TEIXEIRA, Anísio. A universidade de ontem e de hoje. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.42, n.95, jul./set. 1964. p.27-47.

A UNIVERSIDADE DE ONTEM E DE HOJE

ANÍSlO S. TEIXEIRA
Da Univ. do Brasil

Em sua evolução, das mais lentas da história, a Universidade, misto de claustro e de guilda medieval, procurou mais isolar-se do que participar do tumulto dos tempos. Seu espírito de segregação ainda era manifestamente acentuado nos meados do século XIX, apesar de se haver iniciado na pesquisa desde o comêço do século. Mas, seja com Humboldt ou com Newman, pesquisa pela pesquisa, para se atingir o saber pelo saber. A casa do intelecto partia do saber do passado para o saber do futuro, mas conservava o objetivo da harmoniosa cultura clássica, a coroar-se com o prazer supremo de buscar o saber nêle deleitar-se em olímpica contemplação.

O saber aplicado e utilitário era olhado com desdém e considerado um abastardamento dos objetivos da instituição, que visava antes de tudo à vida do espírito. Não percamos de vista que a universidade de preparo de profissionais, ou mesmo de cultura geral para a formação da elite, já seria uma universidade de certo modo prática. Com a pesquisa, como foi inicialmente concebida, voltou-se à preocupação da busca do saber pelo saber, pela tôrre de marfim, pelo mandarinato de eruditos e pesquisadores.

Pouco importa que a busca do saber pelo saber acabasse por ser a mais prática das buscas e deflagrasse as aplicações sem conta que marcaram o fim do século XIX e começos do vigésimo. A realidade é que isto não fazia que a universidade se sentisse responsável pela aplicação do conhecimento, cuja marcha se completava graças a seu trabalho de profundidade mas sem a sua participação.

A comunidade de mestres e estudantes do fim da Idade Média continuava em sua independência e isolamento. O culto do saber do passado, ou a busca do saber do futuro era a forma leiga de convento, de alheamento aos negócios do mundo e de entrega da vida aos prazeres do espírito.

É verdade que essa atitude de puro isolamento de algum modo se corrigia com a formação do profissional, em pequeníssimo grau com a formação do clero, um pouco mais com a formação do bacharel em direito, substancialmente com a formação do médico e, muito depois, em grau mais acentuado, com a formação do engenheiro. Atentemos, contudo, que essa formação profissional não constituía o coração da universidade, mas sua extensão ou desenvolvimento, pois, onde se guardou a tradição da cultura geral, a formação universitária era a da cultura clássica, seguida da pesquisa, primeiro relativa a essa cultura clássica e sòmente mais tarde relativa à ciência experimental.

Mesmo depois que a Universidade aceitou a ciência experimental, nem por isto se rendeu à pesquisa de ciência aplicada e se deixou envolver nos negócios do mundo, mas insistiu em acentuar o caráter "desinteressado" de sua busca e os objetivos "nobres" do saber pelo saber, do saber como fim em si mesmo.

Assim viveu a Universidade até fins do século XIX, com a exceção talvez da universidade americana, cujo desenvolvimento se fêz em linhas um tanto diversas, sobretudo em relação aos land-grant colleges, os quais já no período de Newman cultivavam o objetivo de serviço e davam à pesquisa o caráter prático de saber aplicado, ou seja, na linguagem de Newman, um "deal of trash", jôgo pobre e de curta visada.

Até aí a missão da universidade era a da guarda e transmissão do saber, como condição para a ordem e a civilização. Eminentemente seletiva, orgulhava-se de poucos alunos e da alta qualidade dos seus intelectuais e eruditos. Era a casa do intelecto, a tôrre de marfim de uma cultura fora do tempo.

Foi essa universidade que começou a transformar-se com as três revoluções do nosso tempo: a revolução científica, a revolução industrial e a revolução democrática.

* * *

Não é meu desejo repetir mais uma vez as habituais considerações sôbre a missão da universidade, mas, admitindo que todos dela tenhamos consciência, buscar examinar, embora brevemente, os modos por que nos últimos cento e poucos anos a antiga instituição se vem transformando e, para alguns, perdendo até sua unidade e seu senso de missão.

Procurarei limitar-me a certos exemplos mais significativos e ainda recentes da experiência universitária. Acredito que tomando o exemplo de Oxford, o de Berlim e o do Trinity College de Dublin, daí passando a Manchester e, afinal, chegando às universidades de hoje, teremos a parte mais substancial do processo histórico de transformação.

Fundamentalmente, a universidade é a reunião de adultos já avançados na experiência intelectual e profissional com jovens à busca de sua formação e seu preparo para atividades dentro e fora dela e, ao mesmo tempo, a instituição devotada à guarda e ao cuidado da cultura humana, que lhe cabe zelar e lavrar como seu campo especial de trabalho. Como essa cultura constitui o equipamento maior da vida da própria sociedade, a sua responsabilidade por essa sociedade está sempre presente.

Entre êsses três objetivos - formação e ensino, pesquisa e serviço - divide-se assim a sua faina. A sua história é, sob vários aspectos, uma mudança de ênfase em relação à maior e menor importância de cada um.

Como estamos a viver um período revolucionário da conhecimento humano e de conseqüente transformação social, perdemos, ao que me parece, um pouco o senso do passado e, por isto mesmo, não será mau que comecemos o nosso passeio pelas vicissitudes da idéia de universidade, com uma vista d'olhos sôbre Oxford, a universidade talvez mais fiel ao passado, embora tenha, de certo modo, presidido ao curso da primeira e, até os começos dêste século, maior nação industrial do mundo.

Afinal, a cultura ocidental é um desenvolvimento da cultura greco-latina e em nenhuma outra universidade podemos encontrar - sem o espírito de controvérsia que, paradoxalmente, marca as universidades latinas - a fidelidade às nossas origens e a confiança de que para formar o homem nada de melhor se criou que uma imersão do jovem nessa literatura que Cassiodoro salvou do naufrágio da invasão dos bárbaros e ainda hoje nutre todo o nosso espantoso desenvolvimento intelectual.

É curioso observar-se como a nação em que, até muito recentemente, mais se haviam desenvolvido a indústria e a democracia e tão alta contribuição ofereceu à ciência, conseguiu sustentar-se com essa cultura clássica. Êste fato torna Oxford e Cambridge - a despeito de suas diversidades - particularmente importantes para nos esclarecer sôbre a missão da Universidade.

Como desempenhava Oxford essa missão? Como a compreendia e em que postulados se baseava o seu grande trabalho?

Para que não ocorra a alguém que esteja exagerando em minha descrição, vou utilizar-me de um oxoniano, educado entre os muros Balliol e hoje professor de filosofia, W. B. Gallie, para qualificar a formação pela universidade que foi, até o século XIX e começos do século XX, a universidade por excelência de ensino e a universidade por excelência não vocacional, ou seja, não profissional.

Nessa universidade, segundo Gallie, "postulava-se, de modo geral sem discussão, que um jovem que tivesse aprendido a escrever em elegantes versos ou cortante prosa nas duas línguas clássicas - grego e Iatim - e possuísse conhecimento particularizado de dois importantes períodos da civilização pré-cristã e de algumas doutrinas de Platão, Aristóteles, Kant e Mill, estaria qualificado para começar sua carreira como administrador, político, diplomata, crítico social ou educador".

O ideal universitário consubstanciado por Oxford representava, assim, a forma mais radical de formação não-utilitária. A universidade não era sequer um centro de transmissão do saber, mas de exercício mental, capaz de formar intelectualmente o jovem como um centro atlético o formaria para a vida esportiva. Por tôda a vida, iria êle ser o homem capaz de refletir com precisão e conversar com graça e facilidade e dispor daquele famoso e inteligente senso de humor, que lhe valeria como o melhor substitutivo até então descoberto para a sabedoria. O contato com os mestres verdadeiramente grandes do passado lhe teria dado um senso de proporção e medida que, se realmente assimilado, o teria curado para sempre de qualquer pretensão ou presunção intelectual. A prática das duas línguas clássicas, por outro lado, lhe teria dado aquela segurança intelectual e hábito de precisão que nenhum outro método talvez lhe poderia, do mesmo modo, inculcar.

Com a insistência pela qualidade do estudante e pela qualidade dos seus estudos, Oxford e Cambridge formaram longamente a elite britânica e nos deram o povo que mais inteligentemente tem sabido lidar com as vicissitudes de sua grandeza e de suas transformações sociais, sendo, de certo modo, o povo que mais próximo se acha do que poderia chamar a arte de governar a sociedade humana.

Embora a evolução de Oxford não resultasse de nenhum plano mas das pressões dos concursos para o serviço civil inglês, acabou por traduzir uma implícita filosofia da educação, a que se acrescentou método de ensino quase individual, com o sistema de pequenos colégios, os tutores e o internato dos alunos. Como seus estudantes provinham das public-schools, a Inglaterra completava com Oxford um sistema de educação peculiar e único, que lembrava Esparta, pairando acima do tempo, como se fôsse o próprio método perene de formação da elite humana. Essa elite, a princípio aristocrática, fêz-se, depois, pela seleção do aluno, uma espécie de elite de mérito. Se a missão da universidade é a formação de uma elite para o govêrno e o serviço público, não creio que tenhamos exemplo mais bem sucedido.

Foi buscando imitá-la que Newman, em 1852, fundou a universidade de Dublin e em seu livro A idéia de uma Universidade, afirmou que se o objeto da Universidade fôsse a descoberta científica e filosófica (ou seja, a pesquisa), não saberia por que teria eIa estudantes. Ao tempo que, assim, excluia a pesquisa, também condenava qualquer caráter utilitário no seu ensino, devendo o saber constituir o seu próprio fim. Muito mais tarde, Whitehead, de certo modo, fazia-se eco dessa filosofia, ao acentuar que pesquisa se pode fazer sem Universidade, a essência desta devendo ser o ensino e a cultura do espírito.

A essa concepção da universidade sucedeu o que Flexner chamou de Universidade Moderna, uma universidade que "não existe fora mas dentro da contextura geral da sociedade de determinada época ... Não é algo aparte, algo de histórico, algo que não se renda senão no mínimo possível às fôrças e influências mais ou menos novas. Ao contrário, é uma expressão da época, tanto quanto uma influência a operar em seu presente e em seu futuro". Essa universidade já é a universidade de Berlim de Humboldt e a universidade de Manchester, na Inglaterra, dominada uma pelo espírito de pesquisa pura e a outra pelo da pesquisa aplicada, mas ambas devotadas à ciência e ao seu tempo.

Seria muito longo referir a extrema luta que se desenvolveu para essa inclusão da pesquisa e da ciência na universidade e a extraordinária expansão que isto representou, primeiro no desenvolvimento dos estudos de pós-graduação, depois na educação de adultos e, por fim, na multiplicação de escolas profissionais de todo gênero.

Outra transformação, contudo, aguardava a universidade, ao se fazer também uma instituição de serviço nacional, devotada à solução de problemas, à apreciação crítica das conquistas realizadas e não já apenas à pesquisa pura ou básica, mas à pesquisa dirigida e aplicada para o desenvolvimento e a defesa nacional.

Acompanhar essa transformação desde 1852 até 1914, depois até 1930 e, com a segunda guerra mundial, até os dias de hoje, corresponde a assistir à história de uma instituição que, entre mil resistências, rompe com o seu isolamento e se vai, aos poucos, misturando com a vida presente até se fazer, talvez, instituição completamente nova pela sua complexidade, pela sua variedade, pelo seu pluralismo, e, por que não dizer, pela sua extrema confusão e divisionismo.

São inúmeras as vozes a chorar pela antiga unidade, pela antiga homogeneidade, pela antiga qualidade, mas a fôrça do tempo é maior e a universidade fêz-se não a tôrre de marfim mas talvez a de Babel, com atividades intelectuais dos mais diversos níveis, com a mais extrema mistura de cultura teórica e prática e com tamanha população de professôres e alunos que já não é mais uma comunidade mas várias e contraditórias comunidades, lembrando mais a cidade que o antigo claustro conventual da velha Oxford.

O Presidente Kerr, da Universidade de Califórnia, no ano passado, analisou, em três conferências, na Universidade de Harvard, essa imensa transformação da universidade, que hoje se deveria talvez chamar, segundo sua sugestão, Multiversidade.

Nem Humboldt, nem Newman, nem Flexner reconheceriam mais as suas respectivas universidades. A população de alunos que as procura é já muitas e muitas vêzes superior a tudo que se pode imaginar. A famosa qualidade do estudante superior perdeu-se e com ela a qualidade dos estudos. O número de cursos e de ocupações para que prepara raia pelo inconcebível. A população de adultos, dos que voltam à universidade, para cursos e retreinamento, sobe a dezenas de milhares.

Sobretudo a pesquisa atingiu proporções desmedidas e os grandes projetos da segurança, da defesa e do desenvolvimento nacional começam a ser, em muito, tarefas da universidade.

A antiga instituição - distante e isolada - destinada a educar os jovens, vem-se fazendo a fôrça mais profunda do desenvolvimento nacional. A realidade é que a pesquisa, cuja entrada na universidade tanta luta custou, veio, nos últimos tempos, a crescer esmagadoramente. Longe, vai o tempo em que o Bispo de Ripon aconselhava a ciência a tomar férias por dez anos, diante da expansão que lhe parecia precipitada e maléfica, em que Aldous Huxley escrevia sua sátira sôbre o Brave New World. Hoje, a ciência fêz-se a grande mola de competição do mundo desenvolvido e nenhuma fôrça lhe é igualada em importância e em alcance.

As cidadelas de resistência, primeiro a do humanismo clássico, depois a da ciência pela ciência e do saber pelo saber, acabaram por se render. A definitiva aceitação da ciência transferiu o debate do campo mais ou menos recalcitrante e negativo do período encerrado na década de 30, para o campo positivo da busca de soluções para uma sociedade totalmente industrializada, penetrada de ciência e tecnologia e coletivamente organizada sob a forma de grandes grupos, com interêsses diversos e muitas vêzes contraditórios. É para essa nova e confusa sociedade que se tem de preparar a universidade, tanto mais lhe sendo difícil a liderança quanto nela própria se registram os fenômenos de coletivização, de deslocamento, de contradição e de relativa perda de unidade.

Ao homem de cultura liberal sucedeu o especialista e, ao especialista, o homem de organização. Êste ainda é em muito um mecânico, procurando suprir a deficiência essencial de unidade da sociedade contemporânea com os substitutivos de relações públicas e de espírito de serviço, que, mal ou bem, mantêm a aparência não direi de harmonia mas de mútua tolerância.

A universidade reflete essa sociedade e, arrastada por ela, distanciou-se da idéia de universidade como a concebia Abraham Flexner, para quem "o coração de uma universidade moderna seria uma escola de pós-graduação de artes e ciências, as sólidas escolas profissionais e alguns institutos de pesquisa", tudo dentro de um "organismo caracterizado pela elevação e precisão de fim e unidade de espírito e de propósito". Não existem Newmans, nem Humboldts, nem Flexners para a multiversidade presente, de que o primeiro a tratar é Clark Kerr, presidente da Universidade de Califórnia e, como economista, livre para descrevê-la como um fato social sem ainda querer julgá-la. Kerr, depois de mostrar como aquelas diferentes idéias de universidade - a de educação e formação do homem pela residência comum e a imersão em uma atmosfera intelectual, a do intelectualismo e pesquisa livres e independentes para o preparo de estudiosos, a de serviço pela participação na sociedade e solução dos seus problemas, em que se revelaram mais notáveis respectivamente os ingleses com Oxford e Cambridge, os alemães com Berlim, Halle e Gottingen e os americanos com Wisconsin sobretudo, mas também, com Harvard e os "land-grant colleges" - entraram em jôgo na universidade americana e, ajudadas pela liberdade de experimentar e tentar, característica de sua civilização pluralista e democrática, criaram uma espécie de laissez-faire universitário, observa que, dêste modo, se instituiu a moderna universidade americana, conjunto de "fragmentos, experimentos e conflitos" que acabam por entrar em acôrdo num inesperado equilíbrio e por resultar em uma instituição excepcionalmente eficaz. E conclui "que nenhuma universidade pode visar mais alto do que ser tão britânica quanto possível, em relação aos seus graduandos, tão germânica quanto possível para os pós-graduados e pesquisadores e tão americana quanto possível para o público em geral ... e tão confusa quanto possível para poder preservar o instável equilíbrio".

Para uma idéia concreta dessa universidade dos tempos presentes, a multiversidade, ouçamos o Presidente Nathan Pusey sôbre Harvard e o Presidente Kerr sôbre Califórnia. Pusey, em seu último relatório, depois de acentuar que, a partir de 1924 - período de graduação dos membros do seu Conselho de Administração - metade dos edifícios de Harvard são novos, o quadro de professôres quintuplicou e o orçamento aumentou quinze vêzes, assim se exprime: "Pode-se ver em qualquer dos lados para que se olhe exemplos semelhantes de crescimento e mudança, quanto ao currículo e quanto à natureza da universidade contemporânea, conseqüentes do alargamento de sua área internacional de interêsse, do avanço do saber e da crescente renovação e extrema complexidade dos métodos de pesquisa... Ásia, África, rádiotelescópios, equipamento inimaginável em 1924 para exploração interplanetária - êstes e outros desenvolvimentos determinaram tais enormes mudanças na orientação intelectual e nas aspirações da universidade contemporânea que fazem parecer-nos a universidade que conhecemos como estudantes uma instituição extremamente atrasada, na realidade algo de muito simpIes e quase nenhuma importância. E o ritmo da mudança contínua".

Sôbre a Universidade de Califórnia, assim se exprime o Presidente Kerr: "A Universidade de Califórnia no último ano (1963) despendeu em recursos de tôdas as fontes perto de meio bilhão de dólares e mais 100 milhões em construções; o seu quadro total de empregados foi superior a 40.000, mais do que a IBM, e distribuídos em maior variedade de esforços; suas operações estenderam-se por cêrca de cem locais diferentes, compreendendo "campus", estações experimentais, centros de extensão agrícola e urbana e programas no estrangeiro, envolvendo mais de cinqüenta países; ofereceu nos seus catálogos perto de 10.000 cursos diferentes; manteve contatos, sob alguma forma, com quase tôdas as indústrias, com quase todos os níveis de govêrno, com quase tôdas as pessoas da sua região. Vasta quantidade de custosos equipamentos foram utilizados e mantidos. Quatro mil crianças nasceram nos seus hospitais. Converteu-se na maior distribuidora de ratos brancos no mundo. Está em vias de possuir a maior colônia de primatas do mundo. Contará em pouco 100.000 estudantes, dos quais 30.000 em nível pós-graduado, apesar de menos de um têrço de suas despesas serem relativas a ensino. Já conta com 200.000 estudantes de cursos de extensão, incluindo 1 de cada três advogados e 1 de cada seis médicos no estado". Harvard e Califórnia são apenas dois exemplos de multiversidade. Pelo menos mais umas 20 já existem e, lembremo-nos, tôda a Inglaterra dispõe apenas de 30 universidades.

Esta é a universidade que sucedeu à universidade moderna de Flexner que, por sua vez, sucedeu à universidade de Newman. A primeira, segundo Kerr, "era uma aldeia com seus monges, como as nossas reduções jesuíticas ao tempo da colônia, a segunda uma vila industrial com sua oligarquia intelectual, a multiversidade uma grande cidade, com a sua infinita variedade e seus inúmeros bairros e subculturas. Há menos senso de comunidade mas também menos confinamento. Menos propósito comum porém mais possibilidades, mais caminhos para o refúgio ou a criação". Lembra a civilização total em que se integra, com seus riscos e suas oportunidades. Deixou de se conservar à parte e fêz-se fôrça atuante e, talvez máxima, da sociedade industrial total que começa a ser a sociedade contemporânea.

Nessa cidade, que lembra a metrópole, mas é de certo modo único, agitam-se e trabalham os mesmos dois antigos subgrupos, os estudantes e os professôres, mas não só muito aumentados como muito diferenciados. Além das duas culturas ou três - as dos humanistas, a dos cientistas e a dos tecnologistas - há uma variedade de subculturas.

Entre os estudantes, segundo uma tipologia, há o grupo mais típico do colégio, com seus clubes, seu atletismo e suas atividades; o acadêmico, constituído dos estudantes sérios, de pura vida intelectual; o vocacional, dos estudantes à busca de treinamento específico; e o "não-conformista", dos políticos ativistas, dos intelectuais agressivos e dos boêmios. Vagamente inserido nesses diferentes grupos, o estudante individual enfrenta a extrema diversidade de oportunidades que lhe oferece um currículo que chega, como vimos na Califórnia, a contar 10.000 cursos diferentes. A liberdade do estudante é um desafio mas também uma tortura. Muitos se perdem e muitos se machucam por entre os riscos dessa floresta heterogênea como as tropicais, e, hoje, sem sequer a harmonia e a homogeneidade das florestas temperadas.

Sôbre êle, e cada vez mais distante, move-se o mundo dos professôres, hoje também diversificado, compreendendo, pelo menos, essas quatro categorias - mestres, pesquisadores, consultores e administradores, que ensinam, pesquisam, aconselham e supervisionam e administram.

A pesquisa já é a mais importante das funções. E essa mudança é algo copérnica. É de fato uma mudança de centro. Já se diz que, quanto mais sobe um professor, menos terá êle contato com o estudante. A estrutura de classe do professor compreende, hoje, a dos que se dedicam à pesquisa, a dos que só se dedicam ao ensino e a dos que ainda fazem as duas coisas. Na Califórnia, no nível de doutorado ou seu equivalente, a proporção já é de 1 pesquisador para 2 mestres e para 4 que fazem uma e outra coisa.

Ainda há os consultores e os administradores, que dão parecer e administram seus institutos e projetos, e constituem uma nova forma dos "capitães da erudição" a que se referia Veblen. São os novos-ricos, os homens de emprêsa da ciência e da cultura, cujas vidas transcorrem, em boa parte, fora do campus, em viagens, conferências, consultas, negociações e, quando no campus, em agitada vida de direção e de administração.

Essa multiversidade americana não tem parelha ainda no mundo. Só a América poderia produzi-la com a sua confiança na liberdade de ação e conseqüente diversidade de experiência e seu apêgo ao teste das conseqüências. Essa confiança funda-se implìcitamente num postulado, o postulado de que o homem age melhor em liberdade e se conduz à luz das conseqüências, revendo, corrigindo, reconstruindo indefinidamente sua ação. Lernfreiheit e lehrfreiheit são as duas fôrças que, definidas na Alemanha em suas livres origens, encontraram na América seu clima, seu estilo, seu apoio, até agora incontestes.

Nenhuma outra universidade, em nenhum outro país, levou tão longe o espírito de participação na civilização contemporânea. Embora as suas mais antigas universidades tivessem surgido com o espírito da reforma e lembrassem as universidades da Europa, as universidades estaduais, criadas no século XIX, na crise mesma da guerra de secessão, nasceram traduzindo um nôvo espírito, o espírito de serviço e de pesquisa aplicada, aquêle mesmo espírito que, na Europa, iria fazer na Alemanha surgir os technicum, na Inglaterra, os colégios e universidades tecnológicas. Era a idéia da universidade moderna de Flexner, mas com o acréscimo da ciência aplicada e da participação nos problemas da região.

A êsse tempo a ciência e a tecnologia estavam a realizar os seus primeiros milagres, a exposição de Paris de 1850 estimulara sobremodo os inglêses, que se descobriram atrasados em relação à indústria francesa, a Alemanha com a pesquisa nas universidades e a tecnologia dos institutos tecnológicos entrava valentemente na era industrial e os Estados Unidos constituiam, dêste lado do Atlântico, a fronteira nova e ilimitada da aplicação da ciência. É pouco depois que Lincoln assina a lei Morrill (em 1862) e nenhum outro ato seria de maior alcance para a educação superior na jovem república. O movimento das universidades estaduais surgia em resposta à industrialização nascente, que nos Estados Unidos não se circunscrevia à indústria urbana mas também à agricultura. Desde o início, a expansão da aplicação da ciência na jovem república se manifestava nas duas áreas, para servir à república de mecânicos e agricultores que se constituíra ao norte em oposição à civilização de senhores do sul. A nova universidade seria a universidade que, além do "gentleman", do padre, do advogado e do médico, iria devotar-se à pesquisa tecnológica, à pesquisa econômica e à pesquisa em todos os aspectos políticos e sociais da democracia populista e igualitária que sucedera à democracia jeffersoniana. A universidade rompia com as tradições originárias de formadora de elite, para se abrir a todos e ser o grande instrumento de igualdade e de oportunidade para todos.

A influência da universidade alemã, também muito atuante na época, impediu fazer-se aventura algo de extravagante. Misturam-se, como diz Kerr, o intelectualismo germânico com o populismo americano e a aliança constituiu espantoso sucesso. A mais famosa universidade, entre as antigas, Harvard, e uma das mais novas, a de Michigan, depararam-se executando programas idênticos e atingindo igual excelência, tanto no campo das humanidades quanto nos das ciências, criando-se dêste modo tipo nôvo de universidades, abertas, populares, profundamente participantes do progresso e, ao mesmo tempo, de tão alto prestígio intelectual que rivalizavam se não excediam as suas congêneres européias.

Quase oitenta anos depois, algo como uma nova lei Morrill veio acontecer, com o programa de financiamento da pesquisa científica para a defesa nacional, a que a segunda guerra mundial levou o govêrno federal americano.

Como na guerra da secessão, o movimento surgiu sem plano, sem propósito, como simples resultado das circunstâncias e da necessidade. O velho princípio do laissez-faire tudo permitia e as universidades estavam aí crescidas já, mas ainda sem nenhuma esclerose, prontas para nôvo surto de crescimento.

Em 1862 era a industrialização ainda em grande parte empírica, em 1940 era a ciência já todo-poderosa que iria determinar a expansão da universidade como fôrça suprema, ao mesmo tempo, de saber nôvo e de nova tecnologia. A separação entre ciência e aplicações da ciência quase deixara de existir. O átomo unira os dois grupos de cientistas emprestando-se ao tecnologista um prestígio nôvo, senão maior, pois os segredos da ciência atingiam menos a ciência básica do que as últimas conquistas tecnológicas. Por outro lado, a própria organização industrial, com o seu crescimento, fêz-se também científica, pelo menos nos aspectos mais complicados de utilização de dados e de processos mecânicos de sua computação. A resposta da universidade americana às novas necessidades foi pronta e irresistível. Não me nego à tentação de citar Kerr: "É interessante", escreve êle, "que as universidades americanas, que tanto se orgulham de sua autonomia, venham a ter o seu caráter definido tanto ou mais pelas pressões do meio do que pelos seus desejos próprios; que, identificando-se como instituições privadas ou estaduais, recebam seu maior estímulo da iniciativa federal; que, constituindo parcela de um sistema de ensino superior variado e altamente descentralizado, tenham respondido às necessidades nacionais com tamanha fidelidade e alacridade; que, formadas originàriamente para a educação do "gentleman", se tenham entregue tão decididamente ao serviço da brutal tecnologia"

E dêste modo é que surgiu a nova universidade federal americana. Assim como a University Grants Comission inglêsa vem tornando possível o casamento da autonomia com o planejamento na universidade inglesa, assim o financiamento federal de programas científicos na universidade americana vem dando lugar ao aparecimento de uma nova sistemática no ensino superior dos Estados Unidos. Quanto melhor e mais autônoma a universidade, mais se vem ela fazendo a federal grant university de que nos fala Kerr.

O movimento lançado com a lei Morrill em 1862, suplementado, em 1890, com a segunda lei Morrill, e antes com a lei Hatch de 1887 e com a lei Smith Lever de 1914, ambas relativas à agricultura, vem, com a primeira guerra mundial, depois com a Depressão e, afinal, com a segunda guerra mundial, entrar em fase espetacular. Em 1960, a educação superior americana recebia 1 e meio bilhão de dólares do govêrno federal, cem vêzes mais do que 20 anos antes: quinhentos milhões para centros de pesquisa nas universidades, quinhentos para projetos de pesquisa dentro das universidades e quinhentos para residências de estudantes, bôlsas e programas de ensino. Embora o bilhão para pesquisas seja apenas 1/10 do que o govêrno federal gasta em pesquisa e desenvolvimento, representa 75% de tôdas as despesas para pesquisa das universidades e 15% do total dos orçamentos universitários. Essas cifras não incluem as despesas dos centros federais de pesquisas operados pelas universidades.

Os recursos federais são aplicados dominantemente em atividades relacionadas com a defesa (40%), com o progresso científico e tecnológico (20%) e com a saúde (37%), abrangendo os setores de ciências físicas, bio-médicas e engenharia, com apenas 3% para as ciências sociais e quase nada para as humanidades. Apenas cêrca de 20 universidades são contempladas pelo auxílio federal e representam ela sòmente dez por cento das universidades americanas. O programa compreende centros especializados de pesquisa (14 em 1963), projetos de pesquisa e treinamento pós-graduado e pós-doutoral nos campos de interêsse nacional.

Em nenhum tempo da história viu-se a universidade tão fortemente solicitada para dar a sua contribuição científica ao progresso da civilização. Embora, desde 1850, não tivessem faltado torrentes de retórica para dizer que o progresso científico era a causa do progresso nacional, sòmente depois de cem anos, na segunda metade do século XX, a ciência faz-se em verdade preocupação central dos governos.

O nôvo equilíbrio que estão a buscar as universidades, em face do impacto dêsses novos recursos e de novas funções como fábricas de conhecimentos e de tecnologias, que a arrancam da sua segregação de instituições de formação de homens e de busca desinteressada e lenta do saber para as lançarem no maelstrom da competição internacional e dos conflitos do poder, não é fácil e inúmeros problemas está criando para a universidade, que já não é o antigo claustro e a antiga tôrre de marfim - helas! já tão distantes e tão esquecidos -- mas deseja continuar a ser universidade, ou seja, centro de educação, de ensino e de saber desinteressado e livre.

As relações do govêrno federal com as universidades devem e estão entrando em nova fase, em que êsse mais amplo problema do ensino superior começará a ser sentido em tôda a sua plenitude para que, sem que se perca o ímpeto pelo aumento de conhecimento e de tecnologias, que marcou a primeira fase, possa o govêrno federal juntar a sua contribuição aos objetivos perenes da universidade - a liberdade do saber, o alargamento dos horizontes da igualdade de oportunidades, e o aperfeiçoamento da formação humana.

Elliot já dizia, no início da primeira transformação da universidade americana, que essa universidade não iria ser imitação de alguma universidade européia mas uma nova universidade, em consonância com as novas condições da cultura americana. E a evolução ainda está em processo. As novas condições contemporâneas estão transformando a universidade. As grandes fases de caracterização da universidade processaram-se em consonância com os grandes períodos históricos - o apogeu helênico, a consolidação da herança greco-latina na Idade Média a partir do século XII, o renascimento no século XVI, o segundo renascimento com o século XVIII, o início da industrialização e o surto científico no século XIX e hoje a industrialização total e a maturidade do desenvolvimento científico.

Em cada um dêsses períodos, registra-se o progresso em certo ponto da terra e daí se expande às demais áreas do desenvolvimento. E temos, então, a Grécia, as cidades italianas, a França, a Espanha, a Inglaterra, a Alemanha e hoje os Estados Unidos.

A educação está intrìnsecamente relacionada com o caráter da civilização de cada país. Estima-se hoje que nos últimos trinta anos, perto de metade do desenvolvimento nacional dos Estados Unidos se explica pela melhor educação e melhor tecnologia do seu povo, ambas decorrentes do seu sistema de educação.

Com a aceleração atual da produção de conhecimento e com a sua difusão também extraordinàriamente aumentada, calcula-se que 29% do crescimento do produto bruto nacional dos Estados Unidos provêm do aumento da produção, distribuição e consumo do "saber", em tôdas as suas formas. E o crescimento dêsse "saber" faz-se em proporção de duas vêzes o crescimento da economia. A indústria do conhecimento é, hoje, segundo Kerr, o fator central do crescimento nacional dos Estados Unidos.

Estamos realmente, pela primeira vez, vivendo a fase da produção, que chamaria normal, da ciência. Essa produção quebrou todos os antigos ritmos de gradual acomodação entre o passado e o futuro. A camada de saber comum - lentamente adquirido e consolidado - faz-se, como diz Oppenheimer, cada vez mais tênue, em virtude da rapidez da chegada do nôvo saber e com isto perde-se o senso de unidade entre o passado, o presente e o futuro. Nunca o presente foi tão produtivo e tão difícil estabelecer-se o equilíbrio entre os três períodos. Tudo isto reflete-se na universidade, com a sua população cada vez mais ampla, com a sua atuação no curso mesmo dos acontecimentos cada vez maior, com as suas relações com a indústria intensificadas e dominantes, com o crescimento explosivo dos conhecimentos e com a multidão e variedade dos seus interêsses, dos seus programas, de suas descobertas. Quanto à população, já não serve apenas a elites, nem apenas à classe média, mas a tôdas as classes e todo o povo. Quanto ao saber, identifica-se com todos os saberes, de tôdas as áreas, todos os níveis e tôdas as ocupações. Quanto ao espaço, não é algo de isolado mas estende-se à agricultura, cultura, à indústria, à cidade e multiplica-se em mil pontos diversos. Tudo que a isolava e a protegia, todos os "'muros" cairam, e a universidade está hoje em contato e mistura com tôdas as fôrças da sociedade. Sobretudo sua semelhança com a indústria faz-se cada vez maior. O próprio crescimento do saber não se faz hoje mais apenas por indivíduos, mas por equipes, e há tendência para a concentração dêsse crescimento por áreas e não mais por pessoas.

A universidade, já de si imensa, tem de associar-se a outras universidades. Kerr mostra como isto é visível nas cadeias de montanhas do saber - e não picos de saber - no Leste, no Centro e no Oeste dos Estados Unidos. E então cada universidade tem que federar-se a várias outras em certos campos de saber, com programas próprios e intercâmbios de professôres e alunos, o que deixa entrever no futuro, além da multiversidade, constelações de multiversidades.

O saber sempre foi extremamente importante mas nunca essa importância foi tão violentamente visível. O poder dos interêsses adquiridos ainda parece a muitos a grande fôrça que move a terra, mas jamais os interêsses adquiridos estiveram em maior perigo. As mudanças ocorrem independente dêles, os problemas surgem, o saber abre oportunidade para soluções e não há como deter a marcha, salvo se se pudesse deter o saber ou, pelo menos, a sua difusão. Nem uma nem outra coisa são fáceis, desde que a unidade se fêz a encruzilhada que hoje é de alunos, provindos de tôdas as classes, de professôres de tôdas as especialidades e campos de saber, de industriais de tôdas as atividades humanas, e de políticos, de comerciantes, de empreendedores, de todos enfim que têm problemas e necessitam saber e conselho para resolvê-los. A universidade é hoje o centro de tôda a sociedade e, apesar disto, tem que manter seus velhos ideais e não só manter-se em equilíbrio, mas constituir-se a fôrça maior do equilíbrio de tôda a sociedade.

Está claro que tudo isto é difícil e que os perigos não são pequenos, mas a quem está acostumado a acompanhar a idéia até onde ela o leve, o que se está dando é a marcha da idéia da busca de saber e de sua aplicação até às suas conseqüências naturais. Afinal, com a multiversidade de hoje, temos o velho Francis Bacon vindicado e, ainda, 350 anos depois, estamos a seguir-lhe os conselhos tão extraordinàriamente antecipados. Muitos conflitos se encerraram - entre o saber contemplativo e o saber utilitário, entre ciência básica e ciência aplicada, entre teoria e prática, entre preparação e consumação, entre cultura aristocrática e cultura comum - e não é possível que o homem não consiga resolver os novos problemas que a remoção dêsses obstáculos tenha podido trazer. Estamos em caminho para uma nova cultura e o preconceito a vencer é o de que uma cultura comum, uma cultura da maioria não possa ser uma grande e alta cultura. Marchamos para essa cultura comum ou então para a confusão e a anarquia.

* * *

Desejei proceder a todo êsse passeio pelos caminhos do desenvolvimento da universidade moderna para afinal chegarmos ao Brasil. Onde estamos nessa marcha da idéia de universidade? Que tem sido o ensino superior entre nós? Keynes termina o seu livro General Theory com as seguintes palavras: "as idéias de economistas e filósofos políticos, estejam certos ou errados, são mais poderosas do que comumente pensamos. Na realidade o mundo é governado por bem pouco mais. Homens práticos, que se julgam inteiramente isentos de qualquer influência intelectual, são ordinàriamente os escravos de algum defunto economista. Doidos no poder, a ouvir vozes, estão apenas destilando, em seus frenesis, algum escrevinhador acadêmico de anos atrás. Estou certo de que o poder dos interêsses adquiridos é vastamente exagerado em comparação com êsse gradual assalto das idéias".

Assim não é apenas com idéias econômicas. Também as idéias de universidade têm o mesmo poder. O que andamos fazendo com o nosso ensino superior nunca representou originalidade, mas cópia ou eco dessas idéias de universidade que, em diferentes épocas, flutuaram e dominaram em seus respectivos tempos.

Até a Independência, a nossa universidade era a de Coimbra e esta vinha de suas origens medievais e refletia Bolonha e depois Paris, e com os jesuítas voltou a ser o claustro de formação do clero, dêste modo estendendo-se no Brasil por todo o longo período colonial.

Com a independência, viemos a ter as escolas profissionais de direito, de medicina e de artes militares e de engenharia. Com relação à formação humanística ficamos, segundo a lição francesa, com o ensino secundário.

Quando, já no século XX, depois da primeira guerra mundial, viemos a pensar em universidade, essa continuou a ser uma federação de escolas profissionais. Em 1930, tivemos copiosa retórica sôbre universidade, mas a estrutura não mudou. Continuamos a ter uma série de escolas profissionais frouxamente coordenadas por uma reitoria mais simbólica do real. As escolas, à maneira napoleônica, eram escolas do govêrno, pelo govêrno mantidas e dirigidas. Sabíamos como Napoleão fizera o mesmo com a Universidade de Paris e esperávamos que, como em Paris, os professôres, as congregações conseguissem ou mantivessem a sua independência. De origens mais remotas conservamos as idéias da independência da cátedra.

Essas idéias mais remotas ressurgem da década de 30 em diante como eructações de autonomismo. E celebramos uma carta de autonomia tanto mais divertida quanto por ela o professor continuava funcionário do Estado, por êle nomeado e por êle mantido, e o seu orçamento ao mais extremo detalhe fixado pelo executivo e legislativo do Estado.

De qualquer modo, porém, mantivemos a universidade como um conjunto de escolas profissionais independentes entre si, lembrando, embora de longe, a universidade de Paris, com vestígios germânicos nas escolas de medicina a respeito de vagas idéias de pesquisa.

Na década de 30, surgem as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras destinadas, ao que parecia, a ampliar afinal o quadro universitário com os estudos de filosofia, letras e ciências, até então mantidos em nível secundário, e que passariam a ser elevados a nível superior para o preparo básico às escolas profissionais e, depois, seria de esperar, ao preparo de especialistas de filosofia, letras e ciências. A fôrça do velho superou entretanto o que desejaria ser nôvo, e as escolas fizeram-se escolas de preparo do professor secundário.

Ao lado dêsse desenvolvimento, tivemos, mais, a ampliação de escolas profissionais e semiprofissionais, com variedade de cursos de engenharia, de veterinária, de agronomia, de economia e contabilidade, de enfermagem, de belas-artes, de serviço social etc. etc.

Em rigor, a universidade, entre nós, nunca foi pròpriamente humanística nem de pesquisa científica, mas simplesmente profissional, à maneira de algumas universidades mais antigas. Em relação aos progressos científicos do século XIX e princípios do século XX, observaram-se, nas escolas de medicina, certos avanços da biologia e da medicina e, na de engenharia, avanços na matemática e na tecnologia, mas muito mais com pruridos matemáticos do que tecnológicos. As nossas politécnicas imitavam não Manchester mas Paris.

Na realidade, nem influência inglêsa, nem influência americana, mas francesa e certos lampejos germânicos são as fôrças mais visíveis. No fundo, o substrato português e talvez ibérico.

A resistência da estrutura de escolas profissionais independentes - até a medicina, a farmácia e a odontologia não se aglutinam mas conservam-se isoladas - traduz a idéia primitiva de sindicato ou guilda, pela qual se nota que a unidade construtiva da universidade é a congregação de professôres, que, dêste modo, revive a estrutura corporativa medieval.

A própria reunião sob forma universitária faz-se com visível resistência. Hutchins descreveu certa vez a universidade como uma série de escolas e departamentos separados e unidos por um comum sistema de aquecimento central. Kerr, em nossos tempos, com a menor importância do aquecimento central e a maior do automóvel, chama-a de um grupo de empresários-professôres unidos por uma reinvindicação comum em tôrno de espaço para estacionar.

No Brasil temos uma série de oligarquias (congregações) isoladas e independentes, unidas por uma reinvindicação comum em tôrno do orçamento, que é federal e feito e votado fora da universidade.

Mas, se a estruturas são diferentes e diferente a organização das escolas, no comportamento dos estudantes, dos professôres, das congregações e dos reitores, há traços sem conta que lembram a tradição universitária e as vicissitudes da idéia universitária. Nesses procedimentos individuais encontramos exemplos, entre os estudantes, do estudante de classe a sonhar na formação de gentleman, do estudante sério e apaixonado pelos estudos, do estudante incorformado, militante político ou boêmio e do estudante prático a se preparar para a profissão; no professor, o autoritário à maneira germânica, o displicente e humano encantado com o contato da mocidade, o conservador prêso aos livros e ao passado e, até, o inquieto por pesquisa e busca do saber; entre os diretores e reitores, o político apenas preocupado com a harmonia e o equilíbrio instável da instituição dividida e contraditória, o construtor devotado à grandeza material da universidade ou escola, o burocrata, complicando, para aumento do seu poder, os embaraços sempre existentes do funcionamento meio impossível da casa de Orates, que é a sua escola ou sua universidade, ou o fidalgo a dedicar-se à vida de cerimônia e ritual da instituição inoperante mas prestigiosa. É mais pelo procedimento individual, assim, de alunos, professôres e diretores e reitores que, de qualquer modo, também temos universidades e nos ligamos aos problemas e sofrimentos comuns da antiga instituição.

Não sei qual era o professor inglês que costumava dizer que a universidade deve ser dirigida com o máximo de anarquia compatível com o seu funcionamento. Era, por certo, um colega de outro professor que dizia :"nada deve ser feito pela primeira vez", acrescentando, "nada jamais é feito antes que cada um se convence de que deve ser feito e disto está convencido há tanto tempo que já agora é tempo de fazer qualquer coisa diferente". Assim, podemos não ter universidade, mas temos professôres, que é, afinal, aquilo de que são feitas as universidades. Foi, talvez, na Alemanha, com Humboldt, que o professor se caracterizou afinal com essa figura especial, independente e livre, algo divina, como uma espécie de motor imóvel. Mas a imagem, assim criada, percorre todo o planeta e por tôda parte se vai encontrar.

Já vimos, na análise geral que fizemos da universidade, que nenhuma outra instituição parece tão natural como esta e evolui, como as coisas naturais, por leis próprias ou sem lei nenhuma. Deixa-se levar e, dêste modo, se transforma, sem saber bem como se está transformando.

O mesmo se está dando conosco. As nossas escolas superiores deixam-se ir e se vão, assim mudando, aos trancos e barrancos, e de repente, se vêem diferentes ...

A de medicina sempre foi, sob o aspecto científico, a mais importante. Não é que ela se vem fazendo uma universidade de ciências biológicas e médicas? Não é nela que estão começando a medrar os institutos e a pesquisa científica, lembrando a Alemanha dos meados do século XIX ? As escolas politécnicas, por sua vez, não estão começando a ampliar-se, podendo dar origem aos institutos tecnológicos? A física não está acabando por encontrar um lugar nas Faculdades de Filosofia? E os institutos agronômicos e biológicos não acabarão por integrar as escolas de Agricultura ? Fora disto, temos tido expansão quantitativa. Com a independência quase absoluta de cada escola, não tem havido resistência à sua multiplicação. Aí desaparece o ciúme e desaparecem os padrões. Tudo pode nascer e viver. Escolas de economia, que não chegam às vêzes a ser escolas técnicas de nível médio, escolas de serviço social, que não se sabe o que sejam. Escolas de música de tôda ordem. E de belas-artes, educação física, de enfermagem etc.

Assim viemos até a década de 60, quando, com o movimento pela Universidade de Brasília, assistimos ao aglutinar-se das três idéias a respeito da universidade e surgir, afinal, a lei de fundação daquela universidade, que consubstancia a função formadora e de cultura básica, a função de preparo do especialista, o curso pós-graduado e a pesquisa, e a idéia de serviço e integração na sociedade brasileira e nos seus problemas.

Na ordem dos fatos mais generalizados, contudo, o que temos de mais significativo e de mais operante é um reflexo do movimento pela inclusão da pesquisa na universidade, que marcou o aparecimento das novas universidades alemãs no século XIX e se refletiu depois na Inglaterra e nos Estados Unidos, e o interêsse pela engenharia e tecnologia, que lembra o movimento das universidades cívicas da Inglaterra, também do século XIX. A idéia de serviço, da universidade integrada na sociedade e nos seus problemas está apenas a esboçar-se.

Esta reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência é a continuada demonstração de uma tradição, cuja lição fomos buscar na Inglaterra. Também ali a resistência das universidades foi vencida pelas Sociedades privadas organizadas em prol da ciência.

A idéia da universidade humanista e de formação clássica não chegou a se concretizar entre nós. As faculdades de filosofia, no seu pensamento original de faculdade para integração de tôda a universidade, não logrou êxito. A idéia de universidade moderna organizada para a pesquisa, integrada no presente e voltada para o futuro, apenas começa agora a medrar. A universidade de serviço, devotada aos problemas práticos de sua sociedade e à educação, sòmente na Universidade de Brasília deu os primeiros vagidos. A idéia da multiversidade ligada à indústria, à defesa e ao desenvolvimento nacional ainda está para ser sentida e compreendida.

Mas se a instituição é, assim, ainda a instituição pequenina e relativamente sem importância dos princípios do século XIX, não se pode dizer que não consiga, como as grandes universidades do nosso tempo, ser um tanto incômoda à complacência e à resistência nacional a tudo que possa mesmo remotamente constituir-se fator de mudança social. E, assim como quando não tínhamos universidade, já tínhamos o professor com suas qualidades e os seus defeitos, agora, quando ainda não temos a universidade operante e eficaz nas transformações da sociedade, já temos o mêdo de que ela assim se faça e as mobilizações, tão penosamente patéticas contra sua própria fraqueza e sua própria ineficência, tanto é verdade que mudar não é afinal difícil, não fôsse o mêdo antecipado e irracional contra a mudança.

Diante dessas considerações, como deixar de refletir melancòlicamente sôbre o que seria a imagem, entre nós, da missão da universidade? Não seria essa imagem a de nada fazer? Não seria, paradoxalmente, a idéia entre nós ainda dominante da universidade de Oxford no século XIX? Nunca tivemos, é claro, nenhuma Oxford entre nós. Mas não ocorrerá que o que os bem-pensantes do Brasil pensam quanto à universidade, seja exatamente a formação de rapazes polidos bem educados, capazes de sorrir e conversar com elegância e suficientemente fúteis para saber que tudo já foi pensado e dito e que hoje só resta mesmo sorrir, senão chorar fastidiosamente ?

O Brasil, contudo, não é exatamente uma colônia de bem-pensantes. É muito mais uma charada, um enigma, um desafio, um feixe gigantesco de problemas e clamar por solução, uma nação a lutar pelo seu desenvolvimento, e não algo de quieto e pacífico como as sociedades pré-revolucionárias dos fins do século dezoito.

A despeito do que se pense formalmente, muito outro é o curso de sua marcha. A universidade se está agitando, os estudantes fazem-se inconformistas, muitos professôres estão começando a se deixar sensibilizar pelos novos tempos e a idéia da universidade de pesquisa e descoberta, da universidade voltada mais para o futuro do que para o passado está visìvelmente ganhando fôrça.

Mais importante que tudo isto é reunião como esta, em que já se comprova a pujança do movimento científico e a sua constituição menos como movimento de cada universidade ou das universidades em geral, quanto como movimento de pessoas, de cientistas, ligados muito mais à sua nova profissão, aos seus colegas do país e do mundo do que às suas próprias instituições.

Êste é um dos aspectos modernos do nôvo trabalho de pesquisa e descoberta do conhecimento, que une todos os que, independentemente de fronteiras, se ocupam dos mesmos problemas e têm nos colegas seus próprios juízes. Para o cientista, a tarefa da universidade é ampará-la e dar-lhe o mínimo de independência e segurança compatível com o seu ministério. Fora disto, a sua sociedade é a sociedade dos demais cientistas e dêles é que recebe estímulo e confôrto.

Possa a universidade brasileira dar-lhes êste mínimo de condições de trabalho e o restante será feito. E êsse restante será o alargamento da ciência no Brasil e a integração do país no seu desenvolvimento e em sua expansão de país moderno.

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