TEIXEIRA, Anísio. O manifesto dos pioneiros da educação nova. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.65, n.150, maio/ago. 1984. p.407-425.

O Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova

Na oportunidade do 40º ano de circulação da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vem o INEP, através deste número comemorativo, levantando questões educacionais que perduram com o passar dos anos, malgrado o empenho e devotamento de educadores, administradores e autoridades.

Antecedendo o registro das exposições e debates concernentes à Mesa-Redonda sobre o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, realizada em 13 de março próximo passado, cujo objetivo foi o de suscitar a reflexão sobre a influência das idéias e propostas contidas nesse documento sobre o processo educacional brasileiro e discutir sua atualidade em relação à política vigente na área da Educação, divulgamos, a seguir, em sua íntegra, o documento original, conservando, inclusive, a ortografia então em uso.

A RECONSTRUCÇÃO EDUCACIONAL
NO BRASIL - AO POVO E AO GOVERNO

Na hierarchia dos problemas nacionaes, nenhum sobreleva em importancia e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caracter economico lhe pódem disputar a primazia nos planos de reconstrucção nacional. Pois, se a evolução organica do systema cultural de um paiz depende de suas condições economicas, é impossivel desenvolver as forças economicas ou de producção, sem o preparo intensivo das forças culturaes e o desenvolvimento das aptidões á invenção e á iniciativa que são os factores fundamentaes do accrescimo de riqueza de uma sociedade. No entanto, se depois de 43 annos de regimen republicano, se dér um balanço ao estado actual da educação publica, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre as reformas economicas e educacionaes, que era indispensavel entrelaçar e encadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos os nossos esforços, sem unidade de plano e sem espirito de continuidade, não lograram ainda crear um systema de organização escolar, á altura das necessidades modemas e das necessidades do paiz. Tudo fragmentario e desarticulado. A situação actual, creada pela successão periodica de reformas parciaes e frequentemente arbitrarias, lançadas sem solidez economica e sem uma visão global do problema, em todos os seus aspectos, nos deixa antes a impressão desoladora de construcções isoladas, algumas já em ruina, outras abandonadas em seus alicerces, e as melhores, ainda não em termos de serem despojadas de seus andaimes...

Onde se tem de procurar a causa principal desse estado antes de inorganização do que de desorganização do apparelho escolar, é na falta, em quasi todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins de educação (aspecto philosophico e social) e da applicação (aspecto technico) dos methodos scientificos aos problemas de educação. Ou, em poucas palavras, na falta de espirito philosophico e scientifico, na resolução dos problemas da administração escolar. Esse empirismo grosseiro, que tem presidido ao estudo dos problemas pedagogicos, postos e discutidos numa atmosphera de horizontes estreitos, tem as suas origens na ausencia total de uma cultura universitaria e na formação meramente literaria de nossa cultura. Nunca chegamos a possuir uma "cultura propria", nem mesmo uma "cultura geral" que nos convencesse da "existência de um problema sobre objectivos e fins da educação". Não se podia encontrar, por isto, unidade e continuidade de pensamento em planos de reformas, nos quaes as instituições escolares, esparsas, não traziam, para attrahil-as e oriental-as para uma direcção, o polo magnetico de uma concepção da vida, nem se submettiam, na sua organização e no seu funccionamento, a medidas objectivas com que o tratamento scientifico dos problemas da administração escolar nos ajuda a descobrir, á luz dos fins estabelecidos, os processos mais efficazes para a realização da obra educacional.

Certo, um educador póde bem ser um philosopho e deve ter a sua philosophia de educação; mas, trabalhando scientificamente nesse terreno, elle deve estar tão interessado na determinação dos fins de educação, quanto tambem dos meios de realizal-os. O physico e o chimico não terão necessidade de saber o que está e se passa além da janella do seu laboratorio. Mas o educador, como o sociologo, tem necessidade de uma cultura multipla e bem diversa; as alturas e as profundidades da vida humana e da vida social não devem estender-se além do seu raio visual; elle deve ter o conhecimento dos homens e da sociedade em cada uma de suas phases, para perceber, além do apparente e do ephemero, "o jogo poderoso das grandes leis que dominaim a evolução social", e a posição que tem a escola, e a funcção que representa, na diversidade e pluralidade das forças sociaes que cooperam na obra da civilização. Se têm essa cultura geral, que lhe permitte organizar uma doutrina de vida e ampliar o seu horizonte mental, poderá ver o problema educacional em conjucto, de um ponto de vista mais largo, para subordinar o problema pedagogico ou dos methodos ao problema philosophico ou dos fins da educação; se tem um espirito scientifico, empregará os methodos communs a todo genero de investigação scientifica, podendo recorrer a technicas mais ou menos elaboradas e dominar a situação, realizando experiencias e medindo os resultados de toda e qualquer modificação nos processos e nas technicas, que se desenvolveram sob o impulso dos trabalhos scientificos na administração dos serviços escolares.

Movimento de renovação educacional

A' luz dessas verdades e sob a inspiração de novos ideaes de educação, é que se gerou, no Brasil, o movimento de reconstrucção educacional, com que, reagjndo contra o empirismo dominante, pretendeu um grupo de educadores, nestes ultimos doze annos, transferir do terreno administrativo para os planos politico-sociaes a solução dos problemas escolares. Não foram ataques injustos que abalaram o prestígio das instituições antigas; foram essas instituições creações artificiaes ou deformadas pelo egoismo e pela rotina, a que serviram de abrigo, que tornaram inevitaveis os ataques contra ellas. De facto, porque os nossos methodos de educação haviam de continuar a ser tão prodigiosamente rotineiros, emquanto no Mexico, no Uruguay, na Argentina e no Chile, para só falar na America hespanhola, já se operavam transformações profundas no apparelho educacional, reorganizado em novas bases e em ordem a finalidades lucidamente descortinadas? Porque os nossos programmas se haviam ainda de fixar nos quadros de segregação social, em que os encerrou a republica, ha 43 annos, emquanto nossos meios de locomoção e os processos de industria centuplicaram de efficacia, em pouco mais de um quartel de seculo? Porque a escola havia de permanecer, entre nós, isolada do ambiente, como uma instituição enkystada no meio social, sem meios de influir sobre elle, quando, por toda a parte, rompendo a barreira das tradições, a acção educativa já desbordava a escola, articulando-se com as outras instituições sociaes, para estender o seu raio de influencia e de acção?

Embóra, a principio, sem directrizes definidas, esse movimento francamente renovador inaugurou uma serie fecunda de combates de idéas, agitando o ambiente para as primeiras reformas impellidas para urna nova direcção. Multiplicaram-se as associações e iniciativas escolares, em que esses debates testemunhavam a curiosidade dos espíritos, pondo em circulação novas idéas e transmittindo aspirações novas com um caloroso enthusiasmo. Já se despertava a consciência de que, para dominar a obra educacional, em toda a sua extensão, é preciso possuir, em alto gráo, o habito de se prender, sobre bases solidas e largas, a um conjuncto de idéas abstractas e de principios geraes, com que possamos armar um angulo de observação, para vermos mais claro e mais longe e desvendarmos, atravez da complexidade tremenda dos problemas sociaes, horizontes mais vastos. Os trabalhos scientificos no ramo da educação já nos faziam sentir, em toda a sua força reconstructora, o axioma de que se póde ser tão scientifico no estudo e na resolução dos problemas educativos, como nos da engenharia e das finanças. Não tardaram a surgir, no Districto Federal e em tres ou quatro Estados as reformas e, com ellas, as realizações, com espirito scientiftco, e inspiradas por um ideal que, modelado á imagem da vida, já lhe reflectia a complexidade. Contra ou a favor, todo o mundo se agitou. Esse movimento é hoje uma idéa em marcha, apoiando-se sobre duas forças que se completam: a força das idéas e a irradiação dos factos.

Directrizes que se esclarecem

Mas, com essa campanha, de que tivemos a iniciativa e assumimos a responsabilidade, e com a qual se incutira, por todas as formas, no magistério, o espirito novo, o gosto da critica e do debate e a consciencia da necessidade de um aperfeiçoamento constante, ainda não se podia considerar inteiramente aberto o caminho ás grandes reformas educacionaes. É' certo que, com a effervescencia intellectual que produziu no professorado, se abriu, de uma vez, a escola a esses ares, a cujo oxygenio se forma a nova geração de educadores e se vivificou o espirito nesse fecundo movimento renovador no campo da educação publica, nos ultimos annos. A maioria dos espiritos, tanto da velha como da nova geração ainda se arrastam, porém, sem convicções, atravez de um Iabirintho de idéas vagas, fóra de seu alcance, e certamente, acima de sua experiencia; e, porque manejam palavras, com que já se familiarizaram, imaginam muitos que possuem as idéas claras, o que lhes tira o desejo de adquiril-as... Era preciso, pois, imprimir uma direcção cada vez mais firme a esse movimento já agora nacional, que arrastou comsigo os educadores de mais destaque, e leval-o a seu ponto culminante com uma noção clara e definida de suas aspirações e suas responsabilidades. Aos que tomaram posição na vanguarda da campanha de renovação educacional, cabia o dever de formular, em documento publico, as bases e directrizes do movimento que souberam provocar, definindo, perante o publico e o governo, a posição que conquistaram e vêm mantendo desde o inicio das hostilidades contra a escola tradicional.

Reformas e a Reforma

Se não ha paiz "onde a opinião se divida em maior numero de côres, e se não se encontra theoria que entre nós não tenha adeptos", segundo já observou Alberto Torres, principios e idéas não passam, entre nós, de "bandeira de discussão, ornatos de polemica ou simples meio de exito pessoal ou politico". lllustrados, ás vezes, e eruditos, mas raramente cultos, não assimilamos bastante as idéas para se tornarem um nucleo de convicções ou um systema de doutrina, capaz de nos impellir á acção em que costumam desencadear-se aquelles "que pensaram sua vida e viveram seu pensamento". A interpenetração profunda que já se estabeleceu, em esforços constantes, entre as nossas idéas e convicções e a nossa vida de educadores, em qualquer sector ou linha de ataque em que tivemos de desenvolver a nossa actividade já denuncia, porém, a fidelidade e o vigor com que caminhamos para a obra de reconstrucção educacional, sem estadear a segurança de um triumpho facil, mas com a serena confiança na victoria definitiva de nossos ideaes de educação. Em logar dessas reformas parciaes, que se succederam, na sua quasi totalidade, na estreiteza chronica de tentativas empiricas, o nosso programma concretiza uma nova politica educacional, que nos preparará, por etapas, a grande reforma, em que palpitará, com o rythmo accelerado dos organismos novos, o musculo central da estructura politica e social da nação.

Em cada uma das reformas anteriores, em que impressiona vivamente a falta de uma visão global do problema educativo, a força inspiradora ou a energia estimulante mudou apenas de fórma, dando soluções diferentes aos problemas particulares. Nenhuma antes desse movimento renovador penetrou o amago da questão, alterando os caracteres geraes e os traços salientes das reformas que o precederam. Nós assistiamos á aurora de uma verdadeira renovação educacional, quando a revolução estalou. Já tinhamos chegado então, na campanha escolar, ao ponto decisivo e climaterico, ou se o quizerdes, á linha de divisão das aguas. Mas, a educação que, no final de contas, se resume logicamente numa reforma social, não póde, ao menos em grande proporção, realizar-se senão pela acção extensa e intensiva da escola sobre o indivíduo e deste sobre si mesmo nem produzir-se, do ponto de vista das influencias exteriores, senão por uma evolução continua, favorecida e estimulada por todas as forças organizadas de cultura e de educação. As surprezas e os golpes de theatro são impotentes para modificarem o estado psychologico e moral de um povo. É' preciso, porém, atacar essa obra, por um plano integral, para que ella não se arrisque um dia a ficar no estado fragmentario, semelhante a essas muralhas pelasgicas, inacabadas, cujos blócos enormes, esparsos ao longe sobre o solo, testemunham gigantes que os levantaram, e que a morte surprehendeu antes do corôamento de seus esforços...

Finalidades da educação

Toda a educação varia sempre em funcção de uma "concepção da vida", reflectindo, em cada época, a philosophia predominante que é determinada, a seu turno, pela estructura da sociedade. E' evidente que as differentes camadas e grupos (classes) de uma sociedade dada terão respectivamente opiniões differentes sobre a "concepção do mundo", que convem fazer adoptar ao educando e sobre o que é necessario considerar como "qualidade socialmente util". O fim da educação não é, como bem observou G. Davy, "desenvolver de maneira anarchica as tendências dominantes do educando; se o mestre intervem para transformar, isto implica nelle a representação de um certo ideal á imagem do qual se esforça por modelar os jovens espíritos". Esse ideal e aspiração dos adultos toma-se mesmo mais facil de aprehender exactarnente quando assistimos á sua transmissão pela obra educacional, isto é, pelo traballho a que a sociedade se entrega para educar os seus filhos. A questão primordial das finalidades da educação gyra, pois, em torno de uma concepção da vida, de um ideal, a que devem conformar-se os educandos, e que uns consideram abstracto e absoluto, e outros, concreto e relativo, variavel no tempo e no espaço. Mas, o exame, num longo olhar para o passado, da evolução da educação atravez das differentes civilizações, nos ensina que o "conteudo real desse ideal" variou sempre de accôrdo com a estructura e as tendencias sociaes da época, extrahindo a sua vitalidade, como a sua força inspiradora, da propria natureza da realidade social.

Ora, se a educação está intimamente vinculada á philosophia da cada época, que lhe define o caracter, rasgando sempre novas perspectivas ao pensamento pedagogico, a educação nova não póde deixar de ser uma reacção categorica, intencional e systematica contra a velha estructura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida. Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ella tem servido, a educação perde o "sentido aristologico", para usar a expressão de Ernesto Nelson, deixa de constituir um privilegio determinado pela condição economica e social do individuo, para assumir um "caracter biologico", com que ella se organiza para a collectividade em geral, reconhecendo a todo o individuo o direito a ser educado até onde o permittam as suas aptidões naturaes, independente de razões de ordem economica e social. A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira funcção social, preparando-se para formar "a hierarchia democratica" pela "hierarchia das capacidades", recrutadas em todos os grupos sociaes, a que se abrem as mesmas opportunidades de educação. Ella tem, por objecto, organizar e desenvolver os meios de acção duravel com o fim de "dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento", de accôrdo com uma certa concepção do mundo.

A diversidade de conceitos da vida provém, em parte, das diferenças de classes e, em parte, da variedade de conteúdo na noção de "qualidade socialmente util", conforme o angulo visual de cada uma das classes ou grupos sociaes. A educação nova que, certamente pragmatica, se propõe ao fim de servir não aos interesses de classes, mas aos interesses do individuo, e que se funda sobre o principio da vinculação da escola com o meio social, tem o seu ideal condicionado pela vida social actual, mas profundamente humano, de solidariedade, de serviço social e cooperação. A escola tradicional, installada para uma concepção burgueza, vinha mantendo o individuo na sua autonomia isolada e esteril, resultante da doutrina do individualismo libertario, que teve aliás o seu papel na formação das democracias e sem cujo assalto não se teriam quebrado os quadros rijidos da vida social. A escola socializada, reconstituida sobre a base da actividade e da producção, em que se considera o trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade em geral (acquisição activa da cultura) e a melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da sociedade humana, se organizou para remontar a corrente e restabelecer, entre os homens, o espirito de disciplina, solidariedade e cooperação, por uma profunda obra social que ultrapassa largamente o quadro estreito dos interesses de classes.

Valores mutaveis e valores permanentes

Mas, por menos que pareça, nessa concepção educacional, cujo embryão já se disse ter-se gerado no seio das usinas e de que se impregnam a carne e o sangue de tudo que seja objecto da acção educativa, não se rompeu nem está a pique de romper-se o equilíbrio entre os valores mutaveis e os valores permanentes da vida humana. Onde, ao contrario, se assegurará melhor esse equilíbrio é no novo systema de educação, que, longe de se propor a fins particulares de determinados grupos sociaes, ás tendencias ou preoccupações de classes, os subordina aos fins fundamentaes e geraes que assignala a natureza nas suas funcções biologicas. E' certo que é preciso fazer homens, antes de fazer instrumentos de producção. Mas, o trabalho que foi sempre a maior escola de formação da personalidade moral, não é apenas o methodo que realiza o accrescimo da producção social, é o unico methodo susceptivel de fazer homens cultivados e uteis sob todos os aspectos. O trabalho, a solidariedade social e a cooperação, em que repousa a ampla utilidade das experiências; a consciência social que nos leva a comprehender as necessidades do individuo atravez das da comunidade, e o espirito de justiça, de renuncia e de disciplina, não são, aliás, grandes "valores permanentes" que elevam a alma, ennobrecem o coração e fortificam a vontade, dando expressão e valor á vida humana? Um vicio das escolas espiritualistas, já o ponderou Jules Simon, é o "desdém pela multidão". Quer-se raciocinar entre si e reflectir entre si. Evitae de experimentar a sorte de todas as aristocracias que se estiolam no isolamento. Se se quer servir á humanidade, é preciso estar em comunhão com ella...

Certo, a doutrina de educação, que se apoia no respeito da personalidade humana, considerada não mais como meio, mas como fim em si mesmo, não poderia ser accusada de tentar, com a escola do trabalho, fazer do homem uma machina, um instrumento exclusivamente apropriado a ganhar o salario e a produzir um resultado material num tempo dado. "A alma tem uma potência de milhões de cavallos, que levanta mais peso do que o vapor. Se todas as verdades mathematicas se perdessem, escreveu Lamartine, defendendo a causa da educação integral, o mundo industrial, o mundo material, soffreria sem duvida um detrimento immenso e um damno irreparavel; mas, se o homem perdesse uma só das suas verdades moraes, seria o proprio homem, seria a humanidade inteira que pereceria". Mas, a escola socializada não se organizou como um meio essencialmente social senão para transferir do plano da abstracção ao da vida escolar em todas as suas manifestações, vivendo-as intensamente, essas virtudes e verdades moraes, que contribuem para harmonizar os interesses individuaes e os interesses collectivos. "Nós não somos antes homens e depois seres sociaes, lembra-nos a voz insuspeita de Paul Bureau; somos seres sociaes, por isto mesmo que somos homens, e a verdade está antes em que não ha acto, pensamento, desejo, attitude, resolução, que tenham em nós sós seu principio e seu termo e que realizem em nós sómente a totalidade de seus effeitos".

O Estado em face da educação

a) A educação, uma funcção essencialmente publica

Mas, do direito de cada indivíduo á sua educação integral, decorre logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de seus gráos e manifestações, como uma funcção social e eminentemente publica, que elle é chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociaes. A educação que é uma das funcções de que a familia se vem despojando em proveito da sociedade politica, rompeu os quadros do communismo familial e dos grupos especificos (instituições privadas), para se incorporar definitivamente entre as funcções essenciaes e primordiaes do Estado. Esta restricção progressiva das attribuições da familia, – que tambem deixou de ser "um centro de producção" para ser apenas um "centro de consumo", em face da nova concurrencia dos grupos profissionaes, nascidos precisamente em vista da protecção de interesses especializados", – fazendo-a perder constantemente em extensão, não lhe tirou a "funcção especifica", dentro do "fóco interior", embora cada vez mais estreito, em que ella se confinou. Ella é ainda o "quadro natural que sustenta socialmente o indivíduo, como o meio moral em que se disciplinam as tendencias, onde nascem, começam a desenvolver-se e continuarn a entreter-se as suas aspirações para o ideal". Por isto, o Estado, longe de prescindir da familia, deve assentar o trabalho da educação no apoio que ella dá á escola e na collaboração effectiva entre paes e professores, entre os quaes, nessa obra profundamente social, tem o dever de restabelecer a confiança e estreitar as relações, associando e pondo a serviço da obra commum essas duas forças sociaes – a familia e a escola, que operavam de todo indifferentes, senão em direcções diversas e ás vezes oppostas.

b) A questão da escola unica

Assentado o principio do direito biologico de cada indivíduo á sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar effectivo, por um plano geral de educação, de estructura organica, que torne a escola accessivel, em todos os seus gráos, aos cidadãos a quem a estructura social do paiz mantém em condições de inferioridade economica para obter o maximo de desenvolvimento de accôrdo com as suas aptidões vitaes. Chega-se, por esta forma, ao principio da escola para todos, "escola commum ou unica", que, tomado a rigor, só não ficará na contingencia de soffrer quaesquer restricções, em paizes em que as reformas pedagogicas estão intimamente ligadas com a reconstrucção fundamental das relações sociaes. Em nosso regime politico, o Estado não poderá, de certo, impedir que, graças á organização de escolas privadas de typos differentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos uma educação de classe determinada; mas está no dever indeclinavel de não admittir, dentro do systema escolar do Estado, quaesquer classes ou escolas, a que só tenha accesso uma minoria, por um privilegio exclusivamente economico. Afastada a idéa do monopolio da educação pelo Estado num paiz, em que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna necessario estimular, sob sua vigilancia as instituições privadas idoneas, a "escola unica" se entenderá, entre nós, não como "uma conscripção precoce", arrolando, da escola infantil á universidade, todos os brasileiros, e submettendo-os durante o maior tempo possivel a uma formação identica, para ramificações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes como a escola official, unica, em que todas as creanças, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa edade, sejam confiadas pelos paes á escola publica, tenham uma educação commum, egual para todos.

c) A laicidade, gratuitidade, obrigatoriedade e coeducação

A laicidade, gratuitidade, obrigatoriedade e coeducação são outros tantos principios em que assenta a escola unificada e que decorrem tanto da subordinação á finalidade biologica da educação de todos os fins particulares e parciaes (de classes, grupos ou crenças), como do reconhecimento do direito biologico que cada ser humano tem á educação. A laicidade, que colloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectario, subtráe o educando, respeitando-lhe a integridade da personalidade em formação, á pressão perturbadora da escola quando utilisada como instrumento de propaganda de seitas e doutrinas. A gratuidade extensiva a todas as instituições officiaes de educação é um principio egualitario que torna a educação, em qualquer de seus gráos, accessivel não a uma minoria, por um privilegio economico, mas a todos os cidadãos que tenham vontade e estejam em condições de recebel-a. Aliás o Estado não pode tornar o ensino obrigatorio, sem tornal-o gratuito. A obrigatoriedade que, por falta de escolas, ainda não passou do papel, nem em relação ao ensino primario, e se deve estender progressivamente até uma edade conciliavel com o traballio productor, isto é, até aos 18 anos, é mais necessaria ainda "na sociedade moderna em que o industrialismo e o desejo de exploração humana sacrificam e violentam a creança e o joven", cuja educação é frequentemente impedida ou mutilada pela ignorancia dos paes ou responsaveis e pelas contingências economicas. A escola unificada não permitte ainda, entre alumnos de um e outro sexo outras separações que não sejam as que aconselham as suas aptidões psychologicas e profissionaes, estabelecendo em todas as instituições "a educação em commum" ou coeducação, que, pondo-os no mesmo pé de egualdade e envolvendo todo o processo educacional, torna mais economica a organização da obra escolar e mais facil a sua graduação.

A funcção educacional

a) A unidade da funcção educacional

A consciência desses principias fundamentaes da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade, consagrados na legislação universal, já penetrou profundamente os espiritos, como condições essenciaes á organização de um regimen escolar, lançado, em harmonia com os direitos do individuo, sobre as bases da unificação do ensino, com todas as suas consequencias. De facto, se a educação se propõe, antes de tudo, a desenvolver ao maximo a capacidade vital do ser humano, deve ser considerada "uma só" a funcção educacional, cujos differentes gráos estão destinados a servir ás differentes phases de seu crescimento, "que são partes organicas de um todo que biologicamente deve ser levado á sua completa formação". Nenhum outro principio poderia offerecer ao panorama das instituições escolares perspectivas mais largas, mais salutares e mais fecundas em consequencias do que esse que decorre logicamente da finalidade biologica da educação. A selecção dos alumnos nas suas aptidões naturaes, a suppressão de instituições creadoras de differenças sobre base economica, a incorporação dos estudos do magistério á universidade, a equiparação de mestres e professores em remuneração e trabalho, a correlação e a continuidade do ensino em todos os seus gráos e a reacção contra tudo que lhe quebra a coherencia interna e a unidade vital, constituem o programma de uma politica educacional, fundada sobre a applicação do principio unificador que modifica profundamente a estructura intima e a organização dos elementos constitutivos do ensino e dos systemas escolares.

b) A autonomia da funcção educacional

Mas, subordinada a educação publica a interesses transitorios, caprichos pessoaes ou appetites de partidos, será impossível ao Estado realizar a immensa tarefa que se propõe da formação integral das novas gerações. Não ha systema escolar cuja unidade e efficacia não estejam constantemente ameaçadas, senão reduzidas e annuladas, quando o Estado não o soube ou não o quiz acautelar contra o assalto de poderes estranhos, capazes de impôr á educação fins inteiramente contrarios aos fins geraes que assignala a natureza em suas funcções biologicas. Toda a impotencia manifesta do systema escolar actual e a insufficiencia das soluções dadas ás questões de caracter educativo não provam senão o desastre irreparavel que resulta, para a educação publica, de influencias e intervenções estranhas que conseguiram sujeital-a a seus ideaes secundarios e interesses subalternos. Dahi decorre a necessidade de uma ampla autonomia technica, administrativa e economica, com que os technicos e educadores, que têm a responsabilidade e devem ter, por isto, a direcção e administração da funcção educacional, tenham assegurados os meios materiaes para poderem realizal-a. Esses meios, porém, não podem reduzir-se ás verbas que, nos orçamentos, são consignadas a esse serviço publico e, por isto, sujeitas ás crises dos erarios do Estado ou ás oscillações" do interesse dos governos pela educação. A autonomia economica não se poderá realizar, a não ser pela instituição de um "fundo especial ou escolar", que, constituido de patrimonios, impostos e rendas proprias, seja administrado e applicado exclusivamente no desenvolvimento da obra educacional, pelos proprios orgãos do ensino, incubidos de sua direcção.

c) A descentralização

A organização da educação brasileira unitaria sobre a base e os principios do Estado, no espirito da verdadeira communidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo esteril e odioso, ao qual se oppõem as condições geographicas do paiz e a necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e ás exigências regionaes. Unidade não significa uniformidade. A unidade presuppõe multiplicidade. Por menos que pareça, á primeira vista, não é, pois, na centralização, mas na applicação da doutrina federativa e descentralizadora, que teremos de buscar o meio de levar a cabo, em toda a Republica, uma obra methodica e coordenada, de accôrdo com um plano commum, de completa efficiencia, tanto em intensidade como em extensão. A' União, na capital, e aos estados, nos seus respectivos territorios, é que deve competir a educação em todos os gráos, dentro dos principios geraes fixados na nova constituição, que deve conter, com a definição de attribuições e deveres, os fundamentos da educação nacional. Ao governo central, pelo Ministerio da Educação, caberá vigiar sobre a obediência a esses principios, fazendo executar as orientações e os rumos geraes da funcção educacional, estabelecidos na carta constitucional e em leis ordinarias, soccorrendo onde haja deficiência de meios, facilitando o intercarnbio pedagogico e cultural dos Estados e intensificando por todas as fórmas as suas relações espirituaes. A unidade educativa, – essa obra immensa que a União terá de realizar sob pena de perecer como nacionalidade, se manifestará então como uma força viva, um espirito commum, um estado de animo nacional, nesse regimen livre de intercambio, solidariedade e cooperação que,levando os Estados a evitar todo desperdicio nas suas despezas escolares afim de produzir os maiores resultados com as menores despezas, abrirá margem a uma successão ininterrupta de esforços fecundos em creações e iniciativas.

O processo educativo

O conceito e os fundamentos da educação nova

O desenvolvimento das sciencias lançou as bases das doutrinas da nova educação, ajustando á finalidade fundamental e aos ideaes que ella deve proseguir os processos apropriados para realizal-os. A extensão e a riqueza que actualmente alcança por toda a parte o estudo scientifico e experimental da educação, a libertaram do empirismo, dando-lhe um caracter e um espirito nitidamente scientifico e organizando, em corpo de doutrina, numa série fecunda de pesquizas e experiencias, os principios da educação nova, pressentidos e ás vezes formulados em rasgos de synthese, pela intuição luminosa de seus precursores. A nova doutrina, que não considera a funcção educacional como uma funcção de superposição ou de accrescimo, segundo a qual o educando é "modelado exteriormente" (escola tradicional), mas uma funcção complexa de acções e reacções em que o espirito cresce de "dentro para fóra", substitue o mecanismo pela vida (actividade funccional) e transfere para a creança e para o respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da educação. Considerando os processos mentaes, como "funcções vitaes" e não como "processos em si mesmos", ella os subordina á vida, como meio de utilizal-a e de satisfazer as suas multiplas necessidades materiaes e espirituaes. A escola, vista desse angulo novo que nos dá o conceito funccional da educação, deve offerecer á creança um meio vivo e natural, "favoravel ao intercambio de reacções e experiencias", em que ella, vivendo a sua vida propria, generosa e bella de creança, seja levada "ao trabalho e á acção por meios naturaes que a vida suscita quando o trabalho e a acção convem aos seus interesses e ás suas necessidades".

Nessa nova concepção da escola, que é uma reacção contra as tendencias exclusivamente passivas, intellectualistas e verbalistas da escola tradicional, a actividade que está na base de todos os seus trabalhos, é a actividade espontanea, alegre e fecunda, dirigida á satisfacção das necessidades do proprio indivíduo. Na verdadeira educação funccional deve estar, pois, sempre presente, como elemento essencial e inherente á sua propria natureza, o problema não só da correspondencia entre os gráos do ensino e as etapas da evolução intellectual fixadas sobre a base dos interesses, como tambem da adaptação da actividade educativa ás necessidades psychobiologicas do momento. O que distingue da escola tradicional a escola nova, não é, de facto, a predominancia dos trabalhos de base manual e corporal, mas a presença, em todas as suas actividades, do factor psychobiologico do interesse, que é a primeira condição de uma actividade espontanea e o estimulo constante ao educando (creança, adolescente ou joven) a buscar todos os recursos ao seu alcance, "graças á força de attracção das necessidades profundamente sentidas". E' certo que, deslocando-se por esta fórma, para a creança e para os seus interesses, moveis e transitorios, a fonte de inspiração das actividades escolares, quebra-se a ordem que apresentavam os programmas tradicionaes, do ponto de vista da logica formal dos adultos, para os pôr de accôrdo com a "logica psychologica", isto é, com a logica que se baseia na natureza e no funccionamento do espirito infantil.

Mas, para que a escola possa fornecer aos "impulsos interiores a occasião e o meio de realizar-se", e abrir ao educando á sua energia de observar, experimentar e crear todas as actividades capazes de satisfazel-a, é preciso que ella seja reorganizada como um "mundo natural e social embrionario", um ambiente dynamico em intima connexão com a região e a communidade. A escola que tem sido um apparelho formal e rijido, sem differenciação regional, inteiramente desintegrado em relação ao meio social, passará a ser um organismo vivo, com uma estructura social, organizada á maneira de uma communidade palpitante pelas soluções de seus problemas. Mas, se a escola deve ser uma communidade em miniatura, e se em toda a communidade as actividades manuaes, motoras ou constructoras "constituem as funcções predominantes da vida", é natural que ella inicie os alumnos nessas actividades, pondo-os em contacto com o ambiente e com a vida activa que os rodeia, para que elles possam, desta forma, possuil-a, aprecial-a e sentil-a de accôrdo com as aptidões e possibilidades. "A vida da sociedade, observou Paulsen, se modifica em funcção da sua economia, e a energia individual e collectiva se manifesta pela sua producção material". A escola nova, que tem de obedecer a esta lei, deve ser reorganizada de maneira que o trabalho seja seu elemento formador, favorecendo a expansão das energias creadoras do educando, procurando estimular-lhe o proprio esforço como o elemento mais efficiente em sua educação e preparando-o, com o trabalho em grupos e todas as actividades pedagogicas e sociaes, para fazel-o penetrar na corrente do progresso material e espiritual da sociedade de que proveiu e em que vae viver e luctar.

Plano de reconstrucção educacional

a) As linhas geraes do plano

Ora, assentada a finalidade da educação e definidos os meios de acção ou processos de que necessita o indivíduo para o seu desenvolvimento integral, ficam fixados os principios scientificos sobre os quaes se póde apoiar solidamente um systema de educação. A applicação desses principios importa, como se vê, numa radical transformação da educação publica em todos os seus gráos, tanto á luz do novo conceito de educação, como á vista das necessidades nacionaes. No plano de reconstrucção educacional, de que se esboçam aqui apenas as suas grandes linhas geraes, procuramos, antes de tudo, corrigir o erro capital que apresenta o actual systema (se é que se póde chamar systema), caracterizado pela falta de continuidade e articulação do ensino, em seus diversos gráos, como se não fossem etapas de um mesmo processo, e cada um dos quaes deve ter o seu "fim particular", proprio, dentro da "unidade do fim geral da educação" e dos principios e methodos communs a todos os gráos e instituições educativas. De facto, o divorcio entre as entidades que mantêm o ensino primario e profissional e as que mantêm o ensino secundario e superior, vae concorrendo insensivelmente, como já observou um dos signatarios deste manifesto, "para que se estabeleçam no Brasil, dois systemas escolares parallelos, fechados em compartimentos estanques e incommunicaveis, differentes nos seus objectivos culturaes e sociaes, e, por isto mesmo, instrumentos de estratificação social".

A escola primaria que se estende sobre as instituições das escolas maternaes e dos jardins de infancia e constitue o problema fundamental das democracias, deve, pois, articular-se rigorosamente com a educação secundaria unificada, que lhe succede, em terceiro plano, para abrir accesso ás escolas ou institutos superiores de especialização profissional ou de altos estudos. Ao espirito novo que já se apoderou do ensino primario não se poderia, porém, subtrahir a escola secundaria, em que se apresentam, collocadas no mesmo nivel, a educação chamada "profissional" (de preferência manual ou mecanica) e a educação humanistica ou scientifica (de preponderancia intellectual), sobre uma base commum de tres annos. A escola secundaria deixará de ser assim a velha escola de "um grupo social", destinada a adaptar todas as intelligencias a uma forma rijida de educação, para ser um apparelho fiexivel e vivo, organizado para ministrar a cultura geral e satisfazer ás necessidades praticas de adaptação á variedade dos grupos sociaes. E' o mesmo principio que faz alargar o campo educativo das Universidades, em que, ao lado das escolas destinadas ao preparo para as profissões chamadas "liberais", se devem introduzir, no systema, as escolas de cultura especializada, para as profissões industriaes e mercantis, propulsoras de nossa riqueza economica e industrial. Mas esse principio, dilatando o campo das universidades, para adaptal-as á variedade e ás necessidades dos grupos sociaes, tão longe está de lhes restringir a funcção cultural que tende a elevar constantemente as escolas de formação profissional, achegando-as ás suas proprias fontes de renovação e agrupando-as em torno dos grandes nucleos de creação livre, de pesquiza scientifica e de cultura desinteressada.

A instrucção publica não tem sido, entre nós, na justa observação de Alberto Torres, senão um "systema de canaes de exodo da mocidade do campo para as cidades e da producção para o parasitismo". E' preciso, para reagir contra esses males, já tão lucidamente apontados, pôr em via de solução o problema educacional das massas ruraes e do elemento trabalhador da cidade e dos centros industriaes já pela extensão da escola do trabalho educativo e da escola do trabalho profissional, baseada no exercicio normal do trabalho em cooperação, já pela adaptação crescente dessas escolas (primaria e secundaria profissional) ás necessidades regjonaes e ás profissões e industrias dominantes no meio. A nova politica educacional rompendo, de um lado, contra a formação excessivamente literaria de nossa cultura, para lhe dar um caracter scientifico e technico, e contra esse espirito de desintegração da escola, em relação ao meio social, impõe reformas profundas, orientadas no sentido da producção e procura reforçar, por todos os meios, a intenção e o valor social da escola, sem negar a arte, a literatura e os valores culturaes. A arte e a literatura tem effectivamente uma significação social, profunda e multipla; a approximação dos homens, a sua organização em uma collectividade unanime, a diffusão de taes ou quaes idéas sociaes, de uma maneira "imaginada", e, portanto, efficaz, a extensão do raio visual do homem e o valor moral e educativo conferem certamente á arte uma enorme importancia social. Mas, se, á medida que a riqueza do homem augmenta, o alimento occupa um logar cada vez mais fraco, os productores intellectuaes não passam para o primeiro plano senão quando as sociedades se organizam em solidas bases economicas.

b) O ponto nevralgico da questão

A estructura do plano educacional corresponde, na hierarchia de suas instituições escolares (escola infantil ou pre-primaria; primaria; secundaria e superior ou universitaria) aos quatro grandes periodos que apresenta o desenvolvimento natural do ser humano. E' uma reforma integral da organização e dos methodos de toda a educação nacional, dentro do mesmo espirito que substitue o conceito estatico do ensino por um conceito dynamico, fazendo um appello, dos jardins de infancia á Universidade, não á receptividade mas á actividade creadora do alumno. A partir da escola infantil (4 a 6 annos) até á Universidade, com escala pela educação primaria (7 a 12) e pela secundaria (l2 a 18 annos), a "continuação ininterrupta de esforços creadores" deve levar á formação da personalidade integral do alumno e ao desenvolvimento de sua faculdade productora e de seu poder creador, pela applicação, na escola, para a acquisição activa de conhecimentos, dos mesmos methodos (observação, pesquiza, e experiencia), que segue o espirito maduro, nas investigações scientificas. A escola secundaria, unificada para se evitar o divorcio entre os trabalhadores manuaes e intellectuaes, terá uma solida base commum de cultura geral (3 annos), para a posterior bifurcação (dos 15 aos 18), em secção de preponderancia intellectual (com os 3 cyclos de humanidades modernas; sciencias physicas e mathematicas; e sciencias chimicas e biologicas), e em secção de preferência manual, ramificada por sua vez, em cyclos, escolas ou cursos destinados á preparação ás actividades profissionaes, decorrentes da extracção de materias primas (escolas agricolas, de mineração e de pesca) da elaboração das materias primas (industriaes e profissionaes) e da distribuição dos productos elaborados (transportes, communicações e commercio).

Mas, montada, na sua estructura tradicional, para a classe média (burguezia), emquanto a escola primaria servia á classe popular, como se tivesse uma finalidade em si mesma, a escola secundaria ou do 3º gráo não fórma apenas o reducto dos interesses de classe, que crearam e mantêm o dualismo dos systemas escolares. E' ainda nesse campo educativo que se levanta a controversia sobre o sentido de cultura geral e se põe o problema relativo á escolha do momento em que a materia do ensino deve diversificar-se em ramos iniciaes de especialização. Não admira, por isto, que a escola secundaria seja, nas reformas escolares, o ponto nevralgico da questão. Ora, a solução dada, neste plano, ao problema do ensino secundario, levantando os obstaculos oppostos pela escola tradicional á interpenetração das classes sociaes, se inspira na necessidade de adaptar essa educação á diversidade nascente de gostos e á variedade crescente de aptidões que a observação psychologica regista nos adolescentes e que "representam as unicas forças capazes de arrastar o espirito dos jovens á cultura superior". A escola do passado, com seu esforço inutil de abarcar a somma geral de conhecimentos, descurou a propria formação do espirito e a funcção que lhe cabia de conduzir o adolescente ao limiar das profissões e da vida. Sobre a base de uma cultura geral commum, em que importará menos a quantidade ou qualidade das materias do que o "methodo de sua acquisição", a escola moderna estabelece para isto, depois dos 15 annos, o ponto em que o ensino se diversifica, para se adaptar já á diversidade crescente de aptidões e de gostos, já á variedade de fórmas de actividade social.

c) O conceito moderno de Universidade e o problema universitario no Brasil

A educação superior que tem estado, no Brasil, exclusivamente a serviço das profissões "liberaes" (engenharia, medicina e direito), não póde evidentemente erigir-se á altura de uma educação universitária, sem alargar para horizontes scientificos e culturaes a sua finalidade estrictamente profissional e sem abrir os seus quadros rijidos á formação de todas as profissões que exijam conhecimentos scientificos, elevando-as a todas a nivel superior e tornando-se, pela flexibilidade de sua organização, accessivel a todas. Ao lado das faculdades profissionaes existentes, reorganizadas em novas bases, impõe-se a creação simultanea ou successiva, em cada quadro universitario, de faculdades de sciencias sociaes e economicas; de sciencias mathematicas, physicas e naturaes, e de philosophia e letras que, attendendo á variedade de typos mentaes e das necessidades sociaes, deverão abrir ás universidades que se crearem ou se reorganizarem, um campo cada vez mais vasto de investigações scientificas. A educação superior ou universitaria, a partir dos 18 annos, inteiramente gratuita como as demais, deve tender, de facto, não somente á formação profissional e technica, no seu maximo desenvolvimento, como á formação de pesquizadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos. Ella deve ser organizada de maneira que possa desempenhar a triplice funcção que lhe cabe de elaboradora ou creadora de sciencia (investigação), docente ou transmissora de conhecimentos (sciencia feita) e de vulgarizadora ou popularizadora, pelas instituições de extensão universitaria, das sciencias e das artes.

No entanto, com ser a pesquiza, na expressão de Coulter, o "systema nervoso da Universidade", que estimula e domina qualquer outra funcção; com ser esse espirito de profundidade e universalidade, que imprime á educação superior um caracter universitario, pondo-a em condições de contribuir para o aperfeiçoamento constante do saber humano, a nossa educação superior nunca ultrapassou os limites e as ambições de formação profissional, a que se propõem as escolas de engenharia, de medicina e direito. Nessas instituições, organizadas antes para uma funcção docente, a sciencia está inteiramente subordinada á arte ou á technica da profissão a que servem, com o cuidado da applicação immediata e proxima, de uma direcção utilitaria em vista de uma funcção publica ou de uma carreira privada. Ora, se, entre nós, vingam facilmente todas as formulas e phrases feitas; se a nossa illustração, mais variada e mais vasta do que no imperio, é hoje, na phrase de Alberto Torres, "mais vaga, fluida, sem assento, incapaz de habilitar os espiritos a formar juizos e incapaz de lhes inspirar actos", é porque a nossa geração, além de perder a base de uma educação secundaria solida, posto que exclusivamente literaria, se deixou infiltrar desse espirito encyclopedico em que o pensamento ganha em extensão o que perde em profundidade; em que da observação e da experiência, em que devia exercitarse, se deslocou o pensamento para o hedonismo intellectual e para a sciencia feita, e em que, finalmente, o periodo creador cede o logar á erudição, e essa mesma quasi sempre, entre nós, apparente e sem substancia, dissimulando sob a superficie, ás vezes brilhante, a absoluta falta de solidez de conhecimentos.

Nessa superficialidade de cultura, facil e apressada, de autodidactas, cujas opiniões se mantêm prisioneiras de systemas ou se matizam das tonalidades das mais variadas doutrinas, se tem de buscar as causas profundas da estreiteza e da fluctuação dos espíritos e da indisciplina mental, quase anarchica, que revelamos em face de todos os problemas. Nem a primeira geração nascida com a republica, no seu esforço heroico para adquirir a posse de si mesma, elevando-se acima de seu meio, conseguiu libertar-se de todos os males educativos de que se viciou a sua formação. A organização de Universidades é, pois, tanto mais necessaria e urgente quanto mais pensarmos que só com essas instituições, a que cabe crear e diffundir ideaes políticos, sociaes, moraes e estheticos, é que podemos obter esse intensivo espirito commum, nas aspirações, nos ideaes e nas luctas, esse "estado de animo nacional", capaz de dar força, efficacia e coherencia á acção dos homens, sejam quaes forem as divergências que possa estabelecer entre elles a diversidade de pontos de vista na solução dos problemas brasileiros. E' a universidade, no conjuncto de suas instituições de alta cultura, prepostas ao estudo scientifico dos grandes problemas nacionaes, que nos dará os meios de combater a facilidade de tudo admittir; o scepticismo de nada escolher nem julgar; a falta de critica, por falta de espirito de synthese; a indifferença ou a neutralidade no terreno das idéas; a ignorancia "da mais humana de todas as operações intellectuaes, que é a de tomar partido", e a tendência e o espirito facil de substituir os principios (ainda que provisorios) pelo paradoxo e pelo humor, esses recursos desesperados.

d) O problema dos melhores

De facto, a Universidade, que se encontra no apice de todas as instituições educativas, está destinada, nas sociedades modernas a desenvolver um papel cada vez mais importante na formação das elites de pensadores, sabios, scientistas, technicos, e educadores, de que ellas precisam para o estudo e solução de suas questões scientificas, moraes, intellectuaes, politicas e economicas. Se o problema fundamental das democracias é a educação das massas populares, os melhores e os mais capazes, por selecção, devem formar o vertice de uma pyramide de base immensa. Certamente, o novo conceito de educação repelle as elites formadas artificialmente "por differenciação economica" ou sob o criterio da independência economica, que não é nem póde ser hoje elemento necessario para fazer parte dellas. A primeira condição para que uma elite desempenhe a sua missão e cumpra o seu dever é de ser "inteiramente aberta" e não sómente de admittir todas as capacidades novas, como tambem de rejeitar implacavelmente de seu seio todos os individuos que não desempenham a funcção social que lhes é attribuida no interesse da collectividade. Mas, não ha sociedade alguma que possa prescindir desse orgão especial e tanto mais perfeitas serão as sociedades quanto mais pesquizada e seleccionada fôr a sua elite, quanto maior fôr a riqueza e a variedade de homens, de valor cultural substantivo, necessarios para enfrentar a variedade dos problemas que põe a complexidade das sociedades modernas. Essa selecção que se deve processar não "por differenciação economica", mas "pela differenciação de todas as capacidades", favorecida pela educação, mediante a acção biologica e funccional, não póde, não diremos completar-se, mas nem sequer realizar-se senão pela obra universitaria que, elevando ao maximo o desenvolvimento dos individuos dentro de suas aptidões naturaes e seleccionando os mais capazes, lhes dá bastante força para exercer influencia effectiva na sociedade e affectar, dessa forma, a consciencia social.

A unidade de formação de professores e a unidade de espirito

Ora, dessa elite deve fazer parte evidentemente o professorado de todos os gráos, ao qual, escolhido como sendo um corpo de eleição, para uma funcção publica da mais alta importancia, não se dá, nem nunca se deu no Brasil, a educação que uma élite póde e deve receber. A maior parte delle, entre nós, é recrutada em todas as carreiras, sem qualquer preparação profissional, como os professores do ensino secundario e os do ensino superior (engenharia, medicina, direito, etc.), entre os profissionaes dessas carreiras, que receberam, uns e outros, do secundario a sua educação geral. O magisterio primario, preparado em escolas especiaes (escolas normaes), de caracter mais propedeutico, e, ás vezes mixto, com seus cursos geral e de especialização profissional, não recebe, por via de regra, nesses estabelecimentos, de nivel secundario, nem uma solida preparação pedagogica, nem a educação geral em que ella deve basear-se. A preparação dos professores, como se vê, é tratada entre nós, de maneira differente, quando não é inteiramente descuidada, como se a funcção educacional, de todas as funcções publicas a mais importante, fosse a unica para cujo exercício não houvesse necessidade de qualquer preparação profissional. Todos os professores, de todos os gráos, cuja preparação geral se adquirirá nos estabelecimentos de ensino secundario, devem, no entanto, formar o seu espirito pedagogico, conjunctamente, nos cursos universitarios, em faculdades ou escolas normaes, elevadas ao nivel superior e incorporadas ás universidades. A tradição das hierarchias docentes, baseadas na differenciação dos gráos de ensino, e que a linguagem fixou em denominações differentes (mestre, professor e cathedratico), é inteiramente contraria ao principio da unidade da funcção educacional, que, applicado, ás funcções docentes, importa na incorporação dos estudos do magisterio ás universidades, e, portanto, na libertação espiritual e economica do professor, mediante uma formação e remuneração equivalentes que lhe permittam manter, com a efficiencia no trabalho, a dignidade e o prestígio indispensaveis aos educadores.

A formação universitaria dos professores não é sómente uma necessidade da funcção educativa, mas o unico meio de, elevando-lhes em verticalidade a cultura, e abrindo-lhes a vida sobre todos os horizontes, estabelecer, entre todos, para a realização da obra educacional, uma comprehensão reciproca, uma vida sentimental commum e um vigoroso espirito commum nas aspirações e nos ideaes. Se o estado cultural dos adultos é que dá as directrizes á formação da mocidade, não se poderá estabelecer uma funcção e educação unitaria da mocidade, sem que haja unidade cultural naquelles que estão incumbidos de transmittil-a. Nós não temos o feiticismo mas o principio da unidade, que reconhecemos não ser possível senão quando se creou esse "espirito", esse "ideal commum", pela unificação, para todos os gráos do ensino, da formação do magistério, que elevaria o valor dos estudos, em todos os gráos, imprimiria mais logica e harmonia ás instituições, e corrigiria, tanto quanto humanamente possivel, as injustiças da situação actual. Os professores de ensino primario e secundario, assim formados, em escolas ou cursos universitarios, sobre a base de uma educação geral commum, dada em estabelecimentos de educação secundaria, não fariam senão um só corpo com os do ensino superior, preparando a fusão sincera e cordial de todas as forças vivas do magisterio. Entre os diversos gráos do ensino, que guardariam a sua funcção especifica, se estabeleceriam contactos estreitos que permittiriam as passagens de um ao outro nos momentos precisos, descobrindo as superioridades em germen, pondo-as em destaque e assegurando, de um ponto a outro dos estudos, a unidade do espirito sobre a base da unidade de formação dos professores.

O papel da escola na vida e a sua funcção social

Mas, ao mesmo tempo que os progressos da psychologia applicada á creança começaram a dar á educação bases scientificas, os estudos sociologicos, definindo a posição da escola em face da vida, nos trouxeram uma consciência mais nitida da sua funcção social e da estreiteza relativa de seu circulo de acção. Comprehende-se, á luz desses estudos, que a escola, campo especifico de educação, não é um elemento estranho á sociedade humana, um elemento separado, mas "uma instituição social", um orgão feliz e vivo, no conjuncto das instituições necessarias á vida, o logar onde vivem a creança, a adolescencia e a mocidade, de conformidade com os interesses e as alegrias profundas de sua natureza. A educação, porém, não se faz somente pela escola, cuja acção é favorecida ou contrariada, ampliada ou reduzida pelo jogo de forças innumeraveis que concorrem ao movimento das sociedades modernas. Numerosas e variadissimas, são, de facto, as influencias que fórmam o homem atravez da existência. "Ha a herança que a escola da especie, como já se escreveu; a familia que é a escola dos paes; o ambiente social que é a escola da communidade, e a maior de todas as escolas, a vida, com todos os seus imponderaveis e forças incalculaveis". Comprehender-se-á, então, para empregar a imagem de C. Bouglé, que, na sociedade, a "zona luminosa é singularmente mais estreita que a zona de sombra; os pequenos focos de acção consciente que são as escolas, não são senão pontos na noite, e a noite que as cerca não é vasia, mas cheia e tanto mais inquietante; não é o silencio e a immobilidade do deserto, mas o fremito de uma floresta povoada".

Dessa concepção positiva da escola, como uma instituição social, limitada, na sua acção educativa, pela pluralidade e diversidade das forças que concorrem ao movimento das sociedades, resulta a necessidade de reorganizal-a, como um organismo malleavel e vivo, apparelhado de um systema de instituições susceptiveis de lhe alargar os limites e o raio de acção. As instituições periescolares e postescolares, de caracter educativo ou de assistencia social, devem ser incorporadas em todos os systemas de organização escolar para corrigirem essa insufficiencia social, cada vez maior, das instituições educacionaes. Essas instituições de educação e cultura, dos jardins de infancia ás escolas superiores, não exercem a acção intensa, larga e fecunda que são chamadas a desenvolver e não podem exercer senão por esse conjuncto systematico de medidas de projecção social da obra educativa além dos muros escolares. Cada escola, seja qual fôr o seu gráo, dos jardins ás universidades, deve, pois, reunir em tomo de si as familias dos alumnos, estimulando e aproveitando as iniciativas dos paes em favor da educação; constituindo sociedades de ex-alumnos que mantenham relação constante com as escolas; utilizando, em seu proveito, os valiosos e multiplos elementos materiaes e espirituaes da collectividade e despertando e desenvolvendo o poder de iniciativa e o espirito de cooperação social entre os paes, os professores, a imprensa e todas as demais instituições directamente interessadas na obra da educação.

Pois, é impossível realizar-se em intensidade e extensão, uma solida obra educacional, sem se rasgarem á escola aberturas no maior numero possivel de direcções e sem se multiplicarem os pontos de apoio de que ella precisa, para se desenvolver, recorrendo a communidade como á fonte que lhes ha de proporcionar todos os elementos necessarios para elevar as condições materiaes e espirituaes das escolas. A consciência do verdadeiro papel da escola na sociedade impõe o dever de concentrar a offensiva educacional sobre os nucleos sociaes, como a familia, os agrupamentos profissionaes e a imprensa, para que o esforço da escola se possa realizar em convergência, numa obra solidaria, com as outras instituições da communidade. Mas, além de attrahir para a obra commum as instituições que são destinadas, no systema social geral, a fortificar-se mutuamente, a escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior amplitude possivel, todos os recursos formidaveis, como a imprensa, o disco, o cinema e o radio, com que a sciencia, multiplicando-lhe a efficacia, acudiu á obra de educação e cultura e que assumem, em face das condições geographicas e da extensão territorial do paiz, uma importancia capital. A' escola antiga, presumida da importancia do seu papel e fechada no seu exclusivismo acanhado e esteril, sem o indispensavel complemento e concurso de todas as outras instituições sociaes, se succederá a escola moderna apparelhada de todos os recursos para estender e fecundar a sua acção na solidariedade com o meio social, em que então, e só então, se tornará capaz de influir, transformando-se num centro poderoso de creação, attracção e irradiação de todas as forças e actividades educativas.

A democracia, – um programma de longos deveres

Não alimentamos, de certo, illusões sobre as difficuldades de toda a ordem que apresenta um plano de reconstrucção educacional de tão grande alcance e de tão vastas proporções. Mas, temos, com a consciência profunda de uma por uma dessas dificuldades, a disposição obstinada de enfretal-as, dispostos, como estamos, na defeza de nossos ideaes educacionaes, para as existências mais agitadas, mais rudes e mais fecundas em realidades, que um homem tenha vivido desde que ha homens, aspirações e luctas. O proprio espirito que o informa de uma nova politica educacional, com sentido unitario e de bases scientificas, e que seria, em outros paizes, a maior fonte de seu prestigio, tornará esse plano suspeito aos olhos dos que, sob o pretexto e em nome do nacionalismo, persistem em manter a educação, no terreno de uma politica empirica, á margem das correntes renovadoras de seu tempo. De mais, se os problemas de educação devem ser resolvidos de maneira scientifica, e se a sciencia não tem patria, nem varía, nos seus principios, com os climas e as latitudes, a obra de educação deve ter, em toda a parte, uma "unidade fundamental", dentro da variedade de systemas resultantes da adaptação a novos ambientes dessas idéas e aspirações que, sendo estructuralmente scientificas e humanas, têm um caracter universal. E' preciso, certamente, tempo para que as camadas mais profundas do magistério e da sociedade em geral sejam tocadas pelas doutrinas novas e seja esse contacto bastante penetrante e fecundo para lhe modificar os pontos de vista e as attitudes em face do problema educacional, e para nos permittir as conquistas em globo ou por partes de todas as grandes aspirações que constituem a substancia de uma nova politica de educação.

Os obstaculos accumulados, porém, não nos abateram ainda nem poderão abater-nos a resolução firme de trabalhar pela reconstrucção educacional no Brasil. Nós temos uma missão a cumprir: insensiveis á indiferença e á hostilidade, em lucta aberta contra preconceitos e prevenções enraizadas, caminharemos progressivamente para o termo de nossa tarefa, sem abandonarmos o terreno das realidades, mas sem perdermos de vista os nossos ideaes de reconstrucção do Brasil, na base de uma educação inteiramente nova. A hora critica e decisiva que vivemos, não nos permitte hesitar um momento deante da tremenda tarefa que nos impõe a consciencia, cada vez mais viva da necessidade de nos prepararmos para enfrentarmos com o evangelho da nova geração, a complexidade tragica dos problemas postos pelas sociedades modernas. "Não devemos submetter o nosso espirito. Devemos, antes de tudo proporcionar-nos um espirito firme e seguro; chegar a ser serios em todas as cousas, e não continuar a viver frivolamente e como envoltos em bruma; devemos formar-nos principios fixos e inabalaveis que sirvam para regular, de um modo firme, todos os nossos pensamentos e todas as nossas acções; vida e pensamento devem ser em nós outros de uma só peça e formar um todo penetrante e solido. Devemos, em uma palavra, adquirir um caracter, e reflectir, pelo movimento de nossas proprias idéas, sobre os grandes acontecimentos de nossos dias, sua relação comnosco e o que podemos esperar delles. E' preciso formar uma opinião clara e penetrante e responder a esses problemas sim ou não de um modo decidido e inabalavel".

Essas palavras tão opportunas, que agora lembramos, escreveu-as Fichte ha mais de um seculo, apontando á Allemanha, depois da derrota de Iena, o caminho de sua salvação pela obra educacional, em um daquelles famosos "discursos á nação allemã", pronunciados de sua cathedra, emquanto sob as janellas da Universidade, pelas ruas de Berlim, resoavam os tambôres franceses... Não são, de facto, senão as fortes convicções e a plena posse de si mesmos que fazem os grandes homens e os grandes povos. Toda a profunda renovação dos principios que orientam a marcha dos povos precisa acompanhar-se de fundas transformações no regimen educacional: as unicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação, e é só pela educação que a doutrina democratica, utilizada como um principio de desaggregação moral e de indisciplina, poderá transformar-se numa fonte de esforço moral, de energia creadora, de solidariedade social e de espirito de cooperação. "O ideal da democracia que, – escrevia Gustave Belot em 1919, – parecia mecanismo politico, torna-se principio de vida moral e social, e o que parecia cousa feita e realizada revelou-se como um caminho a seguir e como um programma de longos deveres". Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e justifica maior somma de sacrificios; aquelle com que não é possivel transigir sem a perda irreparavel de algumas gerações; aquelle em cujo cumprimento os erros praticados se projectam mais longe nas suas consequencias, aggravando-se á medida que recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para affirmar-se e realizal-os, entretém, cultiva e perpetúa a identidade da consciencia nacional, na sua communhão intima com a consciencia humana.

Fernando de Azevedo
Afranio Peixoto
A. de Sampaio Doria
Anisio Spinola Teixeira
M. Bergstrom Lourenço Filho
Roquette Pinto
J. G. Frota Pessôa
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