TEIXEIRA, Anísio. Padrões brasileiros de educação [escolar] e cultura. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.22, n.55, jul./set. 1954, p.3-22.

PADRÕES BRASILEIROS DE EDUCAÇÃO
(ESCOLAR) E CULTURA

ANÍSIO TEIXEIRA
Diretor do I.N.E.P.

a) Análise dos padrões de educação escolar vigentes, nos diversos graus e ramos do ensino.

b) Avaliação do grau em que estão sendo modificados ou deformados pelas fôrças sociais.

c) Crítica da situação escolar e das necessidades de sua reconstrução à luz de mudanças sociais em curso.

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A melhor compreensão, hoje, do fenômeno social de educação nos leva a conceituar as instituições educativas como instrumentos da transmissão da cultura, sua consolidação e sua renovação. Estudar, pois, a educação corresponde realmente a verificar em que grau a cultura de um povo está sendo mantida e nutrida, para sua integração e renovação, como fenômeno histórico, dinâmico. Está claro que tal interpretação da educação como função integrativa e renovadora da cultura nem sempre se pode aplicar às instituições escolares, como têm elas existido até muito recentemente. A realidade, contudo, é que tal interpretação, primordialmente inspirada pelos estudos sôbre a educação nas sociedades ditas primitivas, fornece, de qualquer modo, um critério para julgar aquelas instituições escolares e saber até que ponto estão concorrendo para a integração ou desintegração da cultura vigente, seu revigoramento e seu progresso, ampliação, aprofundamento e renovação.

O fenômeno da transmissão da cultura se opera, com efeito, pelo convívio social, nas sociedades elementares ou simples a que chamamos "primitivas". As relações entre os membros da família no seio de cada uma e entre os adultos e as demais crianças da tribo ou nação, no conjunto das atividades destas, permitem que a criança e o jovem participem diretamente da cultura e a adquiram, com maior ou menor integração, sem o concurso de qualquer instituição intermediária, especializadamente proposta a êste fim. A função de educar distribui-se, assim, pela própria sociedade, tôda ela, sem nenhuma caracterização específica, salvo a das cerimônias de iniciação e confirmação, que atuam como provas mais ou menos dramática, formal e essencialmente simbólicas, da incorporação cultural, que se dá como processada. Tôda a cultura regular - implícita nos meios de trabalho ou produção, nas relações decorrentes, nos modos de comportamento social, nos credos e ritos dominantes e nos conhecimentos correntes - transmitia-se dêsse modo e, ainda hoje, em grande parte, assim se transmite: pela participação direta nêles do jovem membro da comunidade.

Com o aparecimento afinal da escrita e o enriquecimento da tradição oral por meio desta nova forma da memória coletiva, é que surgiu pròpriamente a escola, como instituição de preparação especial e do Ietrado, a princípio sacerdote, depois filósofo, pensador, moralista, cronista, eruditos de vários tipos e, por fim, o homem de ofício alto ou "livre", o profissional, o artista e o cientista.

A escola, portanto, não surge como instituição destinada a substituir a influência direta da sociedade, nas suas formas de participação educativa, pela vida de família, pelo trabalho em comum, ritos comuns e recreações em comum; mas, sim, como uma instituição específica para a formação de especialistas da tradição escrita, a latere, e sem prejuízo daquela influência social direta, quanto à participação e integração de todos na comunidade.

Não é, por conseguinte, nada de admirar que a escola tenha sido, ou seja como ainda hoje o é, em muitos casos, uma pura escola de letras. Acumulada ou desenvolvida que foi a tradição escrita da humanidade, ler e escrever foram-se tornando artes essenciais para a aquisição dessa tradição cada vez mais importante na cultura de um povo. Adquiridas que fôssem tais artes, teria o indivíduo a possibilidade real de, por si, conseguir até mesmo a plenitude de participação nessa cultura.

E quando, e por fim, ocorreu a necessidade de se dar a todos os indivíduos a oportunidade de partilhar da tradição escrita, que consubstanciava a cultura letrada e mesmo literária de um povo, a escola que se instituiu foi a escola de ler e escrever. E tais artes ultra-especiais haviam de ser ensinadas com dificuldade. Daí todo um mundo estranho e extraordinário de "disciplina escolar", de castigos e de prêmios, com que se havia de inculcar na criança e nos jovens o conjunto de conhecimentos e perícias, que constituiriam o programa escolar.

Ensinar se fêz sinônimo até de castigar. "Deixa estar que eu lhe ensino" ou "deixa estar que a vida lhe ensinará" significa "deixa estar que a vida o castigará". A escola se fêz, assim, não a instituição ajustada às demais fôrças espontâneas e diretas de educação pela participação, que existiam e sempre existem na sociedade; mas, uma agência especial, destinada a inculcar artes e conhecimentos desligados e abstraídos de suas funções reais na vida e, como tais, sem sentido, e porque sem sentido, difíceis de aprender, e porque difíceis de aprender, exigindo disciplina e castigos especiais.

Está claro que essa escola não representa a sociedade e que seus padrões não são rigorosamente os padrões da sociedade. Mas, a despeito de tudo, tal escola se situa dentro da sociedade, os seus professôres pertencem à sociedade, as suas crianças não vêm de outro planeta, mas, da sociedade, que os envolve, os nutre e, a despeito de tudo, os forma. E, por isso mesmo, apesar de todo o seu artificialismo, é (a escola) expressão da cultura de um povo e nela é que pudemos melhor ver muitos dos irredutíveis do carácter nacional, que se afirmam aí mais claros, em virtude mesmo do tipo artificial e artificioso da instituição, transformada, assim, em laboratório extravagante das contradições nacionais. "Chassez le naturel, il révient au galop". A escola é mais uma ilustração dessa feliz expressão da sabedoria gaulesa, feita ilustração dêsse dístico, dêsse feliz alexandrino sentencioso, que poderemos considerar como expressiva manifestação de uma tomada de consciência realista.

Entre essa escola dos primórdios da introdução do ensino sistematizado (escolar) como algo que se fêz, por fim, universal na sociedade moderna e a escola contemporânea, de hoje, há ainda tôda uma evolução a considerar.

Estamos lentamente chegando a uma situação - quero afirmá-lo - equivalente à inicial, ou já de completa e espontânea integração da tradição escrita e técnica no processo global da vida. A sociedade moderna, neste nosso período de civilização, é uma sociedade institucionalizada, em que tôda a cultura se fêz efetiva ou presumidamente uma cultura consciente, dependente de técnicas mais ou menos racionais ou científicas, que têm de ser aprendidas em atividades de participação montadas especialmente para êsse fim. A escola, então, tem de se fazer uma réplica da sociedade - apenas mais simplificada, mais ordenada e mais homogênea, para recuperar a sua capacidade educativa, perdida em virtude de sua concepção e de sua organização iniciais, abstratas ou irreais. Longe de um conjunto de atividades ideais e artificiais, a escola se tem de organizar como a própria sociedade, com um conjunto de atividades reais, integradas e ordenadas, capazes de suscitar uma participação social, que constitui a própria condição para o ato natural da aprendizagem.

A nova escola, que aqui estamos considerando, é a conseqüência de uma sociedade emancipada do mero costume, ou da rotina das tradições, governada por instituições deliberadamente estabelecidas por leis e movida por um mecanismo de conhecimentos extremamente complexos e dinâmicos, isto é de natureza experimental científica. Nesta sociedade em transformação permanente, a parte de integração espontânea do homem em sua cultura diminui na razão direta em que crescem a complexidade social e a velocidade das mudanças e, daí a necessidade de se ampliar a educação intencional, que é a educação escolar, até se tornar a fonte dominante de tôda a educação do homem. Assim sendo, a agência ou instituição que lhe corresponde não pode mais estar a latere da sociedade e nem pode estar apenas dentro da sociedade, pois, - mais do que isto, a refletirá, a representará no seu ser e no seu vir a ser ...

A verdadeira nova escola será, então, o retrato mais lúcido da sociedade a que vai servir. Nela encontraremos, cuidado e cultivado, tudo que a sociedade mais preza, os seus hábitos, as suas rotinas, as suas peculiaridades, e também as suas aspirações, os seus ideais, os seus propósitos, as suas reivindicações.

Está claro que as escolas ainda não são isso. Ao contrário, conservam ainda muito do seu caráter originário de instituições de ensino abstrato e irreal. A tendência generalizada, porém, é para a sua transformação em instituições muito mais amplas, destinadas a condensar e concentrar a experiência social, vista e realizada em condições idênticas às da realidade, para que possa educar como educavam e educam ainda as atividades de participação na vida em comum.

Aí estão, para citar dois exemplos correntes mesmo entre países de pequeno desenvolvimento educativo, os jardins de infância e alguns bons institutos de ensino superior, ambos reproduzindo, na prática escolar e em condições especiais, o ambiente social real, para poderem educar e formar.

No jardim de infância, a criança não vai "aprender", mas viver inteligentemente com outras crianças, sob a orientação de uma especialista em crianças na idade correspondente, para conquistar os hábitos de convivência, a capacidade de brincar em grupo, o domínio da linguagem oral e iniciar-se naquele comando emocional indispensável para se fazer uma criatura humana entre outras criaturas humanas, isto é, na sociedade ou comunidade. Todo o artificialismo da velha escola aí desapareceu e com êle todo o suplício do professor e do aluno, para se fazer, em muitos casos, um verdadeiro jardim de crianças a crescerem felizes e ajuizadas.

No nível superior - quando a escola é, realmente, uma boa escola profissional ou um bom centro de pesquisas - também encontramos a reprodução, na prática escolar, das condições reais da profissão ou da pesquisa. A atividade é uma atividade integrada, realizada por discípulos e mestres, que sabem o que estão fazendo e que comunicam ao que estão fazendo calor, realidade e entusiasmo. Aprender, então, é, sem dúvida, o prazer dos prazeres. Entre o que vai pela sociedade e o que se realiza na escola não há nenhuma distância, a não ser, em certos casos excepcionais, da escola estar, às vêzes, com algum avanço sôbre certas práticas correntes da profissão ou sôbre certos interêsses imediatos que constrangem a pesquisa.

O progresso de reintegração geral ou generalizada da escola nas condições da vida, que hoje se impõe como necessidade em face das novas condições sociais, ainda se acha retardado em relação à escola primária, à secundária ou média e às próprias escolas superiores, pelo menos as de certo tipo profissional que mais refogem ao domínio do espírito científico. Trata-se, porém, insistamos, de retardamento e não de condições que determinem uma estruturação diferente dessas escolas. Um dos países mais resistentes à mudança, como a França, exatamente por haver atingido, no tipo de escola intelectualista ou de letras, uma singular perfeição, está hoje, apesar de sua longa e alta tradição, em franca e deliberada tentativa de renovação de métodos e programas, instituindo a chamada escola ativa inclusive no próprio nível da escola secundária.

Sòmente em face dessa aqui sumariada transformação escolar (potencial quando já não efetiva), é que podemos pretender analisar os padrões de educação escolar, como reflexos dos padrões de educação e cultura da sociedade brasileira, procurando demonstrar até que ponto a nossa escola está concorrendo para uma boa integração social ou, pelo contrário, pondo em perigo a nossa mais desejável e desejada integração social. Padrões históricos e padrões vigentes da educação brasileira. O Brasil amanheceu para a história ainda em pleno Renascimento, e em coincidência com a eclosão do surto humanista, mas, sob a influência intelectual e espiritual da então jovem Companhia de Jesus, organizada como a fôrça de vanguarda da contra-reforma religiosa.

Por isso mesmo, não haveria de ser o Brasil um campo para a afirmação do individualismo europeu, que se vinha afirmando, decorrente da Reforma e do livre-exame, por ela deflagrado e que se ampliou além do que ela pretendeu. Pelo contrário, teve como destino ser um novo mundo de compensação ao que de velho se perdera e em que se buscaria reafirmar a doutrina da autoridade externa ao indivíduo e o conceito de disciplina social pela obediência à autoridade espiritual e temporal, ambas de origem divina.

Temos, pois, que o nosso período colonial (e não só êle) nunca foi nem poderia ser jamais um período em que nos pudéssemos iniciar na experiência nova do individualismo religioso (protestantes) e suas decorrências; e sim, um período de poder absoluto, de caráter mais medieval do que moderno, mitigado apenas pelas condições reais do continente virgem, muito lenta e dispersadamente habitado. Sociológica e espiritualmente vivemos os três primeiros séculos em um regime pràticamente teocrático e intencionalmente de transplantação-restauração feudal, educados, formados e verdadeiramente governados pelos padres - jesuítas e outros - com acidentais conflitos entre o poder temporal e espiritual, graças aos quais, às vêzes, conseguia o indivíduo parcelas de liberdade, quando as conseguia.

A educação escolar da época era a educação dos jesuítas, isto é, uma educação destinada a formar um pequeno grupo de instruídos para o serviço da direção, por êles orientada, da sociedade. Êsses instruídos seriam os sacerdotes e alguns leigos, a serviço dos senhores ou da Igreja. A profissão da inteligência não tinha autonomia na época e em tais condições, e ainda menos a poderia ter com a formação jesuítica, cuja excelência era exatamente a de conseguir treinar a inteligência e mantê-la em completa e passiva subordinação. Quando e se alguma inteligência se emancipava ... era que o método falhara. Embora espetaculares, êstes casos, entretanto, sempre foram raros e arriscados. A história de nossa indepedência intelectual como que poderia datar do Marquês de Pombal e da expulsão dos jesuítas.

De qualquer modo, não podemos falar de padrões escolares brasileiros pois tôda a educação obedecia aos padrões romano-jesuíticos, adotados pela metrópole e impostos à colônia. Os poucos homens cultos tinham formação portuguêsa, mesmo quando não eram de nascimento ultramarino.

Sòmente a transferência forçada da família real e, depois, a nossa transacionada independência nos iriam trazer, senão as primeiras idéias de educação popular e educação secular, as primeiras instituições de tal natureza. Todo o período monárquico, entretanto, ainda transcorreu mais em meio a "debates" sôbre educação, do que em meio a realizações que tivessem vulto para caracterizar verdadeiras tendências nacionais ...

A República, contudo, retomou o assunto com certo vigor enfático. No período republicano, ab-initio, já podemos encontrar os germes do que agora vem ocorrendo em tôda a federação. Com efeito, as primeira grandes contradições nacionais entram a revelar-se. Num país conservado em subdesenvolvimento colonial, começam a circular idéias provenientes dos países de maior desenvolvimento. A elite de formação estrangeira fala em tôdas as reivindicações típicas dos países de estrutura mais ou menos democrático-capitalista, sem refletir, entretanto, que tais reivindicações sòmente seriam possíveis com o enriquecimento. A educação popular, livre e gratuita, era uma consequência direta do individualismo e do sucesso econômico, multiplicado embora, individual ou privado, e o Brasil não tinha condições nem para uma nem para outra cousa. Por isso mesmo, tôda a educação tinha de ser um pio desiderato, de gente bem intencionada mas sem recursos.

Sòmente existiam os poucos "colégios" secundários para a classe abastada, as pouquíssimas escolas superiores profissionais para essa mesma classe e um ensino primário disperso e de proporções reduzidas para uma parcela nem sempre substancial da população.

Depois da primeira grande guerra mundial, o problema ganha, porém um certo ar de realidade e entra a preocupar os dirigentes nacionais. Surge, então, uma corrente de opinião a pleitear, não a educação popular ainda por desenvolver, mas a simples e pura alfabetização do povo brasileiro. Até aí, o problema de educação se erguia ante a consciência nacional como um problema semelhante ao dos demais povos, tal como o víamos daqui ou mesmo lá indo. Tratava-se de reproduzir, no país, as escolas como existiam elas nos países desenvolvidos. Não nos ocorria que não tínhamos nem dinheiro para manter, nem cultura tradicional a perpetuar em escolas semelhantes às daqueles países. As tentativas se sucediam com escolas instaladas, às vêzes, à perfeição e logo depois decadentes.

A idéia de que não podíamos ter escolas como as estrangeiras, mas devíamos tentar a simples alfabetização do povo brasileiro, devemos convir, triste ou alegremente, foi a primeira idéia brasileira autóctone no campo da educação e, talvez, por isso mesmo, destinada a uma grande carreira ...

Tal idéia estava, entretanto, atrasada de quatro séculos: só era nativa pelo seu anacronismo. Com efeito, a idéia pura e simples de alfabetizar era, no Ocidente, originária da reforma protestante: ensinar a ler para ler a Bíblia tivera grande influência na difusão da escola, nos séculos anteriores à revolução francêsa. O conceito, porém, de educação popular, em marcha após aquela revolução e desde o primeiro têrço do século dezenove, e completamente vitorioso, ainda nesse século, nos países desenvolvidos, já era bem mais complexo e envolvia, além de ler, escrever e contar, "educação cívica", "educação moral" e começos de iniciação científica ("lições de cousas" ou "noções de ciências físicas e naturais").

Pelas alturas da década dos vinte, já neste século, descobrimos nós aquela idéia de simples alfabetização e entra a agitar os crônicos debates educacionais brasileiros o novíssimo conflito entre "educação" e "alfabetização". E é êsse, o primeiro conflito real de conceito ou de padrões educacionais.

Certo grupo de educadores, reconhecendo embora a pobreza brasileira, insistia por uma educação escolar adequada às condições, em que já começávamos a ingressar, de estado moderno, em processo embora lento, de incorporação da civilização moderna. Outro grupo deixava-se dominar pelo mito da pura e simples alfabetização. O importante era saber ler. O mais, viria por si, como deveria ter acontecido nos demais países.

A ninguém ocorria verificar que em nenhum país ocorrera semelhante cousa. O puro e simples saber ler podia ter bastado a alguém para ler a Bíblia em outros tempos, e, por meio dessa leitura, se haver educado. Mas, saber ler e assinar o nome, e nada ter para ler pode sempre valer algo; não transforma, entretanto, a nação nem habilita o indivíduo ao progresso ou sucesso individual, necessário para o progresso e o sucesso da nação, no regime de "livre competição" e de capitalismo.

Mas, a idéia estava em feliz adequação com os nossos recursos e tinha uma flagrante aparência democrática, tornando-se logo vitoriosa. Washington Luís, então governador de São Paulo, logo a adotou oficialmente no Estado líder da União, fazendo-se, por assim dizer, o seu pioneiro político, com a reforma em que reduziu o período do ensino primário de cinco para três anos. Depois de já tão drástica redução no período escolar, vieram os turnos. E a nossa educação primária é, hoje, uma simples educação de alfabetização, ensinando, e mal, a ler, escrever e contar ... em dous e até três turnos por dia, em semanas de apenas cinco dias e em anos letivos de 160 dias.

Êsse padrão educacional, vigorante em nossas escolas primárias, é sem dúvida, para não dizer mais, insuficiente, porque não corresponde às necessidades educativas da fase de desenvolvimento que já estamos vivendo nas principais áreas urbanas do país, e representa, sob ares de expansão ou difusão ampliada, um pungente retrocesso social. Os sinais da sua deficiência revelam-se, muito claramente, de dois modos, aliás contraditórios: pela evasão escolar e pela impaciência de obter educação complementar. Na evasão, manifesta-se a decepção do aluno, que não vê utilidade na educação puramente formal que lhe ministram; uma impaciência por educação secundária, em continuação, manifesta-se a decepção do que logrou ajustar-se ao tipo de ensino formal e já agora vê que só dêle se aproveitará se o prosseguir no mesmo sentido, até o curso secundário.

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A realidade é que estamos a cultivar padrões escolares primários perfeitamente superados para os tempos em que estamos vivendo. Seja na zona rural, onde se deveria tentar, menos talvez que a escola tradicional de crianças, algo como um centro de educação de adultos, sob a direção de um modesto líder social e servido pelo rádio, seja na zona urbana, - a escola tem de ser, hoje, não pode deixar de ser, alguma cousa mais que uma casa de ler, escrever e contar. O nosso conhecimento do processo de aprendizagem e o conhecimento da marcha do processo social de modernização, que está em curso em todo o mundo, leva-nos a compreender que a escola tem de acompanhar o nível de desenvolvimento da sociedade a que serve, constituindo-se em centro de reintegração cultural - o centro de integração das mudanças de qualquer modo em curso, em todos os setores da vida do país.

Isso corresponde sobretudo a uma mudança na formação do magistério - nos padrões da educação dita normal e na elaboração do chamado livro didático, com uma larga substituição do estudo de "matérias" ou "disciplinas" pelo estudo de atividades correntes do meio, postas ao nível dos alunos.

Como se acha organizado, o ensino primário brasileiro não é a formação comum do homem brasileiro - do nosso homem, e nem mesmo se pode aceitar que concorra para tal formação; pois é um simples curso preparatório para o ginásio de letras, que o sucede. E padrões escolares nesse nível estão, assim, duplamente superados. Superados, como ensino de formação, que como tal não satisfaz às necessidades de educação elementar do educando nacional (e daí a evasão e a repetência tremendamente acentuadas na escola primária); e superados, mesmo como ensino preparatório de letras, porque êsse tipo de ensino não convém nem mesmo aos que o vão continuar, passando da escola fundamental para a escola média.

Não se pode, em face disso, julgar que a escola primária esteja cumprindo a sua função de integrar culturalmente a população brasileira ou integrá-la em seu progresso e em suas necessidades.

Ao ensino primário, reduzido no tempo e no programa a mero ensino preparatório e, como tal, duplamente deficiente, - já para os que não o terminam, porque de pouco lhes aproveita o que aprenderam, já para os que o terminam, porque apenas os habilita a continuar uma educação de letras, inadequada para o "ganhar a vida" da maioria do povo brasileiro, - sucede, entre nós, a educação chamada secundária, em que se concentram mais de 80% da educação média.

Quais os padrões dessa educação média existentes no país? Até muito recentemente, em rigor até 1930, a educação média com preocupação popular era a chamada técnico-profissional, compreendendo escolas de ofícios, escolas normais, escolas comerciais e escolas agrícolas. A escola chamada secundária - de tipo acadêmico ou pré-acadêmico - não tinha caráter popular, constituindo simples escolas preparatórias ao ensino superior, com um currículo de humanidades ampliado com algumas línguas estrangeiras e ciências.

Um conflito semelhante ao que devastou o ensino primário já lavrava também nesse nível médio do ensino. Certa parte do país se inclinava pelo ensino técnico-profissional, como o ensino adequado a uma jovem república democrática e capaz de formar o seu operariado qualificado, em contraposição à república frustradamente aristocrática de "funcionários e doutores", que a escola acadêmica de humanidades ou pseudo-humanidades estava a formar e pela qual se batia outra corrente da cultura brasileira.

Como, no ensino primário, o debate entre alfabetização e educação, também aqui o debate entre ensino técnico-profissional e ensino acadêmico se fazia, sob vários aspectos, um debate de idéias e orientação políticas. O Estado resolveu manter apenas ginásios-padrão, de tipo acadêmico, para a formação da chamada cultura geral, deixando a responsabilidade de sua expansão aos particulares, e dispôs-se a ampliar a rêde de escolas técnico-profissionais, de escolas normais, de escolas agronômicas, etc. Pode-se bem ver como esta era a política dominante, observando-se os melhores sistemas escolares da nação - os do Rio de Janeiro (D.F.) e de São Paulo. Logo após as escolas primárias, erguiam-se as escolas normais e técnico-profissionais, em belos edifícios, servidas por laborioso professorado e distinguidas com a preferência carinhosa dos governos. Ao seu lado, no Distrito Federal, existia um único ginásio oficial, da União, - o Colégio Pedro II. Em São Paulo, o caso se repetia com pouquíssimos ginásios do Estado e uma rêde também oficial de escolas normais e profissionais, algumas de primeira ordem.

Durante certo período, o conflito entre os dois tipos de escoIas médias - o popular e o profissional e o acadêmico e de "classe" - nem chegou a se inflamar. Era antes um dualismo do que um conflito. Acompanhava aliás, uma divisão corrente na Europa, sobretudo na França, com o ensino para a "elite" e o ensino para o povo, o ensino para chamada "classe dirigente" e o ensino para os dirigidos.

As duas escolas coexistiram de certo modo pacìficamente, até a década de 20 a 30, quando começou a se processar a "revolução" brasileira, que ainda continua, e em que a nação está a buscar encontrar-se consigo mesma e elaborar fórmulas próprias para a solução dos seus problemas também próprios.

Nesse período é que começa o país a sentir as contradições de todo o sistema recebido ou imitado passivamente do estrangeiro. Numa das escolas se pretendia educar a mente e noutra as mãos - como se vivêssemos numa sociedade em que uns trabalhassem e produzissem e outros apenas gozassem e contemplassem. Assim fôra em tôda a antiguidade e assim fôra, com efeito, entre nós, durante o regime colonial e monárquico, fundado na escravidão. Suprimida esta, o nosso enraizado espírito de classe no sentido corrente de qualificação "social" entrou a cultivar uma falsa teoria pedagógica (falsa porque sobretudo caduca), propícia à conservação dos preconceitos caros à nossa tradição.

Na realidade bem vista do mundo, entretanto, desde o Renascimento ou desde Bacon, desde o surgimento do método experimental ou científico, ficara, em princípio, definitivamente vencida a idéia de uma educação da mente, oposta à educação das mãos; de uma educação de cultura (ilustração ou iluminação) geral, oposta a uma educação especial ou profissional; de uma educação de classe dirigente, oposta a uma educação de classe dirigida. Tôda a educação passou racionalmente, devia passar a ser uma só, isto é: - a educação para descobrir e para fazer, só havendo nela diferença de graus, de menos e de mais educação ou de educação nisto ou naquilo, mas, tôda ela, equivalente e da mesma natureza.

Com efeito, desde que o homem verifica que o seu espírito não era apenas a máquina especulativa e contemplativa, que criara o método dedutivo, mas um instrumento de observação e de descoberta, pensamento e ação se fizeram a mesma cousa, não podendo ninguém pensar sem agir, nem agir sem pensar. A imensa conciliação assim operada pelo método experimental teria de unir e iria unir o trabalho e o pensamento, a oficina e a escola, a prática e a teoria ... Pensar não era, já não era contemplar, mas investigar, e investigar nada mais é que trabalhar com a atenção necessária para descobrir o que se passa no trabalho e daí extrair a teoria, que vai depois orientar o trabalho reconstruído e progressivo de todos os que, sem capacidade de descobrir, tenham a capacidade de compreender, pelos resultados, o alcance da descoberta, na prática a aplicando, por ela orientando-se e com ela elevando o seu pragmatismo.

Desde, pois, a descoberta do método experimental que desaparecera qualquer razão para o dualismo de educação intelectual e educação prática, e tôda a posterior sobrevivência da educação intelectualista foi a simples sobrevivência de resíduos culturais de épocas superadas.

Os nossos imediatos e atuantes modelos estrangeiros estavam, porém, dominados ainda pelo velho dualismo para aqui transplantado ou aqui restaurado, e que copiamos servilmente, com as nossas escolas técnico-profissionais ("de ofícios", "de artífices" ou "de aprendizes") imbuídas do espírito e do preconceito de uma educação popular, à parte, anti-intelectual, empírica ou simplesmente prática, como tais destinadas às classes desfavorecidas e sem prestígio social, e de uma educação de "colégios" ou ginásios, imbuídos do espírito ou do preconceito de uma educação de classe, qualificada, pretensamente humanística, literária, intelectualista e teórica, destinada à "elite" ou classe dirigente.

O debate entre os dois tipos de ensino, quando brotava ou se tornava agudo, era, assim, algo de anacrônico, baseado em dois conceitos superados, pois, nem a educação de intelectuais podia ser intelectualista, nem a educação dos trabalhadores podia ser "empírica", mas, antes, deviam ambas ter o mesmo novo caráter de educação experimental, buscasse a escola, nos seus vários graus, formar o cientista ou o humanista, o profissional superior ou o operário qualificado. O novo conhecimento era um só. A teoria do maior dos sábios um laboratório de pesquisas, mesmo os do tipo "ciência pura", já era a mesma teoria que dirigia o trabalho do menor dos operários de uma fábrica moderna ...

Mas a Europa - de uma parte da qual herdamos o modêlo para as nossas escolas - possuía uma civilização histórica, com forte sobrevivência ou persistência de artesanato, em que predominavam o empirismo e os hábitos artísticos de sua população, e não a nova tecnologia do novo pensamento experimental, integrada numa renovada cultura. O desenvolvimento desigual da industrialização, até mesmo ali, impedia mudanças decisivas, sobretudo onde havia estancamento ou lentidão de progresso econômico e deficiências acumuladas de renovação e reintegração da cultura ...

Quanto a nós, nada melhor havia - pensava-se ainda - do que copiar os velhos modelos de escolas e os modelos de racionalização que os justificaram, considerados comprovados ou aprovados pelo tempo ou pela tradição, quando não pela relativa eficiência que tiveram.

Surgiram mesmo, então, defensores à outrance, tão audazes quanto retardatários, da educação profissional como educação prática, para a massa, e os defensores requintados da educação "clássica" ou "humanista", diziam, concebida como educação literária, para a elite ou para "a formação de nossa elite", insistiam. Essa elite seria educada por meio do latim, com o que se esperava manter algo que se chamava de "nossa civilização". Com uma elite que soubesse latim e u’a massa educada dentro dos limites de um estreito empirismo - esperávamos construir uma nação que em nada desmerecesse dos "grandes modelos europeus".

Tais "grandes modelos europeus" não tinham, porém, êsse dualismo educacional por motivo de seu progresso, mas por motivo de sua história ou antes do pêso morto de tradições não descartadas a tempo, algumas ainda à espera de condigno arquivamento... Não era tal dualismo educacional que as fazia progredir, mas, pelo contrário, se e quando progrediam ainda era a despeito dêle e o seu progresso acabaria por destrui-lo implacàvelmente.

A América do Norte, que teve a sorte de não receber a transplantação da idade média, e à qual não chegara nenhum feudalismo de contrabando, fora de tempo, pôde logo emancipar-se dêsse dualismo e dar à sua educação o caráter de continuidade condizente com a nova compreensão do fenômeno da inteligência humana e da sua atuação na vida. Também lá as escolas médias surgiram já como escolas de latim, já como escolas práticas - mas, depressa, ambas se fundiram numa escola diversificada e múltipla, estudando latim ou carpintaria, com dominante espírito de observação, experimentação e prática.

Entre nós, o dualismo se conservou até bem pouco, com escolas puramente acadêmicas e escolas práticas ou profissionais. Recentemente, as últimas passaram a chamar-se de industriais, no que já revelam um como pressentimento da sua capacidade de formação técnica, e os cursos secundários acadêmicos se fizeram ecléticos, pretendendo ensinar um pouco de tudo.

Com o progresso do espírito democrático, que é, acima de tudo, um espírito de unificação e de destruição dos dualismos intelectuais, que se não encobrem disfarçam os dualismos sociais, o povo resolveu ingressar, não na escola "prática", que a priori se lhe destinou, mas na "acadêmica", com tanto maior razão quanto se pretende que seja esta a escola de formação da "elite" e o povo não vê razão dêle também não se fazer "elite", e por tão simples processo, quanto o de estudar sòmente com a cabeça e não com as mãos e aprender latim e não a trabalhar inteligentemente.

Além do mais, tal escola "acadêmica" nunca foi uma escola cara e por isso pôde existir, e até multiplicar-se, em períodos de grande pobreza social. Ora, o Brasil, a despeito do seu início ou inícios de progresso, ainda é vastamente pobre, não possuindo recursos para a escola moderna de conhecimentos e saber experimental, com seus laboratórios e oficinas; logo, que grande "descoberta" não é esta de educação por meio de livros, no melhor dos casos, e, na grande maioria, sem nem sequer livros, mas, apenas, notas ditadas pelo professor, como qualquer velha escola da idade média.

Assim como a escola primária de alfabetização foi a "descoberta" brasileira no ensino primário, a escola secundária de letras, de tempo parcial, falsamente intelectualista, falsamente humanística e falsamente eclética, tudo tentando ensinar e nada realmente ensinando, está sendo a "descoberta" brasileira no nível médio. Expandimo-la e continuamos a expandi-la ... até que se haja de tornar a escola para todos os adolescentes brasileiros.

A nossa esperança - sem paradoxo - está nessa mesma expansão. Buscada como um privilégio, deixará de ser tal, em virtude de sua própria generalização e, nesse dia, um novo processo terá início - o de sua transformação na escola moderna de nível médio, que se há de criar também no Brasil, em virtude mesmo do seu progresso real.

Do ponto de vista nacional ou de quem vê a nação em sua realidade, os padrões de educação da escola média brasileira estão, assim como os vemos e os expus, longe de atender às necessidades do seu desenvolvimento cultural, quer material, quer social. Ao ímpeto do seu iniciante progresso industrial e às exigências crescentes de sua intensa urbanização, estamos oferecendo uma escola de meias letras, com métodos anacrônicos de memorização, a funcionar em meio ou têrço de tempo, e a produzir em série adolescentes desadestrados mental e pràticamente, que buscam sobretudo no serviço público já pletórico a sua única possibilidade de emprêgo.

E daí partimos para o ensino superior. Escasso até bem pouco tempo, prolifera hoje, quase repentinamente, em cêrca de 595 cursos, com mais de 64.000 alunos. Se refletirmos que, vinte anos atrás, não tínhamos senão 286 cursos com apenas 27.000 alunos, podemos medir a tremenda expansão, que não só no tempo, mas também no espaço, por todos êstes vastos Brasis, se pode observar ...

A constante brasileira de dualismo (mais um) entre o Brasil que "resiste" e o Brasil que "se adapta" vai também encontrar-se no ensino superior, onde se manifesta pelo conflito entre "ensino livre" e "ensino oficial", paralelo ao conflito "alfabetização versus educação", no ensino primário, e ao conflito ensino técnico-profissional versus ensino acadêmico, no ensino médio.

O drama do ensino superior, como o chama com razão Almeida Júnior, está cheio das mesmas lições e, ao meu ver, nos conduz a esclarecimentos idênticos aos que nos trazem os dois outros dramas, o do ensino médio e do ensino primário.

É sempre o mesmo esfôrço impotente do govêrno e da lei para manter "padrões" pré-concebidos, rígidos, uniformes e artificiais, fundados e inspirados nos modelos das escolas européias, para uma nação nas condições as mais desencontradas possíveis de desenvolvimento cultural e de riqueza econômica, - sempre com o mesmo resultado: o não cumprimento generalizado daqueles padrões e conseqüente degradação das condições escolares, que nem são as da lei, nem as de um livre esfôrço experimental, mas uma desmoralizada e desmoralizante contrafação e simulação de umas e outras, concorrentemente fraudadas e frustradas.

As vacilações e oscilações entre ensino livre e ensino oficial, afinal, se fixaram em um regime misto de ensino oficial e ensino equiparado, mas, já agora, se insinua ou já se ostenta a tendência à federalização, como se reconhecida e demonstrada tivesse ficado a impossibilidade, pelo menos econômica, da escola superior privada, que os poderes públicos apenas suplementariam se e quando necessário fôsse.

O grave, porém, não é sòmente isso, mas, como sempre, o conflito entre os padrões legais, abstratos, uniformes e rígidos, e as condições reais de cultura e de recursos do meio, diversificadas, desniveladas e fluidas. Essa contradição, irremovível, de essência, faz com que a expansão do ensino superior - que é uma autêntica necessidade, em princípio - se faça, como a dos outros ensinos, em particular o ensino médio, nas condições menos desejáveis e, como já disse, até desmoralizantes, porque as novas escolas com aquela necessidade não se equacionam ou mal se ajustam, e não são por isso mesmo germes promissores de futuras grandes escolas, mas, de regra, contrafações e simulações grosseiras de algo abstratamente dado como perfeito e acabado e em tudo idêntico às boas e grandes escolas.

Os que julgam que tal situação é irremediável, baseados nas múltiplas experiências da legislação brasileira do ensino superior, estão, a meu ver, esquecidos de que as condições mudaram ou estão mudando muito no Brasil e que hoje pode-se tentar, com êxito, o que, em outros períodos, fracassou completamente.

Três pontos podemos e devemos fixar, desde agora, como básicos e orientadores: primeiro, a necessidade do ensino superior é real e sentida, havendo mercado para os profissionais e especialistas que se vão preparar; segundo, a possibilidade de contrôle e verificação indireta dos resultados do trabalho escolar é muito maior; terceiro, o conhecimento do que é um bom ensino superior, muito mais desenvolvido.

E nessas bases, estou em que não se deve ter receio e não tenho receio de aconselhar um regime de ensino superior pràticamente livre, isto é, com o mínimo de imposição externa, sujeitos os seus resultados ao contrôle de exames de Estado, compreendidos êstes, digamos, como hoje são compreendidos os concursos para os cargos públicos.

Parece-me que, dêsse modo, se criariam as condições para, sem coarctar as fôrças sociais que estão a reclamar novas e legítimas oportunidades educativas, transformar-se a expansão educacional brasileira em um movimento saudável e promissor de tentativas, experiências e esforços, que, gradualmente, iriam se concretizando nas escolas sofríveis, regulares, boas e, afinal, nas ótimas que todos desejamos.

A expansão, porém, que se deu e se está dando não é isso, em face dos motivos que já expusemos. Não se pode, entretanto, negar que, como no nível primário e no médio, do ponto de vista cultural, está, diríamos, a perder o acanhamento e a tentar, sob êsse aspecto, com certa desordem, mas não pequena coragem, ser êle próprio ... Não se pode, com efeito, tudo condenar, mesmo no errado ... Apesar de não ser de todo puro o esfôrço nacional, apesar de haver muito de falso ou mau interêsse na busca indiscriminada dos diplomas, o ímpeto de hoje, sob certos pontos de vista aceitável, é preferível à estagnação de ontem ...

Há que aproveitar o novo dinamismo social, que tais atividades provocam ou põem de manifesto, e buscar re-dirigí-lo no sentido da autêntica construção nacional. A escola superior, sem os velhos requisitos das suas congêneres estrangeiras, improvisada e ardente, é a réplica, no nível universitário, da desabusada atitude que vem tomando o país de fazer educação escolar com a prata de casa. Há uma ingênua e vigorosa confiança no futuro e, sobretudo, um sentido talvez errôneo, mas interessante, de fazer as cousas a nosso modo, sem maiores preocupações já agora de imitação ou de obediência a padrões estrangeiros e até sem pensar nêles, compreendê-los e adaptá-los ... Creio que se poderão encontrar aí motivos de esperança ...

Tanto a nossa escola primária, quanto a secundária e a superior, podemos dizer que estão sendo criadas em pleno regime de improvisação e, por isso, em condições de fluidez e plasticidade que podem vir a constituir-se em uma grande oportunidade. Tudo está em retirar-lhes as sanções "legais", retirar-lhes os privilégios "legais" e re-orientá-las para um progresso real, no mérito, gradual e constante.

Jamais deixei de reconhecer, apesar da extrema severidade com que julgo os nossos padrões escolares, o que há de esplêndido vigor nessa nossa expansão educacional, recente e em curso. O interêsse e a comovente paixão com que Municípios, Estados e particulares estão a construir prédios, improvisar professôres e fundar escolas, de todo gênero, são, sem dúvida, dignos de amparo e estímulo, a par de diligentes esforços de orientação, sem parti-pris, sem imposições, oferecida e livre, compreensivamente aceita, a bem do melhor e do mais promissor em progressividade.

Possamos nós descobrir os modos e meios de coordenar tôdas essas energias e canalizá-las para um grande e patriótico esfôrço nacional, autêntico, planejado e vigoroso. Ainda recentemente, caracterizava eu do seguinte modo a conjuntura educacional que estamos vivendo.

Estamos francamente a viver uma fase contraditória da nossa evolução escolar. Se, até recentemente, a luta no país era para se compreender a necessidade de educação escolar, impondo-se uma verdadeira pregação para a criação de escolas e a sua aceitação pelo meio, agora é a população que se bate por escolas e, à míngua de maior esclarecimento, as deseja de qualquer modo, boas ou más, improvisadas ou adequadas.

Como resultado dessa nova consciência social, o sistema escolar brasileiro vem se expandindo, em todos os níveis, com indisfarçável ímpeto e não sem grave perigo para aquêles padrões de qualquer modo indispensáveis para as instituições de ensino de um país jovem e de frágeis tradições de organização cultural.

À vista disso, estão as escolas primárias multiplicando os seus turnos e reduzindo, conseqüentemente, o seu esfôrço educativo; as escolas secundárias aumentando as suas turmas, congestionando os seus prédios, funcionando também em turnos ou períodos parciais, ou, simplesmente, se multiplicando em novos colégios sem instalações nem professôres devidamente preparados; as escolas superiores seguem o mesmo caminho, havendo aumentado entre 1940 e 1950, de 91 novas unidades e de 1950 até esta data, de 55, achando-se projetadas mais 40 para funcionamento no corrente ano.

São, assim, manifestas as novas fôrças sociais atuantes no país e que estão a exigir, diria mesmo, a impor a expansão das oportunidades escolares até o presente oferecidas aos brasileiros. O particular desafio lançado por tal imposição ao govêrno brasileiro é o de conduzir estas novas fôrças de desenvolvimento de modo que, sem coartá-las indevidamente, as provoque para a libertação das energias necessárias ao processamento do seu progresso, com o esfôrço e o sacrifício que se fazem indispensáveis para que as nossas instituições escolares não se diluam em uma expansão incoerente e contraproducente, sem normas nem padrões.

Tal esfôrço disciplinador só poderá ser conseguido se as três órbitas de govêrno da República harmonizarem os seus poderes e os seus recursos nesse grande empreendimento comum que é o do desenvolvimento de suas instituições escolares.

Presentemente, as atribuições dos poderes da República, municipal, estadual e federal, se duplicam ou se fragmentam e os seus recursos se mantêm totalmente independentes uns dos outros, nas iniciativas que toma cada um dêles. Dessa forma, os próprios poderes públicos aumentam a confusão em que se debatem as escolas em seu ímpeto de expansão, gerando uma irresponsabilidade generalizada em relação às consequências globais ou de conjunto.

Parece-nos, assim, que seria chegado o momento de se pensar em um plano unificado de ação, em que os três poderes juntariam os seus recursos para uma ação coordenada e contínua, nas órbitas do Município, do Estado e da União, em prol do desenvolvimento disciplinado de suas escolas.

A respeito das dificuldades que, por certo, existem para um plano dessa ordem, cumpre-nos reconhecer que o espírito de nossa Constituição não só o permite como o indica, nos dispositivos do capítulo sôbre educação e cultura. Por outro lado, se o plano, em vez de optar pelo centralismo da sua autoridade executora, escolher corajosamente a orientação descentralizadora, confio em que venha a despertar insuspeitadas fôrças de cooperação nos Estados e Municípios. As linhas fundamentais do plano consistiriam, assim, na atribuição aos poderes municipais da função de administrar a escola primária e, em certos casos, a média e secundária; na atribuição ao Estado da função de formar os professôres e manter o ensino médio, secundário e superior; e à União, a função supletiva, de preferência mediante a assistência financeira e técnica, e, além dessa harmônica distribuição de funções, na unificação dos recursos das três ordens governamentais, despendendo o município a totalidade dos seus recursos para a educação no ensino primário, no que seria substancialmente ajudado pelo Estado e pela União, os quais, por sua vez, despenderiam, além do que fôsse atribuído a essa assistência ao município, os seus restantes recursos na formação do magistério e no ensino médio e superior.

Pôsto, assim, o sistema escolar público na órbita municipal, ajudado pelas instituições complementares do sistema dos Estados e pela assistência técnica e financeira da União, tôda a obra se desenvolveria em uma ação, descentralizada administrativamente, mas unificada no seu planejamento global, evitando-se a duplicação e a expansão unilateral ou extravagante.

Conclusão

Examinamos os padrões escolares vigentes no Brasil, embora, e até bem pouco, muito pouco brasileiros, e mostramos como a tendência nacional para se adaptarem às condições reais de pobreza econômica e de deficiência em tradições progressivas, vem reduzindo e simplificando tais padrões, com perigo real para a cultura brasileira, mas, ao mesmo tempo, com certos indisfarçáveis visos já de autonomia. Na realidade, estamos desenvolvendo o sistema escolar existente, que é um sistema anacrônico e deficiente, mas, ao expandi-lo estamos a simplificá-lo e reduzí-lo nas exigências de condições materiais, de conteúdo e de preparo do magistério, isto é, nos seus padrões. A situação, por isto mesmo, tende a ir além dos propósitos explícitos. Operada a simplificação, quase diria, liquidação dos padrões, que não eram genuínos, mas não eram dos mais baixos, outros irão surgir em seu lugar, terão de surgir ainda, oxalá que, por fim, melhores e mais legítimos, porque mais ajustados ou equacionados com a realidade, se de fato o forem, como todos devemos desejar.

Com efeito, o sistema escolar brasileiro é um sistema artificial de ensino, desligado da realidade e da cultura ambiente, com um currículo uniforme, fixado por lei e até programas uniformes e também oficiais, rígidos. É êste sistema que está sendo liquidado pela própria expansão escolar desabrida. Dia chegará em que teremos de oficializar a liberdade de ensino, porque ela já terá sido conquistada pelo não cumprimento das leis de ensino, em avançado processo de des-moralização, não só da parte dos seus executores como da parte dos que ao seu cumprimento estão obrigados. Cada concessão irregular que se pratica em relação ao ensino secundário ou superior é um golpe nessa legislação, de intenção coercitiva, mas efetivamente sem sanções operantes efetivas. E tais concessões são cada vez mais numerosas, diria mesmo incontroladas ou descontroladas.

Essa liquidação dos padrões escolares "legais" irá determinar o aparecimento de padrões escolares "reais" repito por outras palavras, e obrigar à mudança de legislação. Nesse momento é que devemos poder abrir, por uma legislação inteligente e realista, um caminho para o efetivo e autêntico progresso escolar brasileiro, com adequação às condições reais e às exigências ou às aspirações da cultura brasileira.

A confusão atual, vista em perspectiva, é a mais natural possível e, sob certos pontos de vista, até sinal de reação orgânica em busca de saúde, como o alarma da reação febril nos nossos organismos individuais ... O sistema escolar legal que aí está é um diminuto colete de gêsso para um organismo em anseios de expansão. Foi idealizado para conter, para impedir o desenvolvimento escolar brasileiro. Para tal, imaginaram-se escolas - secundárias e superiores - absolutamente uniformes, requintaram-se as exigências para seu licenciamento, fizeram-se extremas exigências quanto ao professorado e, acreditou-se, em face disso, que as escolas não apareceriam, ou, se aparecessem, que seriam perfeitas, isto é, perfeitas do ponto de vista preconcebido do legislador livre de peias críticas, pois, uniformes e abstratas, está claro que não seriam perfeitas, nem como adaptação ao meio ambiente, nem como instituições destinadas à sua renovação.

Mas, como vimos, as escolas apareceram, quebrando todos os padrões e criando a confusão atual, em que já não há outra saída senão a mudança da legislação - a vigente de todo em todo superada, cumprindo à nova, já agora efetivamente formulável para a escola legìtimamente brasileira, admitir e acoroçoar objetivos diversificados e flexíveis, adaptados às condições regionais de cada zona cultural, e adequados aos seus variados desenvolvimentos.

Superada a fantasia legislativa dos sistemas escolares uniformes, ideados pelos caprichos intelectuais do legislador, não iremos conservar e muito menos repetir êsses monstruosos códigos de educação, mas, fixar na lei apenas os objetivos amplos e claros da escola e dar-lhe recursos para que ela se crie ou se reajuste e cresça e se aperfeiçoe dentro das condições ambientes, autônoma e responsável, procurando, apesar da diversidade de programa e de condições, certa equivalência de resultados dentro dos objetivos comuns.

Nesse dia, nesse dia sòmente, podemos falar a rigor de padrões escolares equivalentes aos padrões de educação e cultura da sociedade brasileira, pois, então, a escola será, na realidade, aquêle "meio social especial, purificado e renovador" de que fala Dewey, refletindo, como um espelho, a sociedade a que serve, no que ela tem de melhor, e contribuindo para a retificação dos seus erros ou aspectos menos desejáveis. Esta nova escola, viva e real, veraz ou autêntica, feita sob o figurino concreto do seu próprio meio social e não o figurino artificial, pré-concebido e abstrato da lei, será então, aquela agência ou instituição de que falávamos a princípio, de transmissão, integração e renovação da cultura brasileira, constituindo-se, assim, efetivamente, em maior e eficaz artífice da solidariedade e segurança nacionais.

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