TEIXEIRA, Anísio. Notas sobre a educação e a unidade nacional. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.18, n.47, jul./dez. 1952. p.33-49.

NOTAS SôBRE A EDUCAÇÃO E A UNIDADE NACIONAL (*)

ANÍSIO TEIXEIRA

Diretor do Instituto Nacional

de Estudos Pedagógicos

Sem desconhecer as relações existentes entre a educação e a unidade nacional, confesso que o tema, assim formulado, a educação e a unidade nacional, como me foi amàvelmente impôsto pela ABE, nesta série de palestras e conferências, com que está a contribuir para o grande debate brasileiro sôbre a educação, se a princípio chegou a interessar-me, veio depois, sob melhor reflexão, revelar-se algo constrangedor.

Com efeito, vejo o problema da unidade nacional sob luz tão complexa e tão diversa, que discuti-lo em contraste com a educação parece-me uma limitação inibidora.

Não tenho, assim, outro recurso senão o de fazer preceder os meus comentários de algumas considerações gerais que me parecem indispensáveis para situar a questão da unidade nacional, que preferiria chamar de coesão ou integração nacional.

Uma nação ou um povo é a expressão de sua cultura e essa cultura será tanto mais una, homogênea e inteiriça quanto mais simples ou primitiva. A unidade de uma cultura primitiva é quase perfeita e tanto mais perfeita quanto mais fôr inconsciente. Nas culturas avançadas ou superiores, altamente conscientes, êsse tipo de unidade só é conseguido em momentos de perigo e de guerra e, por isto mesmo, também só é aceito como coisa provisória e passageira. A unidade não é, assim, um bem senão sob certas condições e em certa quantidade. Demasiada unidade é uma condição de elementarismo, ou, então, nas culturas desenvolvidas, um constrangimento sòmente suportável temporàriamente, em situações excepcionais de crise ou de guerra.

Seja na evolução da vida ou das culturas, diversificação é que é condição de progresso, e uniformidade e especialização condições de parada senão de possível extinção ou morte. Na vida êsse progresso se realiza por um aumento sempre crescente, de complexidade e de aptidões orgânicamente harmônicas e nas culturas, sobretudo, por um aumento de variação e diversificação que, na medida em que se fazem conscientes, se fertilizam mùtuamente e geram aquela unidade dinâmica que é o permanente milagre da unidade na variedade das grandes culturas florescentes.

O desenvolvimento cultural da humanidade é uma lenta marcha da unitariedade para a diversidade, processo que sòmente nos últimos dois mil anos, isto é, em nossa era, conquista uma relativa aceleração graças ao desenvolvimento da inteligência especulativa do homem e, em conseqüência, do seu pensamento literário e científico. Até então as culturas não tinham como não ser altamente inconscientes e, por isso mesmo, muito mais uniformes e estáticas. A partir, primeiro dos judeus e depois dos gregos, é que podemos falar de culturas conscientes e do ímpeto dinâmico de diversificação e progresso que essa conscientização das culturas pode promover e promove, sem perda de sua unidade orgânica.

É por êste aspecto que se pode considerar a educação como uma das condições para a unidade de uma cultura em processo de diversificação ou florescimento. O desenvolvimento das culturas se operando por um processo de diferenciação progressiva, a sua unidade será tanto maior quanto mais conscientes forem essas diversificações. Ora, a educação, entendida em sua forma mais especializada de educação escolar, é o meio de torná-las conscientes e, por êste modo, lhes dar coesão e integração. Não esqueçamos, porém, que as culturas só começam verdadeiramente a diferenciar-se, isto é, a se enriquecer, depois que se fazem conscientes e sòmente se fazem conscientes depois do desenvolvimento intelectual da humanidade, proveniente de sua maior educação. Logo, a educação é também um dos instrumentos da diversificação cultural e já agora podeis ver as razões de minha reserva ao modo pelo qual foi formulado o tema de minha palestra - educação e unidade nacional. Preferiria formulá-lo - educação e diversificação nacional.

Com efeito, as culturas vivem e crescem e florescem pela interação, digamos a palavra, pelo atrito com outras culturas ou pelo atrito entre as variedades da mesma cultura, e se atrofiam ou morrem, pela segregação e isolamento, que lhes promovem aquela excessiva e mortal unidade, homogeneidade e imobilidade.

O Brasil tem uma cultura, sob certos aspectos, viva, e sob outros, em processo de esclerose ou atrofia. Por um lado pertence à grande espécie cristã-ocidental de cultura, por outro prende-se às culturas primitivas da África e da América pré-colombiana. Estas três culturas se amalgamaram mas não se assimilaram completamente. E certa unidade excessiva que, por vêzes, parece possuir, provém do caráter elementar sobrevivente das culturas primitivas que contribuíram para a sua formação e do isolamento cultural em que vivemos por mais de três séculos, durante a colônia.

A segregação e o estado de ignorância que nos impôs a metrópole acentuaram os elementos unificadores das culturas primitivas e enfraqueceram a capacidade de diversificação e crescimento da cultura mais alta, por sua vez algo estanque, a que fomos mais intencional é deliberadamente submetidos, constrangendo-nos, assim, à homogeneidade de certos elementos culturais, como a língua, a religião e certas formas de sentimento e de comportamento. Tenho que essa excessiva homogeneidade, se, por um lado, foi um bem, por outro, limitou e reduziu as nossas possibilidades de enriquecimento cultural. Tudo leva a crer que foi longe demais, determinando uma certa petrificação.

O espírito defensivo que se vem criando a favor dessa cristalização da cultura brasileira parece-me sumamente inepto. Defende-se a morte de nossa cultura. Como alguns grupos sociais acabaram por identificar os seus interêsses com a estagnação de determinados traços culturais brasileiros, vemos a cada passo êsses grupos se esforçarem frenèticamente pela conservação de certas uniformidades, mesmo quando o crescimento cultural está saudàvelmente impondo diversificação e multiplicidade.

O êrro provém, sobretudo, da idéia de que uniformidade, unitariedade, linearidade é um bem, quando, em cultura, é indicação de primitivismo, de selvageirismo, de barbarismo, de não desenvolvimento, ou de ausência de crescimento. Tôda cultura viva tende a se diversificar, a variar, e o entre-choque das variedades é que lhe permite o crescimento e a saúde, inclusive com a revitalização das formas anteriores, em perigo de extinção, e que, pelo desenvolvimento, se integram no novo estágio, renovadas e reorganizadas.

Não há ilustração mais estridente do enriquecimento que representa para a cultura a divisão e perda de unitariedade do que o movimento da Reforma na religião cristã-romana e depois a multiplicação das seitas do protestantismo. Todo o extraordinário florescimento da cultura moderna, em grande parte, daí se origina e aí se apóia. Se o catolicismo continuasse uniforme e unitário, haveria sequer a possibilidade dêsse florescimento? E o maior ímpeto dêsse florescimento nos países protestantes não é uma indicação de que, com a maior divisão, mais se afirmaram as condições e os estímulos de desenvolvimento e progresso?

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A minha tese é a de que a diversificação é a condição de florescimento das culturas, e a uniformidade, a condição de sua morte e petrificação. E isto me parece tão objetivo e exato que julgo do próprio interêsse dos que desejam conservar certos traços da cultura de um povo a promoção do processo de diversificação. Porque, como já disse, a diversificação age contra os sinais de decrepitude e estagnação, revitalizando os próprios tecidos culturais em processo da mortificação, provocado pela uniformidade e imutabilidade.

Tudo me leva a crer, sem o menor resquício de malícia, que o catolicismo brasileiro, por exemplo, muito teria a ganhar de um incremento do protestantismo entre nós, e o protestantismo, da multiplicação no país de maior número de suas diferentes seitas. O casamento católico e indissolúvel tudo terá, por sua vez, a ganhar com a introdução do divórcio. O que importa, na cultura de um povo, é o atrito, a oposição, pois êstes são os elementos que promovem o revigoramento e a vida de suas instituições e maneiras de ser.

Além da estagnação, a uniformidade promove, como conseqüência da petrificação cultural, antagonismos destrutivos da própria cultura. A perfeita unidade religiosa, por exemplo, promove a irreligiosidade, ou o radical ateísmo como única saída; a unicidade e rigidez institucional, como no caso do casamento único e indissolúvel, promove a fraude, a licença e a anarquia, agindo, portanto, não sòmente contra à diversificação, como contra os próprios traços culturais que se imagina poder defender e manter, graças à imposição de uniformidades e imobilidades.

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Ao falarmos de unidade nacional, pois, cumpre distinguir a que unidade nos referimos. A mais importante é a unidade da cultura brasileira, que poderá e deverá ser a unidade dinâmica de uma cultura diversificada pelas regiões brasileiras e filiada à cultura muitíssimo diversificada e diversificante do Ocidente, pelos traços ibéricos e lusitanos (galegos, minhotos, alfacinhas, do Algarve e até das Ilhas, dos Açores e de Cabo Verde, de cristãos novos, de judeus e até de mouros) transplantados, seguidos dos traços de outras influências indiretas ou mediatas, depois direta e imediatamente atuantes, cada vez mais, em graus diversos e em variadas combinações e ênfases, conforme as várias regiões do país.

Nessa unidade, assim compósita e complexa, os nossos cuidados são mais no sentido de manter diversidades naturais e vivedouras do que de aumentar a unidade, por ilusórias imposições preconcebidas, pois sabemos que uma cultura sòmente floresce à custa dos atritos e interações entre as suas diferentes modalidades e variedades. O entre-choque consciente das diferenças e oposições é que cria a unidade dinâmica que, esta sim, todos devemos promover.

Por aí é que a educação atua no desenvolvimento da unidade nacional. A educação faz-nos conscientes de nossa cultura viva e diversificada, e assim é que lhe promove a unidade, revelando-nos as suas particularidades e diferenças e fundindo-as em um processo dinâmico e consciente de harmonia e coesão.

Na medida em que formos cultos, isto é, conhecedores de nossa cultura, nessa medida seremos instrumentos de sua unidade, pois esta decorrerá muito do grau de consciência que temos de suas diversidades e do sentido orgânico que dêste modo lhe dermos. Não serão instituições, que promoverão a sua unidade, mas, o próprio pensamento e sensibilidade da Nação, expresso pelas suas artes e letras, por intermédio do povo e dos seus intelectuais. Além dessa unidade cultural, mas dela também dependentes e por ela fortalecidas, temos a unidade política do país e a unidade administrativa, asseguradas pela Constituição e pelo conjunto de leis federais e estaduais.

A escola não é fator dessas unidades, mas, o resultado de tôdas elas, retratando-as, naturalmente, porque seus professôres e alunos pertencem à mesma cultura, falam a mesma língua, pensam e sentem e se conduzem dentro das mesmas uniformidades e variedades que caracterizam a cultura brasileira, cujo enriquecimento e florescimento dependerá do grau e extensão com que aquelas diversificações sejam mantidas e se comuniquem e se influenciem mùtuamente. Dêste ponto de vista, a unidade da cultura brasileira será sempre mais um resultado da liberdade com que as suas culturas regionais possam coexistir e se entrefecundar, do que de qualquer plano unificador.

E quando se fala em planos dêsse gênero, devemos ficar de sobreaviso. Não será bem a unidade que se quer promover, mas a paralisação ou abolição de algum aspecto de diversificação da cultura brasileira, que pareça, por algum motivo, pouco desejável aos autores do plano ou nêle interessados.

Com efeito, vejamos de quanta saudável diversidade é feita a unidade da cultura européia. Vamos mesmo mais longe, ou melhor, mais fundo, e tomemos a unidade da cultura francesa, ou inglêsa, ou italiana, e vejamos de quanta diversidade, até mesmo de língua, são feitas essas unidades.

No Brasil, temos culturas regionais muito menos diversificadas, tôdas fundidas na mesma língua, que é o instrumento fundamental da unidade cultural, não podendo, por isto mesmo, se falar em perigo quanto à sua unidade mas, sim, quanto ao excesso de unidade, o que, sem dúvida, representa um perigo bem maior para as culturas.

Não há, aliás, no país nenhum real receio consciente de perda de unidade cultural. Muito pelo contrário. As escolas estão sempre a fazer mais do que talvez deveriam fazer no sentido de promover a influência estrangeira em nossa cultura. Somos, talvez, o único país que tenta ensinar a todos os seus alunos de curso secundário três e quatro línguas estrangeiras e a geografia e a história de não sei quantos países do mundo, ninguém jamais pensando que êsse ensino nos pudesse desnacionalizar, o que, se tal perigo existisse, não deixaria de ocorrer.

Reconheçamos, aliás, que isto é mais decorrente de nossa falta de consciência cultural, de nossa falta de autonomia cultural do que de qualquer possível propósito de enriquecimento de nossa cultura. Dou, porém, o exemplo para revelar a ausência de qualquer sentimento de perigo em relação à unidade de nossa cultura.

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- Donde, pois, vem essa preocupação pela unidade nacional e a idéia de que a escola se deva tornar em sua intencional promotora?

Os chamados problemas de unidade nacional no Brasil ou não são problemas ou, quando o são, não são de unidade nacional. Na realidade, os unitaristas têm um problema, mas êste não é o da unidade nacional, senão o do contrôle das escolas, para que possam fazer delas instrumentos de suas idiossincrasias ou de planos outros preconcebidos, com os quais põem em perigo exatamente a unidade da cultura nacional, que, estrangulada em certas uniformidades, entrará em mortificação, com o progressivo desaparecimento de nossas culturas regionais ou, pelo menos, a restrição à sua liberdade de florescimento.

A liberdade de diversificação regional, o ajustamento e adaptação aos particularismos e às condições locais são elementos essenciais para o enriquecimento e a vida de uma cultura e, na extensão continental do Brasil, estas são as nossas esperanças de poder desenvolver uma cultura orgânica e vivaz, e uma verdadeira civilização brasileira.

Cumpre reconhecer, entretanto, que, ao lado dessa diversificação natural das culturas em florescimento, registramos, em nossa época, um processo de mudança extremamente acelerado, determinado pelo progresso da tecnologia e da ciência, em todos os seus aspectos, e pela industrialização progressiva da vida humana. Estas mudanças vêm provocando deslocamentos econômicos, quebra de padrões de comportamento, alterações de crenças e certezas que, sem dúvida, constituem ameaças à estabilidade e coesão sociais. A crise não é, neste ponto, apenas brasileira, mas de todo o mundo e, em todo êle, está sendo enfrentada por três políticas diversas. A de se deixar levar, ou de se deixar arrastar pela corrente; a de defender intransigentemente certas fôrças sociais e combater outras, no intuito de impedir certas mudanças; ou a de criar uma atmosfera de estudo e de análise, em face das fôrças sociais em conflito, procurando antes redirigi-las, descobrir-lhes a resultante conciliadora, do que, ao revés, opor-se a umas e favorecer a outras, num plano preconcebido de conservadorismo social.

As três atitudes refletem, entretanto, no fundo, a consciência de mudança social. Pela primeira, a sociedade se deixa arrastar, cegamente; pela segunda, adota a posição conservadora, com maior ou menor inteligência; pela terceira, aceita as mudanças em curso e procura dirigi-Ias e harmonizá-las. Esta terceira atitude, que é a mais difícil, parece-me também a mais certa. Depois de têrmos a consciência de que a mudança é inevitável, a política mais inteligente será a de aceitá-la e procurar orientá-la no sentido de não a fazer destrutiva, mas dinâmicamente integradora.

São essas três políticas que se refletem na escola, não se elaboram ali: refletem-se, apenas, pois a escola não é o centro de onde se irradiam, mas, pelo contrário, a instituição que as sofre. A escola ajuda a direção social, mas o sentido dessa direção não lhe é próprio, antes decorrente da política socialmente adotada.

Quando se discute, pois, a unidade nacional e a educação, relacionando-as, não se está discutindo como a educação pode concorrer ou não para a unidade nacional, mas, de fato, como pode a escola concorrer para certo tipo de unidade nacional que se deseja preservar. A discussão é difícil e cheia de equívocos por isto mesmo. A escola, na sua função de fator da transmissão da cultura, promove-lhe a unidade desde que a retrate com fidelidade e riqueza, e contribua para que se torne mais consciente. Essa unidade, porém, preexiste à escola, que apenas a prolonga nas novas gerações. O que se deseja, porém, não é isto, mas que a escola atue no sentido de modificar o processo normal de diversificação e crescimento cultural e promova a uniformidade, a linearidade, a unitariedade, que são antes obstáculos à real unidade nacional, do que fatôres do seu desenvolvimento. A discussão, então, na realidade, é a do conceito de unidade nacional.

Se unidade nacional é uniformidade nacional, então, a escola ter-se-á de fazer a defensora desta uniformidade, para se poder considerar mantenedora daquela unidade. Se unidade nacional é, porém, o resultado dinâmico do jôgo de fôrças diversas dentro de um espírito comum, então a escola terá de se fazer a defensora dessa diversificação, como condição mesma de manutenção da unidade nacional.

O debate, assim, não é um debate educacional, mas um debate político, entre unitaristas e descentralizadores ou federalistas, que vêem, de modo diverso, o problema da unidade nacional.

A nação está com efeito a sofrer transformações de ordem econômica e social. Os fatôres dessas transformações atuam com diferente intensidade nas diversas regiões naturais do seu território e nas diversas unidades políticas federadas, fazendo avançar umas e deixando outras estacionárias. As diferenças dêsses níveis de transformação podem trazer desequilíbrios e, em casos extremos, poderiam produzir rupturas.

Seria êsse um dos elementos de uma possível ameaça à unidade nacional, do ponto de vista dos unitaristas?

- É curioso notar que tais mudanças desequilibradoras, entretanto, não os inquietam. Parece que aceitam o descompasso de tais "progressos" e até os desejam, sem nenhuma apreensão. A mobilidade horizontal da população, decorrente dos desnivelamentos econômicos de certas zonas e províncias em relação a outras, vem tornando êsses "centros de progresso" conhecidos de todo o país, graças ao intercâmbio de pessoas assim estabelecido. Acredito não exagerar se disser que os unitaristas reputam tais "centros de progresso", fatôres das desordenadas e perigosas migrações, como fôrças dinâmicas de unificação nacional, uma vez que atuam como núcleos de gravitação, onde se expande e de onde irradia o senso nascente de novos orgulhos nacionais.

Mas, se o progresso desigual, criando situações de pobreza e riqueza no país, excessivamente desproporcionadas, não afeta a unidade nacional, que outros fatôres a estarão afetando?

- A língua não está em perigo, já se tendo resolvido os casos mais gritantes de pequenos núcleos de segregação estrangeira. A religião não está em perigo, salvo o perigo da excessiva homogeneidade religiosa do país, que, entretanto, como tal, também não é aceito pelos unitaristas. Polìticamente, estamos unidos, não se registrando o mais débil caso de atrito, e, quando algum haja, o desequilíbrio de fôrças entre os Estados e a União é tão tremendo, que não há meio de precisar a União de sequer usar as suas. Um simples emissário central tudo resolverá.

-Onde está, afinal, o perigo contra a unidade nacional? - Só o consigo ver no excesso de centralização.

Os exageros centralizadores, anti-federalistas, é que poderão enfraquecer o sentido dinâmico da unidade nacional, criando uma situação antes de submissão e apatia, de indiferença e letargia do que de aceitação ativa, de participação e de cooperação no progresso nacional.

Mas, não é isto, evidentemente, o que perturba os unitaristas. - Que será então?

Já dissemos que a questão não era de educação, mas do próprio conceito de unidade nacional. Parece, agora, também, que não se trata de unidade ou perda de unidade nacional, mas, pura e simplesmente, de uma atitude em face das mudanças por que passa o país. A "unidade nacional" é um escudo para cobrir uma simples atitude conservadora em face de certas mudanças sociais, que, bem ou mal, vão abrindo caminho.

Não passa, com efeito, pela cabeça de ninguém que as escolas municipais ou estaduais do país, que se acham fora da órbita do poder central, ponham, por isto, em perigo a unidade nacional. Todos sabemos muito bem que elas são tão genuìnamente nacionais ou, talvez, mais nacionais do que as escolas de tipo federal, e muito naturalmente, pois refletem melhor as condições locais, que aquelas, cujos modelos rígidos e uniformes representam tão-sòmente as idéias preconcebidas de distantes, remotos funcionários federais. Na verdade, o funcionário federal será o único que terá de se esforçar por ser nacional, representante que é de uma superestrutura legal, nem sempre flexível e ajustável às múltiplas variedades de cultura e condições do país.

- Porque, então, os defensores dessa tão estadeada "unidade nacional" insistem mais e mais na centralização federal à outrance, como recurso necessário, indispensável ao seu maior fortalecimento na escola e pela escola? Porque, de fato, não estão preocupados com a unidade nacional pròpriamente, mas como o domínio da escola, e êste será mais exeqüível se a escola estiver sob o contrôle único da União. Influenciar o govêrno federal é muito mais fácil do que influenciar 21 governos locais e, muito mais, do que 1.800 governos municipais. Essa facilidade não decorre pura e simplesmente do maior número dêstes governos, mas de uma circunstância que cumpre salientar.

A opinião pública não atua como uma fôrça contínua e permanente em todo o país, mas é, indiscutìvelmente, mais viva junto aos governos municipais e estaduais do que junto ao govêrno da União. Êste, central e distante, sofre certos efeitos da opinião pública do Rio, em momentos de crise, mas, de modo geral, atua em estado de olímpica liberdade decisória, sobretudo nos atos que dizem respeito aos Estados e Municípios. Ora, aí temos o govêrno ideal para, sôbre êle, concentradamente, se exercitarem os diferentes grupos de pressão que, hoje, procuram controlar o país, a serviço dos seus interêsses ou dos seus preconceitos. A vantagem, assim, da centralização não está apenas em reduzir a área onde se vão, decidir as coisas - o que já seria uma extraordinária vantagem - mas, ainda, na circunstância de ser o govêrno mais solicitado e premido por aquêles grupos interessados, justamente o mais poderoso, precisamente o que, por contingências várias, goza de um poder quase absoluto nas suas decisões relativas a planos, diretrizes e nomeações referentes aos Estados e Municípios.

Ora, o grupo unitarista é um dos conglomerados de pressão mais favorecidos pelas circunstâncias, por todo um conjunto de circunstâncias. Ademais não tem, pròpriamente, idéias nem programa. Tem medos e receios, baseados em fragmentos de experiências pessoais, que salpicam, aqui e ali, o gneiss impenetrável dos temperamentos, não sei se chamarei de primitivos ou imaturos. Seu comportamento é puramente emocional, em função dos interêsses ou dos preconceitos que lhe são a base. Conservadores à outrance, usam os seus componentes os slogans de "unidade nacional" e outros que tais, como tabus defensivos para seus propósitos imobilizadores, do que para êles está bem ou está ótimo. Por isto mesmo, podem conseguir, na educação, atos de um radicalismo inacreditável, que o país aceita, com passividade bovina, porque, afinal, partem de um poder central tão forte quanto o da Metrópole ao tempo da Colônia.

Tomemos, como exemplo e sòmente para demonstrar a capacidade de extravagância, e neste sentido é que uso a palavra "radicalismo", a introdução de uma língua morta, como o latim, pràticamente desconhecida no país, do dia para a noite, em tôdas as escolas secundárias e em quase tôdas as séries. Isto nunca teria sido possível através de governos municipais, ou governos estaduais. Mas o govêrno federal pode praticar tamanha insanidade sem nenhuma conseqüência. Como, sem nenhuma conseqüência, pode "estatizar" o ensino do modo que o "estatizou".

E tudo é feito por inspiração ou sob a influência instante e frenética de grupos de pressão que agem de dentro ou em tôrno do govêrno como se fôssem os seus sustentáculos.. .

A centralização é buscada, assim, não como programa, mas como meio hábil para o exercício do contrôle da escola pelos grupos organizados de pressão que atuam no Rio, liberados da vigilância e fiscalização da opinião pública local, cuja soma, no final de contas, é a opinião pública nacional.

Não quer isso dizer que esteja procurando condenar, de qualquer modo, uma política educacional conservadora. Admito que o país escolha êste caminho. Admito que se possa ser conservador e sê-lo até inteligentemente. Mas os conservadores terão, deverão ter de conseguir que a sua opinião seja aceita deliberadamente pela Nação. Tomemos o detalhe do latim. Admitamos que os conservadores o julguem - embora não se atine bem porque - indispensável para a "unidade nacional". Não lhes caberá impor o latim, por uma lei federal, mas adotá-lo nas escolas federais, e lutar por que os governos estaduais e depois os municipais o adotem. Se todos o adotarem, teremos seu ponto de vista vitorioso.

A descentralização, pois, - insisto e friso - uma condição de govêrno democrático e federativo. Não é uma tese educacional, mas uma tese política, parecendo ser impossível não reconhecê-la como ponto incontrovertido, de letra e de doutrina, da Constituição, que estabelece, além do mais, a federação dos Estados e a autonomia dos Municípios.

O contrôle e o poder que cabem à União não podem, em caso algum, atingir graus de centralização, pelos quais se destrua a possibilidade dos governos autônomos estaduais e municipais decidirem, em face de suas condições, dos seus recursos, dos seus meios e da sua opinião pública, o que podem ou devem fazer em particularidades do seu ensino. Ora, a centralização que se quer impor à educação é, francamente, desta ordem. Não se deseja reconhecer limite algum ao poder de legislar sôbre a educação por parte da União. Ora, êste limite é dado pelo critério acima exposto. A União deve legislar até onde a decisão, na órbita federal, não venha a interferir com o direito legítimo dos demais governos de auscultar as suas próprias possibilidades e as suas próprias opiniões públicas.

Não existe, pois, entre centralizadores e descentralizadores uma divergência pròpriamente de programa educacional. A escola brasileira poderá ser, teòricamente, como o regime descentralizado, a mesma escola do regime centralizado. Poderá ser expressão de uma política indiferente quanto às mudanças sociais, de uma política conservadora ou de uma política renovadora. A diferença única entre as duas posições é a de espírito anti-democrático ou democrático, anti-federalista ou federalista. E a democracia é da Constituição. E a federação também não se discute, em face da mesma lei magna, inclusive no que prescreve quanto à educação.

Todos os programas educacionais podem ser adotados, mas só depois de um livre debate, pelos governos federados e opiniões locais.

A União legislará, na sua órbita, no que tiver amplitude suficiente para ser resolvido para tôda a nação, e cada Estado, depois, no seu próprio âmbito, com os poderes necessários para as diversificações, adaptações e ajustamentos indispensáveis.

O debate, na realidade, é um debate entre liberdade e falta de liberdade no sentido democrático.

A análise dêste, que é o real aspecto da questão, levar-nos-ia muito longe, mas é indispensável pelo menos aflorá-lo, pois aí é que encontraremos o critério para delimitar, nos assuntos de educação, o que está sujeito à disciplinação legal e o que está sujeito tão-sòmente à disciplinação por parte da consciência profissional dos educadores.

A liberdade, como efeito, não é, no estado democrático, uma questão de ausência de limitação à liberdade individual. Não temos ilusões sôbre a possibilidade de uma liberdade individual absoluta. Sabemos que a vida humana é uma série de servidões, desde as biológicas até as sociais, dominadas tôdas elas pela servidão das servidões, que é a real impraticabilidade das nossas mais caras aspirações, num mundo dominado por alternativas e escolhas, cada uma delas destruindo a metade dos nossos desejos e frustrando-nos na outra metade. Sabemos tudo isto, e nos conformamos com uma liberdade individual relativa e sóbria.

Mas só nos conformamos porque conseguimos estabelecer um critério de legitimidade para as restrições que temos de sofrer, quanto à liberdade individual. Êste critério é o da necessidade da restrição à luz do conhecimento humano, do saber humano, do que chegamos a considerar verdadeiro ou aceitável. E o verdadeiro ou aceitável é o que assim foi definido pela ciência ou pela competência profissional.

A liberdade no Estado moderno consiste em não possuir êle o direito de dizer o que é essa verdade, mas deixá-la livre de manifestar-se entre os grupos profissionais que se fizerem competentes para defini-Ia. Êstes grupos profissionais, que constituem as grandes "corporações" do mundo moderno - as profissões liberais e magisteriais - é que definem, em cada setor, o que é verdadeiro ou aceitável, admitindo e promovendo, sempre entre os seus componentes, uma ampla liberdade de opiniões e de práticas divergentes. Os seus critérios de verdade são os delicados, relativos e sutis critérios da própria especulação humana - que criaram a consciência profissional do homem moderno, nas profissões, nas ciências e nas artes.

O Estado preside estas atividades, mas não as dirige. Vela para que sejam livres, garantindo a tôdas o exercício de suas atividades, mas não se substitui a elas. A institucionalização dessas profissões, que se faz, sob o patrocínio do Estado, representa a grande invenção do Estado moderno e livre, institucionalização que se consuma na Universidade autônoma.

Essas autonomias do saber e das práticas aceitas são, sem a menor dúvida, a suprema garantia da liberdade possível entre os homens. Seremos livres na medida em que estejamos livres de organizar o saber humano, por essa forma autônoma, e em que, livremente, nos submetemos às suas conclusões, por sua propria natureza relativas, mutáveis e, por vêzes, divergentes e variadas.

Ora, a lei é uma compulsão da comunidade em geral e, no Estado moderno, a comunidade em geral não tem competência para decidir sôbre o que é privativo da consciência profissional, ou seja a consciência dos que sabem. Só a consciência profissional decide em medicina, por exemplo, o que é certo e o que é errado. Uma lei que legislasse sôbre as moléstias e o seu tratamento seria no Estado moderno uma insensatez. E isto porque falta ao legislador comum competência profissional. Pouco importaria que alegasse êle necessidade de preservar a unidade da medicina. A unidade de medicina tem de ser preservada por métodos mais delicados, porém perfeitamente eficazes.

Ora, o que se quer com a chamada necessidade de só a União legislar sôbre o ensino não é pròpriamente a centralização dêsse poder, mas o seu alargamento até a minúcias que escapam à competência do legislador, seja o federal, o estadual ou o municipal, para cair na área livre da competência profissional. E em nosso estágio de desenvolvimento social, a suprema tirania é esta do Estado pretender legislar sôbre o campo do que é opinativo ou do que é para ser resolvido pelo conhecimento científico ou pela competência profissional.

Em educação, o que vimos fazendo e o que queremos continuar a fazer é, exatamente, isto.

Alega-se que não temos, os educadores e professôres, consciência profissional ou que a não temos ainda. - E por acaso, têm-na os legisladores? Seria o caso, então, de chamá-los para dirigir a educação. Façamos, porém, justiça aos legisladores.

Desde 30, não interferem êles na educação, confiando inteiramente o poder de pôr e dispor, neste campo, ao Ministério da Educação, cuja ação foi, durante todo êsse tempo, uma ação discricionária, em que legislou sôbre a matéria que jamais poderia ser objeto de lei, mas, sim, da competência profissional, suprimindo, assim, uma condição essencial da liberdade humana, que é a de poder sofrer limitações quanto ao ensino que recebe mas sòmente quando as mesmas provêm dos órgãos legítimos para impô-las, que são os da competência profissional devidamente estabelecida e pelos métodos especiais que caracterizam a ação dêsses órgãos, que são os da discussão objetiva e das conclusões provisórias, sempre mutáveis e sujeitas a constante revisão.

As leis de educação podem dispor sôbre objetivos da educação, suas normas gerais, seus níveis e ramos, seu custeio, mas cumpre-lhes deixar, como se deixa na Universidade, para o campo da autonomia profissional, tudo que disser respeito ao que se deve ensinar e aos modos, meios, métodos e práticas educacionais.

A consciência profissional de professôres e educadores é que deverá determinar os currículos, a seriação, a organização, os métodos e as práticas didáticas - por meio dos seus órgãos coletivos e individuais, a serem estabelecidos e criados, pela lei, se quiserem, ou melhor, pela delegação da lei aos próprios interessados, no particular. A disciplinação dêsses aspectos da educação é a disciplinação a que está sujeito o saber humano, isto é, a dos critérios teóricos e práticos para a descoberta do que é verdadeiro ou melhor em cada setor.

Temos, assim, que, no fundo de todo êsse debate, dorme essa questão fundamental entre o que pode ser regulado por lei - que é uma norma compulsória de tôda a comunidade - e o que só pode ser regulado pela fôrça de persuasão da opinião esclarecida e especializada dos grupos profissionais, devidamente organizados.

Muitos dos equívocos e confusões do país, em matéria de educação, os quais tornam obscura qualquer discussão, provêm do êrro de querer resolver, pela lei, o que deve ser deixado para o contrôle delicado e progressivo dessa opinião especializada e profissional. Quando isto fôr devidamente reconhecido, teremos criado as condições para o progresso contínuo e crescente das nossas instituições educacionais, dotadas que serão elas da autonomia necessária para sua própria direção. Esta autonomia profissional, que nos cumpre reivindicar, para todos os aspectos especializados do processo educativo, é uma condição essencial para a liberdade, como é concebida no Estado moderno e democrático.

Se isto conseguirmos, tudo mais será conseguido. E a unidade da educação brasileira, como a própria unidade nacional, serão estabelecidas e consolidadas e promovidas pela unidade da cultura brasileira, tanto mais vigorosa e viva e rica, quanto mais decorrer do jôgo geral de tôdas as múltiplas fôrças regionais e locais, integradas no espírito e consciência comuns, que promoverão o livre debate e o livre esclarecimento na imprensa, no livro e na escola independente e autônomos.

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Assim resumiremos todo o nosso argumento:

1. Excesso de unidade cultural é indicação de barbarismo ou primitivismo. Essa homogeneidade e unidade são em muito conseqüência do alto grau de inconsciência que caracterizam as culturas primitivas e segregadas.

2. Logo que as culturas se fazem conscientes, entram a variar e diversificar, e eis aí o que assegura o seu continuado crescimento e maior florescimento.

A unidade decorre, então, do grau de consciência que possui a comunidade para integrar, vitalmente, as mudanças, variedades e diversificações. É a percepção e o conhecimento dêsse processo de crescimento que promovem e alimentam a nova, sempre nova unidade dinâmica da cultura.

3. Neste sentido é que a escola, sendo um dos processos de transmissão da cultura e de transmissão em grande parte consciente, ajuda e promove a unidade cultural, na medida em que retratar essa cultura com fidelidade e riqueza, em todo o seu dinamismo.

4. Na medida, porém, em que a deformar ou a retratar só parcialmente, ou se recusar a perceber-lhe as diversificações e as mudanças, poderá operar como um fator de bloqueio, de estagnação e, por conseguinte, de desagregação ou de degeneração.

5. Dada a extensão e a desigualdade de ritmo das mudanças que sofre a nossa sociedade, a escola deverá ser flexível e adaptável, a fim de poder tomar conhecimento de todos os aspectos dessas mudanças e de obter o maior grau possível de consciência - condição primária para a integração e coesão sociais.

6. Os centralizadores não vêem isso, porque não estão interessados pròpriamente na unidade e coesão da cultura nacional, mas no contrôle das escolas para os seus fins próprios, defensivos de interêsses e preconceitos. A centralização, afinal, não é uma política cultural nem educacional, mas uma política de poder, de grupos ou camadas sociais absorventes.

7. A unidade nacional será promovida pelas escolas, quando nelas prevalecer o princípio fundamental de liberdade do Estado moderno, que é o de que a lei não é competente para decidir em questões de saber ou de consciência profissional. E o que se deve ensinar e como deve ensinar são questões a serem resolvidas pela escola mesma e os que a servem, e não pelo legislador comum. Mesmo sob pretexto de defesa da unidade nacional, não é lícito legislar nessa matéria, que deve ser deixada à consciência profissional devidamente organizada.

8. O mais perfeito esclarecimento das inteligências é o mais eficaz instrumento da unidade nacional e êsse esclarecimento só pode ser conseguido, no regime de liberdade democrática, conforme a definimos acima.

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