TEIXEIRA, Anísio. Notas para a história da educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.37, n.85, jan./mar. 1962. p.181-188.

NOTAS PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Na inauguração dos cursos da Universidade pioneira do então Distrito Federal, a 31/7/935, o Reitor Prof. Anísio Teixeira proferiu estas palavras:

Por mais limitado que seja o âmbito de vida de qualquer povo, lá iremos encontrar, em gérmen - por vêzes, obscuras e indiscriminadas, - quatro grandes instituições fundamentais, que lhe constróem e condicionam a vida em comum: a família, o estado, a igreja e a escola.

Desde que haja vida em comum, e vida em comum de homens, essas instituições, sob alguma forma, hão de aparecer, e aparecem para manter, nutrir, ordenar e iluminar a vida em comum. Existir em sociedade envolve, com efeito, imensas complexidades. Cada indivíduo nada mais sendo do que uma urdidura de laços sociais, tôda sua vida transcorre em plano superior ao de sua própria vida física e seus meios de expressão não podem ser outros que os das instituições de sua sociedade.

Dentre essas instituições avultam as que mais largamente lhe compõem o quadro da existência coletiva. A família que vela pelo seu desenvolvimento inicial e o conduz a se tornar, por sua vez, um perpetuador de sua espécie; o estado que lhe defende e regula a vida em grupo; a igreja que lhe dá o sentido profundo do seu devotamente social; e a escola que o humaniza e socializa.

Tôdas essas funções se confundem e se misturam, em cada uma dessas instituições, de tal maio que a história de qualquer delas é, de algum modo, a história da humanidade.

À medida que marcha a civilização, melhor se caracterizam, entretanto, essas instituições e um equilíbrio, sem hierarquia, se vai estabelecendo entre suas funções.

Se tôdas visam, com efeito, tornar possível e rica a vida entre os homens, nem por isso são menos distintos e independentes os meios de que dispõem para êsse mesmo fim comum e único.

Nesse sentido vamos lentamente emergindo da confusão inicial em que tôdas as instituições sofriam a supremacia de uma única, fôsse a família, a igreja ou o estado, para uma separação de podêres que é essencial à ação correta e adequada de cada uma delas.

Predomínio estreito da família, prepotência da igreja, ditadura espiritual do estado, êsses foram, com efeito, os estágios que temos atravessado, e em que se corrompeu a pureza funcional de cada uma dessas instituições pelo uso de meios que pertenciam orgânicamente ao desempenho de funções, qualitativamente diversas, das demais instituições.

A independência e separação entre elas não é, assim, contingência política, mas o próprio imperativo experimental para seu bom funcionamento.

De tôdas elas, a escola é a que mais recentemente se vem emancipando, não sendo quase possível exemplificar, na história, já não digo período de sua predominância, mas de sua legítima e total, independência.

Confundida sua função com a família, com a igreja e com o estado, é, ainda hoje com êsses três senhores, que ela discute sua autonomia... Ou melhor, são ainda êsses três senhores que discutem, entre si, sôbre a sua tutela.

Nem por isso, entretanto, a evolução inevitável das instituições deixa de se processar. Nessa designação genérica de escola, há muita cousa que distinguir. Da simples cerimônia de iniciação por que ela se caracterizava nos povos primitivos, diretamente subordinada à sociedade, em sua função global de matriz de indivíduo, até a complexidade dos sistemas escolares modernos, há uma longa estrada percorrida, em que se podem perder de vista muitos dos objetivos fundamentais da escola, na sua função característica, de mantenedora dos valores humanos e de instrumento para o seu desenvolvimento.

É em uma das formas que assumiu, nos tempos modernos, tal instituição que vamos encontrar a natureza legítima de sua função histórica. Essa forma é a da Universidade.

Data realmente das Universidades a distinção profunda das funções da sociedade. Até êsse remoto undécimo século de nossa época, o interêsse pelo estudo, pela cultura e pela inteligência, se confundia dentro das instituições existentes, sobretudo da Igreja, não sendo a conservação e o desenvolvimento do saber humano objeto de nenhuma instituição especializada e autônoma.

As origens das Universidades, embora diversas nas suas circunstâncias concretas, em cada região da Europa, encontram sua causa fundamental na estabilização das correntes migratórias e na possibilidade que daí decorreu para o desenvolvimento da civilização européia. De certo modo, pois, as Universidades anunciam o florescer da civilização ocidental.

Chegada a vida humana ao estágio de desenvolvimento em que se encontra no século décimo e undécimo de nossa época, começa a se discriminar, com as Universidades, a função da escola, no seu caráter de órgão supremo da direção intelectual da humanidade.

O tipo de organização social dessa época iria favorecer, de algum modo, a autonomia da nova instituição. A Idade Média, com efeito, por efeito, por intermédio do feudalismo, das corporações e da Igreja controlava e governava, integralmente, a vida individual. Tôdas as franquias, direitos e privilégios eram distribuídos e assegurados por essas instituições a que se incorporavam todos os indivíduos.

O aparecimento das universidades significava o aparecimento de uma instituição que retirava da Igreja e do Estado funções anteriormente exercidas por êsses dois podêres. De quem receberia essa instituição o direito de existir e funcionar? Em sociedade menos rígida que a da Idade Média, medrariam por si e de si mesmas, sujeitas a tôdas as eventualidades. Naquela sociedade, entretanto, a disciplina que as regulou foi uma condição para o exercício vigoroso da sua função. A carta ou estatuto de direitos e privilégios, concedidos às novéis instituições pelos monarcos ou pelo Papa, foi o primeiro reconhecimento da autonomia essencial que vieram desenvolvendo, daí por diante, as universidades, até que se puseram em pé de igualdade com as grandes instituições fundamentais da humanidade: a família, a igreja e o estado.

A Universidade é, pois, na sociedade moderna, uma das instituições características e indispensáveis, sem a qual não chega a existir um povo. Aquêles que não as têm, também não têm existência autônoma, vivendo, tão-sòmente, como um reflexo dos demais.

Com efeito, a história de todos os países que floresceram e se desenvolveram é a história da sua cultura e a história da sua cultura é, hoje, a história das suas universidades. Sempre a humanidade viveu utilizando a experiência do passado, mas essa experiência atingiu, nos tempos modernos, a tamanha complexidade intelectual, que, sem a existência das universidades, grande parte dela se teria perdido e outra grande parte nem chegaria a ser formulada.

Dir-me-eis que a imprensa e o livro as salvariam, dispensando as dificuldades e dispêndios dessas complexas organizações universitárias que a muitos, entre nós, chegam a parecer luxuosas e supérfluas.

De fato, parece que assim devia ser. Com a invenção da imprensa, pràticamenle deveria desaparecer a Universidade.

Ocorre-me, até, que essa deve ser a razão filosófica e profunda, porque é corrente entre nós a idéia, verdadeiramente formidável, de que a cultura de um povo deriva de lhe ensinarmos a ler. As esperanças exageradas postas na alfabetização apressada dos brasileiros devem estar aí. Por que universidade, por que ensino superior, se existem livros e se os livros contêm tôda a cultura humana?

Já reparastes, entretanto, que a nenhum povo da história ocorreu êsse ôvo de Colombo? Já notaste que, muito pelo contrário, a imprensa e o livro condicionaram o surto das universidades?

Não. A função da Universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata sòmente de difundir conhecimentos. O livro também os difunde. Não se trata, sòmente, de conservar a experiência humana. O livro também a conserva. Não se trata, sòmente, de preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou artes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em último caso, escolas muito mais singelas do que universidades.

Trata-se de manter uma atmosfera de saber, para se preparar o homem que o serve e o desenvolve. Trata-se de conservar o saber vivo e não morto, nos livros ou no empirismo das práticas não intelectualizadas. Trata-se de formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva.

Trata-se de difundir a cultura humana, mas de fazê-lo com inspiração, enriquecendo e vitalizando o saber do passado com a sedução, a atração e o ímpeto do presente.

O saber não é um objeto que se recebe das gerações que se foram, para a nessa geração, o saber é uma atitude de espírito que se forma lentamente ao contato dos que sabem.

A Universidade é, em essência, a reunião entre os que sabem e os que desejam aprender. Há tôda uma iniciação a se fazer. E essa iniciação, como tôdas as iniciações, se faz em uma atmosfera que cultive, sobretudo, a imaginação. . . Cultivar a imaginação é cultivar a capacidade de dar sentido e significado às coisas. A vida humana não é o transcorrer monótono de sua rotina quotidiana, a vida humana é, sobretudo, a sublime inquietação de conhecer e de fazer. É essa inquietação de compreender e de aplicar, que encontrou afinal a sua casa. A casa onde se acolhe tôda a nossa sêde de saber e tôda a nossa sêde de melhorar, é a Universidade.

Tanto mais ficamos capazes de compreender - pelos processos científicos modernos - tanto mais ficamos capazes de aplicar, sob forma nova, o que compreendemos - pelos meios industriais modernos - tanto mais precisamos e tanto mais sentimos a Universidade, a instituição que vela para que a curiosidade humana não se extinga, mas se cultive, se alimente e continue a fazer marchar a vida.

São as Universidades que fazem, hoje, com efeito, a vida marchar. Nada as substitui. Nada as dispensa. Nenhuma outra instituição é tão assombrosamente útil. Perdoai-me, senhores, essa longa exposição que se tornou necessária para chegarmos ao limiar da nossa jovem Universidade do Distrito Federal, cujos cursos hoje se inauguram. Em país, como o Brasil, extenso como um continente, a que aportou há 135 anos a civilização ocidental, a civilização feita pelas Universidades, deveria ter parecido a muitos uma extravagância mais uma universidade. Deveria ser uma extravagância, tantas já deveríamos ter. A pequena Europa possuía no século XIII, dezenove dessas instituições. No século XIV, quarenta e quatro. No século XV, setenta e quatro.

Quase cinco séculos depois, possuímos seis universidades, das quais apenas uma tem, além de objetivos práticos e profissionais, objetivos de cultura desinteressada e de preparação para a carreira intelectual.

Pois neste nosso país que não é, positivamente, a pátria das universidades, começamos a nos organizar, com rumôres em volta de nós de que somos de mais, de que nos sobram instituições de cultura superior e nos faltam escolas primárias.

Ninguém até hoje mais profundamente sentiu a necessidade de educação popular primária que Jefferson, que declarou, certa vez, em 1823, que, se tivesse que escolher entre o ensino primário e a Universidade, mais fàcilmente fecharia esta do que aquêle, de tal modo lhe parecia importante para o seu país a difusão entre a massa, dos conhecimentos essenciais. Raros homens de estado, entretanto, podem se orgulhar, como Jefferson, de terem deixado de sua vida um monumento tão imperecível como à Universidade de Virgínia, carinhosamente fundada, organizada e constituída pelo grande espírito da democracia no nôvo Continente.

E o fêz em período em que o ensino primário em seu país apenas se iniciava, não estando sequer fundada a primeira escola normal de professôres primários.

Nesta própria América do Norte, as grandes e famosas Universidades datam de muitas dezenas e, por vêzes, centenas de anos antes de se pensar em um sistema de educação pública para todos.

É que nenhum país do mundo, até hoje, julgou possível construir uma cultura de baixo para cima, dos pés para a cabeça. Para haver ensino primário, é necessário que exista antes o secundário e para que o secundário funcione, é preciso que existam Universidades.

Entre nós, predominou, entretanto, em cultura o mais espantoso praticismo que já alguma vez assolou uma nação. Em ensino primário, basta-nos alfabetização, e acima dele bastar-nos-ia, todos o repetem, ensino de ofícios e artes. Que estranho país seria êsse em que a cultura e a ciência ainda não chegaram a ser aceitas e, por tôda a parte, se pede tão singular e universal formação utilitarista, no sentido limitado e estreito da palavra?

Êsse país é o país dos diplomas universitários honoríficos, e o país que deu às suas escolas uma organização tão fechada e tão limitada, que substituiu a cultura por duas ou três profissões práticas, é o país em que a educação, por isso mesmo, se transformou em título para ganhar um emprêgo.

Haverá, por acaso demasiado ensino superior, no Brasil? Não. O que há são demasiadas escolas de certo tipo profissional, distribuindo anualmente diplomas em número muito maior que o necessário e o possível, no momento de se consumir.

Entre essas escolas e as escolas de que precisa o país para formar seu quadro de intelectuais, de servidores da inteligência e da cultura de professôres, escritores, jornalistas, artistas e políticos, há todo um mundo a transpor.

E qual a Universidade que abre, hoje, aqui as suas portas? É, por acaso, mais urna universidade para o preparo puro e simples de profissionais, de médicos, bacharéis, dentistas e de engenheiros civis?

Não. É uma universidade cujas escolas visam o preparo do quadro intelectual do país, que até hoje se tem formado ao sabor do mais abandonado e mais precário autodidatismo. Uma escola de educação, uma escola de ciência, uma escola de filosofia e letras, uma escola de economia e direito, e um instituto de artes, com objetivos desinteressados de cultura não podem ser demais no país, como não podem ser demais na metrópole dêsse país.

A crítica não tinha como ser mais infeliz. Não podia morrer, entretanto, a malevolência dos que se obstinam em não deixar o país progredir para que possa continuar a viver à custa dêle, na sua meia ignorância. Já agora, a Universidade do Distrito Federal podia ser útil e até necessária, mas devia fechar-se porque desobedecia os padrões de uma lei federal do período discricionário, tàcitamente derrogada pela Constituição Federal.

Representantes diretos da autonomia local se transformaram, sùbitamente, em vestais de um regulamento universitário federal, encontrando aí elementos doutrinários e técnicos para destruir a instituição carioca que não quisera duplicar as congêneres federais, mas organizar-se em moldes próprios que, entretanto, não ferem, essencialmente, nenhum dispositivo das próprias leis federais derrogadas pela Constituição.

Desobedecia, porém, à letra dos regulamentos do govêrno provisório; há nomes que não são integralmente os mesmos; há divisões e autonomias que não são previstas; e não há passiva e textual repetição do que está escrito na lei federal; logo a Universidade é inconstitucional, ilegal e nula.

Nunca se chegou, no Brasil, a tão insignificante, estreita e elementar compreensão do problema educativo brasileiro. Nunca se pretendeu tão infantilmente encerrar-se a cultura nacional dentro de um regulamento. Nunca o espírito burocrático foi tão audacioso em querer sobrepor-se à própria realidade das coisas e à própria realidade das instituições. Tudo, para quê? Para ferir o Distrito Federal que se atrevera a pensar em uma Universidade e se atrevera a fazê-la porque os que deviam tê-la feito, não a fizeram até agora.

Há, entretanto, senhores, alguma incompatibilidade real entre a Universidade do Distrito Federal e os regulamentos ou leis federais? Nenhuma de nenhuma. Na lei federal, para seu modêlo temos apenas a Faculdade de Educação, Ciências e Letras, representada na Universidade do Distrito pela Escola de Ciências, Escola de Educação e Escola de Filosofia e Letras, que obedecem aos requisitos mínimos da lei federal. Temos ainda a Escola de Economia e Direito e o Instituto de Artes. Se, por acaso, amanhã, as circunstâncias demandassem que a Universidade mantivesse maior número de cursos idênticos aos federais, todos êles se poderão instalar dentro das fôrmas do decreto instituído.

lmaginemos, porém, que as maquinações dos inimigos do Distrito Federal viessem a triunfar e que novas leis federais, como uma que foi tentada, pudessem realmente ferir a Universidade local e impedir-lhe a validez dos títulos além dos limites da cidade do Rio de Janeiro.

Que sucederia? Sucederia que a Universidade não só continuaria a viver e a servir esta grande metrópole, como ainda ganharia mais profundamente seu caráter de Universidade que deseja valer pelo seu mérito intrínseco e não pelas chancelas governamentais que possam receber seus títulos.

Profissões se regulamentam, mas não se regulamenta a cultura. Um homem culto e um homem diplomado são duas coisas. Infelizmente, bem diversas entre nós.

Escreveu certa vez alguém a Voltaire, estranhando a pobreza de nomes da língua francesa para designar os sábios. Voltaire respondeu dando ao ingênuo missivista vários têrmos sinônimos e lhe dizendo por fim: o que é, porém, importante é que não sòmente temos o nome, mas a coisa.

A nossa situação seria de algum modo semelhante, caso se realizasse a previsão absurda com que nos querem ameaçar: deixaríamos de ter o nome, mas teríamos a coisa...

São dêsse quilate as dificuldades com que procuram obstar a marcha do sistema escolar do Distrito Federal. Ontem, faziam o mesmo com o ensino secundário. Também êsse era vedado ao Município. Também êsse era vedado à Capital do País. Hoje é com o ensino universitário. O povo, entretanto, saberá ver e separar os que o estão servindo e os que se dizem seus defensores e, na realidade, amesquinham e diminuem tudo que é realizado e tentado por êsse forte e intrépido povo carioca.

O humilde ensino primário que lhe permitiam possuir está hoje quase que duplicado com escolas que honram todo o Brasil. O ensino técnico, redimido de suas bases antidemocráticas, hoje se ostenta como um verdadeiro sistema de ensino secundário, de sentido nacional, para uma sociedade de trabalho, que leva para a oficina o mesmo título que habilita a uma ocupação de carteira. E agora o ensino superior, já iniciado com o preparo em nível universitário dos mestres primários, se amplia em uma universidade de fins culturais, que buscará desenvolver o saber em todos os seus aspectos, aspirando transformar-se num dos grandes centros de irradiação científica, literária e filosófica do país.

Essa irradiação de pensamento não virá, sòmente, do acréscimo de conhecimentos para que possìvelmente a universidade tenha de contribuir.

Essa irradiação será antes a conseqüência da coordenação intelectual que a universidade fatalmente desenvolverá.

A cultura brasileira se ressente, sobretudo, da falta de quadros regulares para sua formação. Em países de tradição universitária, a cultura une, solidariza e coordena o pensamento e a ação. No Brasil, a cultura isola, diferencia, separa. E isso, por quê? Porque os processos para adquiri-Ia são tão pessoais e tão diversos, e os esforços para desenvolvê-la tão hostilizados e tão difíceis, que o homem culto, à medida que se cultiva, mais se desenraíza, mais se afasta do meio comum, e mais se afirma nos exclusivismos e particularismos de sua luta pessoal pelo saber.

Não há uma comunhão dos cultos. Repelido, muitas vêzes, pelo meio, sôbre o qual se eleva pelos conhecimentos superiores ou especializados que adquiriu à própria custa, o homem culto é, ainda, no Brasil, hostilizado pelos outros homens cultos. A heterogeneidade e deficiência dessas diferentes culturas individuais e individualistas, fazem com que o campo de ação intelectual e pública, no país, se constitua um campo de lutas mesquinhas e pessoais, em que se entredevoram, sem brilho e sem glória, os parcos homens de inteligência e de imaginação que ainda possuímos.

Não será isso, exatamente, porque nos faltam essas instituições regulares de cultura, em que os homens se formam num ambiente de livre circulação de idéias, seguindo caminhos diversos, mas em uma mesma atmosfera e um mesmo meio, vivendo, afinal, a vida da inteligência, em comum, associadamente, fraternalmente?

A singular agrestia do meio intelectual e público do Brasil, em que os julgamentos são armas de combate, a análise, forma insidiosa de oposição, e o desejo de destruir e diminuir a obra alheia, o próprio modo de ser da inteligência, não será êsse nosso famigerado antropofagismo político e mental a conseqüência mais grave do nosso nomadismo intelectual, do nosso isolamento espiritual, e dos nossos processos indígenas de estudo e de formação mental?

Estou que êsse é o mais grave aspecto do aparentemente inocente autodidatismo nacional. Somos isolados e hostis, porque é isolada e hostil a forma de nos prepararmos intelectualmente para as lutas da vida e do espírito.

Não cooperamos, não colaboramos, não nos solidarizamos com os companheiros. nem em ação, nem em pensamento porque cada um de nós é o centro do universo, e só dêsse centro partirá a verdadeira ação e o verdadeiro pensamento.

É êsse isolamento que a Universidade virá destruir. A Universidade socializa a cultura, socializando os meios de adquiri-Ia. A identidade de processos, a identidade de vida, e a própria unidade local fará com que nos cultivemos, em sociedade. Que ganhemos em comum a cultura. Que nos sintamos solidários e unidos pela identidade de objetivos, de preocupações, de interêsses e de idéias. E, daí, que nos sintamos uma comunidade governada por um espírito comum e comuns ideais.

A coordenação da vida espiritual do Brasil não nos chegará sem o cultivo dos processos universitários de ensino superior. O isolamento e o autodidatismo nacionais fazem-nos incoerentes, paradoxais, irritadiços e extravagantes. A opinião intelectual de um país é o reflexo de seus meios e processos de cultura. A universidade vem-nos dar disciplina, ordem, sentido comuns e capacidade de esfôrço em comum. Nenhum ideal menor pode-nos bastar, na pequena universidade que hoje aqui se instala, para a grande aventura intelectual que vamos viver. Ela há de triunfar e há de cumprir seu dever e sua missão.

Pouco importam as fadas más... Também as boas lhe rodeiam o berço. Há tôda uma expectativa sadia e otimista em tôrno da nova instituição, expectativa confirmada peIa escolha dos primeiros professôres e pela afluência de candidatos às suas matrículas.

De tal modo a Universidade do Distrito Federal vem preencher uma necessidade profunda do país, que sua marcha se fará, a despeito de quaisquer dificuldades materiais e de quaisquer obstáculos opostos pelos que sonhavam um instrumento semelhante, para afeiçoá-lo aos seus desígnios ou aos seus propósitos sectários.

Porque, forçoso é repetir, a Universidade, como instituição de cultura, deverá estar na encruzilhada do presente. Ela não se constitui para isolar da vida e torná-la a mestra da experiência. Seus problemas serão os problemas de hoje, examinados à luz da sabedoria do passado. A serviço do presente e do futuro, a Universidade não deseja, entretanto, constranger o porvir dentro de fórmulas apriorísticas ou predeterminadas.

Muito ciosa das conquistas feitas de liberdade de pensamento e de crítica, a Universidade não as dispensa para viver. Não terá ela nenhuma "verdade" a dar, a não ser a única verdade possível, que é a de buscá-la eternamente. Fiel, assim, à grande tradição universitária da humanidade, havia de, por certo, desgostar aos que querem diminuir o Brasil até ajustá-lo aos limites de suas ideologias pessoais e de suas pessoais inquietações.

Muitos sonhavam, é certo, iniciar entre nós, a tradição universitária recusando essa liberdade de cátedra que foi conquistada pela inteligência humana nas primeiras refregas intelectuais de nossa época.

Muitos julgavam que a Universidade poderia existir, no Brasil, não para libertar, mas para escravizar. Não para fazer marchar, mas para deter a vida. . . Conhecemos, todos, a linguagem dêsse reacionarismo. Ela é matusalênica.

"A profunda crise moderna é sobretudo uma crise moral" "Ausência de disciplina" "De estabilidade" "Marchamos para o caos Para a revolução". "É o comunismo que vem aí". Falam assim hoje. Falavam assim, há quinhentos anos.

É que a liberdade, meus senhores, é uma conquista que está sempre por fazer. Desejamo-la para nós, mas nem sempre a queremos para os outros. Há, na liberdade, qualquer coisa de indeterminado e de imprevisível, o que faz com que só a possam amar os que realmente tiverem provado, até o fundo, a insignificância da vida humana, sem o acre sabor dêsse perigo. Por isso é que a Universidade é e deve ser a mansão da liberdade. Os homens que a servem e os que, aprendendo, se candidatam a servi-Ia, devem constituir êsse fino escol da espécie para quem a vida só vale pelos ideais que a alimentam. Essa bravura é que os torna invencíveis. Não morreram em vão os que morreram por êsse ideal de um "pensamento livre como o ar" ...

Todos os que desapareceram nessa luta, corno todos os que hoje nela se batem, constituem a grande comunhão universitária que celebramos nesta inauguração solene dos nossos cursos.

Dedicada à cultura e à liberdade, a Universidade do Distrito Federal nasce sob um signo sagrado, que a fará trabalhar e lutar por um Brasil de amanhã, fiel às grandes tradições liberais e humanas do Brasil de ontem.

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