intelligencia de um paiz.

* * *

O projecto da "escola unica" retirado da pura theoria, reveste-se entretanto, de uma feição diversa.

Anatole France, em La Vie en Fleur, resume, muito bem, o que é o problema da escola unica na sua feição actual, ou, si queremos, na sua feição politica.

"Não convem mais à nossa sociedade, diz Anatole, que o filho do povo vá à escola primaria e ao filho do rico esteja reservado o Lyceu, onde aliás elle nada aprende.

Depois dessa guerra monstruosa que em cinco annos tornou caducas todas as instituições, é preciso reconstruir o edificio da instrucção sobre um plano novo e de uma magestosa simplicidade.

Igual instrucção para creanças ricas e pobres. Todas irão à escola primaria. Dentre ellas as que mostrarem mais aptidão para os estudos serão admittidas ao curso secundario, o qual, dado gratuitamente, reunirá sobre os mesmos bancos a elite da juventude burgueza e a elite da juventude proletaria. Essa elite enviará então, a sua elite às grandes escolas de sciencias e de arte. Assim a democracia será governada pelos melhores".

Nada mais bonito. A escola primaria é a casa de ensino do pobre. O rico vae para o Lyceu. Tornemos obrigatoria a primeira para o rico e para pobre, e descerremos a este, com a absoluta gratuidade, a porta do Lyceu.

O ensino primario obrigatorio, limiar do ensino secundario; e este, gratuito, preparatorio das especializações de curso superior: está ahi a "escola unica", como a prevêm os desejos de justiça e equaldade de nossas democraticas sensibilidades.

Entretanto, em paizes de perfeita organização intellectual essas tres fórmas de ensino não se sobrepõem, de modo a poder constituir um só edificio educacional, como à primeira vista fazem supôr as proprias designações: primario, secundario, superior.

O primario é completamente independente e isolado. Em sete e oito annos fornece à creança uma instrucção geral e positiva, directamente orientada para a immediata applicação dos conhecimentos.

Da escola primaria ascende o alumno à escola primaria superior, que se destina a desenvolver-lhe a instrucção recebida e dar-lhe, embora sem um ensino propriamente technico, a necessaria formação profissional para ganhar a vida. Seguem-se os cursos technicos.

O ensino secundario, quando bem comprehendido, se distancia do ensino primario desde as suas classes preparatorias ou elementares.

Não se destinando, immediatamente, a formar o homem para a vida economica, o ensino secundario, já naquellas classes, preparatorias, vae recebendo a orientaçáo especifica de um ensino de cultura.

E a cultura desenvolve o homem, sobretudo, em profundidade.

Muito differente da accumulação numerosa de conhecimentos e da instrucção experimental e concreta, a cultura, propriamente dita, nos põe em contacto com o enigma humano e entreabre esse horizontes interiores, eternamente inexplorados, onde o espirito encontra assumpto para as magnificencias sombrias das reflexões e das meditações para sempre insoluveis.

Máo grado a fórma paradoxal, que apenas salienta o esclarecimento que desejo trazer, a cultura nos ensina, sobretudo, que bem pouco podemos saber...

Assim, enquanto uma educação puramente scientifica ou empirica produz esses espiritos positivos, que têm dentro da alma formulas e etiquetas para tudo; a cultura, no sentido humanista e classico fórma essas intelligencias ornadas e amadurecidas, com vistas profundas sobre as cousas e os homens, sem formulas nem soluções feitas para nenhum problema, mas com uma noção exacta da realidade e que sabem que concluir é, muitas vezes, dizer que se não póde concluir...

As classes elementares do ensino secundario se devem inspirar, pois, nesse espirito de profundidade e acabamento, que o ensino primario não requer e não supporta.

A escola primaria não prepara, deste modo, a entrada no Lyceu.

De accôrdo com a nossa analyse, dois ensinos elementares se destacam em uma bôa organização intellectual de um paiz: um, destinando-se a formar o espirito para as necessidades immediatas da vida-primario; outro, destinando-se a preparal-o para a cultura amadurecida do curso secundario.

Em França, com os programmas de 1902 era muito nitida essa differença.

Em 1923, Leon Bérard, para facilitar que alunnos da escola primaria passassem para o curso secundario estabeleceu um exame na escola primaria que daria entrada no Lyceu. Entretanto, não se confundia esse exame com o certificado escolar, que o alumno recebia no final do curso primario, e, apezar da determinação expressa de que se adoptassem os mesmos programmas nas duas classes de escolas, a distincção se mantinha apezar de tudo, e o desenvolvimento das cadeiras em uma e outra, não era de nenhum modo o mesmo.

De sorte que o problema se torna complexo.

A escola unica na sua concepção theorica contraria a grande e invencivel desuniformidade das intelligencias e dos seus immediatos destinos.

A "escola unica" como a quer a democracia, vem ferir uma concepção pedagogica justa e razoavel.

Tornar o ensino primario unico e natural limiar do ensino secundario é unifical-os, o que, de certo modo, fere a essencia de um e de outro.

Ou se irá primarizar o Lyceu ou secundarizar o ensino primario.

Nenhuma das duas cousas é acertada.

Acompanhem-me em distincções que vale muito apontar o que demonstram a minha affirmação.

O ensino primario, já o dissemos, deve sempre ter as suas caracteristicas proprias. Gratuito e generalizado formará a creança economicamente para a vida. O primario superior completará e aperfeiçoará esse ensino, conservando-lhe as mesmas directrizes positivas e praticas.

O Lyceu desenvolve o espirito, em todas as grandes possibilidades especulativas. Amadurece a intelligencia, dá-lhe musculos, torna-a agil, fecunda, audaciosa. Treina em um alto gráo as faculdades do pensamento.

Naturalmente longo, para ser completo este curso secundario se desdobra em dois cursos – classico e moderno, – conforme se destina a uma cultura humanista integral ou ao estudo preferencial das sciencias e linguas vivas.

A "escola unica" transformando o Lyceu na continuação do curso primario deve logicamente evitar essa bifurcação, que ainda permite o curso secundario conserve o seu valor pedagogico.

O Lyceu será, egualmente, unico, como a escola primaria.

Unico, as preferencias democraticas, hoje são todas pelo ensino moderno.

Ora, o que se chama ensino moderno no curso secundario, não é nada mais que ensino primario superior.

E deste geito se iria primarizar o ensino secundario quando os que se dedicam, com orientação mais intellectual do que utilitaria ao problema do ensino, pensam em supprimir o espirito primario, com a suppressão das proprias escolas normaes, que se transformariam em cursos novos, com um ensino secundario integral, seguidos da indispensavel especialização.

Não preciso apontar os perigos dessa primarização integral da cultura.

A reciproca tambem é desastrosa.

Se, para maior harmonia do curso, dessemos ao primario uma organização secundaria, perderia aquelle ensino a sua razão de ser.

* * *

A "escola unica" encerra ainda uma tyrannia inexplicavel em paizes verdadeiramente democraticos.

Effectivamente, tal projecto não póde ser levado a effeito sem a monopolização do ensino pelo Estado. Esta face politica da monopolização é muito grave, porque entregando ao Estado, exclusivamente a educação de um paiz, virtualmente se desconhecem os direitos da Familia. A Familia passa a existir para o Estado, não este para aquella. E todos sabemos de quantos erros é fonte unica, essa inversão perigosa e fatal.

De sorte que, em conclusão, devemos manter a liberdade de ensino e a sua variada e natural organização. Para satisfazer as aspirações de justiça e de egualdade é bastante, aos paizes que o poderem, que se torne gratuito em toda sua extensão o serviço do ensino.

Todos os grandes problemas democraticos confinam com essa barreira do dinheiro. Aos outros Estados, para quem essa gratuidade é impossivel, resta somente distrair-se das formosas illusões egualitarias e não se deixar tentar pela "escola unica".

Que o paiz se desenvolva pelas suas forças vivas e naturaes. A educação do homem dentro do seu meio e da determinação de suas inclinações. Formemos o camponez, um bom camponez. O intellectual, um bom intellectual.

A identidade de programmas e de cursos é um desastroso nivelamento.

A "escola unica" é uma organização artificial. Impossibilita o ensino particular que, desobrigado da rigidez das leis e programmas officiaes é mais ductil, mais maleavel, satisfaz mais completamente as necessidades sociaes e nos fornece uma variedade maior de ensino, para a organização, intellectual do Estado.

* * *

São idéas as que ahi ficam que ferem, pelo menos, uma face, do problema da "escola unica". O assumpto é opportuno para nós desde que pensamos em organizar a educação do Estado e não o poderemos fazer sem o exame desses debatidos problemas. O ensino secundario que possuimos não permitte certamente as considerações que apresentamos. Mas, para o exame do problema não me cabia cogitar sinão do ensino secundario, como deve elle ser e não como o imaginaram os nossos legisladores.

Bahia, Novembro de 1924.

ANISIO TEIXEIRA.

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