TEIXEIRA, Anísio. A longa revolução de nosso tempo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.49, n.109, jan./mar. 1968. p.11-26.

A Longa Revolução de Nosso Tempo *

Anísio Teixeira

Não posso negar quanto me confortou o vosso convite. Desejo retribuir hoje a honra que me fizestes, falando-vos com a franqueza de um colega, separado dos meus jovens amigos pela distância dos anos. O que nos separa não são os anos que estais vivendo, mas os que vivi antes de vossa chegada. Tenho a idade dêste século. Acompanhei-o em condições especiais, pois a vida me permitiu vê-lo dos pontos de vista mais diversos, desde o do sertão remoto e neolítico até o de algumas das capitais mais modernas do planêta. Como o século é o da mudança e o da velocidade, passaram pelos meus olhos transformações que, no passado, exigiram vários séculos. Em nosso tempo, havemos de medi-lo por décadas e já estamos avançados da sétima década de nosso século. O conceito de que a vida é breve é um conceito obsoleto. Hoje a vida é longa, demasiado longa para que nós próprios possamos examiná-la, compreendê-la, julgá-la. Por isso mesmo, tenho de falar muito mais das minhas perplexidades do que de minhas conclusões. Durante êsse imenso tempo em que hei vivido, tenho estado mais a aumentar minhas dúvidas do que a guardar as minhas possíveis certezas. Só talvez um certo senso de perspectiva é que sinto haver crescido nesse longo período. O senso de perspectiva não deve ser entendido, porém, como senso de claridade. Meu senso de perspectiva é um senso de brumas e de névoas. Fortalece-o minha visão mais prolongada do passado, talvez. Pelo menos em parte. Mas a fresta por onde percebo a perspectiva do nosso tempo é coisa mais modesta. É, sobretudo, a percepção do desencontro entre o que os homens querem e o que realmente acontece. Quando me refiro a êsse querer dos homens, está claro que me refiro aos poderosos, pois só êstes podem querer. Com o seu poder, êles aparentemente retardam imensamente o que poderia acontecer. Ser poderoso é extremamente importante. Tão importante que até parece ser a única coisa importante na vida. Não posso refletir sôbre o milhão de anos que tem o homem de existência e a lentidão do seu progresso, sem pensar na eficácia do poder. Só dêste modo se pode compreender quanto é raro e difícil não obedecer aos poderosos. Tôda a existência não é mais do que uma longa obediência aos poderosos e, por isso, até os poderosos acreditam no seu poder. E o aplicam com uma comovente, patética certeza em sua eficácia. Visto em perspectiva, contudo, - e isto é que a velocidade do nosso século nos permite em nossa própria vida individual - visto em perspectiva nada me parece mais fútil do que êsse flamejante querer dos poderosos. É preciso lembrar que a minha conclusão não tem qualquer originalidade. O século atual já até formulou a teoria do poder dos fracos. Satyagraya e, antes de Ghandi, tôda religião oriental ensinava a resistência civil, a morte como protesto, como forma de luta contra os poderosos.

O processo pelo qual os poderosos ficaram, em nossos dias, mais poderosos do que os poderosos de qualquer época, foi o da longa revolução científica em que estamos todos imersos. Essa longa e ininterrompida revolução industrial e democrática, em que se debate desde os fins do século dezoito a família do homem, nos aproxima e de um certo modo nos identifica. Desejo falar-vos sôbre essa longa revolução que é o nosso presente. Presente, que é, na expressão de Whitehead, o "chão sagrado" onde se encontram o passado e o futuro e, portanto, tudo que existe. O que chamamos de educação é o esfôrço para compreender êsse "insistente presente". Sem compreendê-lo não podemos viver. Há presentes incendiados de fermento intelectual e presentes estagnados e inertes. É que nos primeiros o passado está vivo no presente e nos entreabre o futuro. Nos outros, depreciamos o presente e quedamos inertes na adoração do passado. Tôda verdadeira crise humana é uma crise de compreensão do presente, neste sentido de ponto de interseção entre o passado vivo e o futuro que vai nascer. Num dêsses momentos é que nos encontramos. Difìcilmente, na história, terá havido mais intenso período de sentimento do futuro, que decorre exatamente da consciência aguçada de havermos sido lançados ao nosso vertiginoso presente por um vivo e acelerado passado, que nos trouxe até a crise atual. Jamais tempo algum foi tão marcado de contrastes, de negações e aceitações, de conformismos e inconformismos, de esperanças e decepções, mas, a despeito de tudo, também de um incoercível otimismo, que sobrevive a tragédias e catástrofes, numa recuperação incessante e surpreendente, como se, no fundo, a consciência de que o homem se fêz, afinal, senhor do seu destino seja a grande marca da nossa época.

Ao longo dêsses quase dois séculos, as reações humanas, ante a grande transformação que representou o surto democrático e industrial, passaram por diferentes fases. Primeiro, foi a revolta contra a máquina, que reduzira a atividade humana a uma operação mecânica em substituição à fina obra artesanal e à sociedade de certo modo orgânica da ordem anterior. A esta revolta se juntava, no campo social, o receio pelo domínio emocional da população, que iria suprimir os valôres lentamente elaborados pela minoria para a ordem até então vigente. Os que exprimiam essa revolta e êsse receio, sentiam, entretanto, que o movimento tinha muito de irreversível, podendo ser combatido mas não destruído. Em meio a controvérsias e negações, a marcha do chamado progresso foi por fim aceita, as transformações se operaram, a democracia política se estendeu pelo sufrágio universal a todos, a educação se desenvolveu como grande dever do estado, a máquina e a fábrica entraram a se expandir sem maior oposição, e, nesse espírito, se viveu primeiro a época vitoriana e depois o intermezzo relativamente pacífico do fim do século, que nos trouxe até as vésperas da Primeira Guerra Mundial.

A acomodação que representava essa segunda fase, rompeu-se com a guerra, de que saímos mudados e com uma nova consciência social. Começa em 1918 a época verdadeiramente contemporânea. A revolução americana e a francesa dão início ao período anterior; a revolução russa marca o comêço do nôvo período de expansão.

A expansão era geográfica, pois mais uma grande nação se incorporava ao processo de democracia e industrialização, mas o que, sobretudo, estava a expandir-se era a revolução do saber humano e o conseqüente aumento do poder do homem sôbre as condições materiais da existência. Êste saber é que deu ao homem a convicção de que a sua vida não era o resultado de um desígnio superior e preestabelecido, mas da vontade, dos interêsses e dos propósitos dos próprios homens. Subjacente a todos os movimentos políticos, arde essa nova convicção, que incentivou as aspirações humanas e mobilizou todos os homens da espécie para uma renascida luta pelo que chamamos desenvolvimento e é mais do que isto, pois é a busca por uma sociedade solidária e feliz. Essa inquietação pela justa solução social, pela busca não da grande sociedade, mas da boa sociedade, é que marca o pensamento social do século XIX. Vimos como, então, a máquina acabou por ser aceita e a democracia política veio a estender-se à maioria pelo sufrágio universal, a educação para todos e a adoção do princípio de igualdade de oportunidades. A aceitação da máquina deflagrou um avanço tecnológico sem precedentes e acabou por criar a sociedade globalmente industrializada, com um grau de concentração humana jamais visto, o que se pode medir pelo fato de 70% da população da América do Norte viver em 1,3% do seu território. Esta nova sociedade com um grau de riqueza inacreditável, concentrada sob formas maciças de urbanização e dotada de meios de comunicação impessoal e extensos, está produzindo uma sociedade para que se adotou o nome de "massa", civilização de massa, homem de massa, comunicação de massa. Por trás dêsse nome, parece esconder-se a velha reação contra a democracia, que, no princípio do século XIX, se exprimia pelo mêdo à plebe, à população, mêdo que diminuiu com a educação universal e os relativos sossegos do período vitoriano e o interregno do fim do século, voltando a recrudescer após a Primeira Guerra Mundial com o maurrasismo, o fascismo e o nazismo, e agora de nôvo a renascer tìmidamente por trás dêsse conceito de civilização de massa.

Continuemos, porém, a considerar o que se deu com a aceitação global do nôvo poder humano decorrente do conhecimento científico e tecnológico. Falamos a respeito da primeira fase do nosso tempo como o da revolução científica. Nesta segunda fase, falamos da revolução tecnológica, ou seja, o da aplicação global do método científico à própria vida social humana.

Mas assim as chamadas hoje numa terminologia que só a perspectiva a posteriori nos permitiu usar. O que marcou os fins do século XVIII foi o movimento democrático, acompanhado de uma quase simultânea mudança da forma de trabalho, introduzida pela máquina e pela fábrica, que veio a chamar-se processo de industrialização. Êsse movimento democrático e essa mudança da forma do trabalho humano se inseriam numa sociedade mercantilista em processo dinâmico de renovação. O que importa notar é que só aparentemente constituíam o movimento e a mudança um só processo. Na realidade eram contraditórios, havendo sido difícil a coexistência entre ambos. Numa generalização simplificadora, pode-se dizer que a mudança com real poder para se efetivar era a da forma de trabalho e a democracia não passava de aspiração, com a pequena fôrça que podem ter os desejos humanos. A mudança da forma de trabalho é que veio a ser ajudada por conhecimentos novos, que, aplicados, deram ao homem, pelas invenções, novos instrumentos para a transformação em curso. A democracia não era servida pròpriamente pela ciência mas por idéias que buscavam interpretar e teorizar sôbre a viabilidade de uma sociedade fraternal e justa.

A mudança de condições de trabalho, com o progresso da ciência e da tecnologia, veio a produzir a enorme concentração organizacional da sociedade contemporânea, coletivizada em seu trabalho e em seu modo de vida, extremamente rica e poderosa, como um todo, mas, substancialmente impessoal e antiindividual. O nôvo método de trabalho coletivo e organizado ampliou-se do setor de produção pròpriamente dita para todos os demais, fôssem os de distribuição, de serviços, de govêrno ou de comunicação. Além disso, o processo de coletivização tendeu a ampliar-se em complexos cada vez mais vastos, servidos por conhecimentos extraordinàriamente especializados e insuscetíveis de ser compreendidos pelo indivíduo, que se viu paradoxalmente reposto na antiga situação de ignorância e dêste modo na antiga situação de instrumento à disposição dos que tivessem a fôrça para o comando operacional do todo.

A ordem antiga, que se fundava na ignorância do indivíduo e na crença de que a vida humana obedecia ao "grande desígnio da Providência", dentro do qual o homem girava sob o comando da fatalidade e do destino, foi, de certo modo, reinstituída. Comparado, hoje, o poder de um monarca absoluto com o das cúpulas do poder de uma sociedade desenvolvida, a desvantagem seria para o monarca absoluto. Hoje, uma nação desenvolvida no sentido global, só tem um limite para o seu poder: a existência das outras nações; isto porque a amplitude organizacional ainda não se estendeu completamente à vida internacional. As nações são tudo o que nos resta como "individual", no sentido antigo da palavra, ou seja, núcleo individual e absoluto de poder ou soberania. * Algumas das grandes fôrças atuantes da organização da vida humana já são contudo internacionais, impondo uma interdependência que se faz imperativa para tôdas as nações pequenas e relativamente manipulável apenas pelas grandes nações. Como as grandes ainda não são uma só, o poder real se divide por bem ou por mal entre elas.

Por conseguinte, os dois movimentos de democracia e industrialização não foram movimentos sintonizados, mas movimentos passíveis de se tornarem independentes, levando o superdesenvolvimento de um dêles - aquêle que realmente aumentava a fôrça e o poder do homem - a criar um tipo de sociedade humana que só tem paralelo, modesto paralelo, com as sociedades coletivistas do mais remoto passado.

Tudo isto sempre foi pressentido pela mente humana. Quando a industrialização se iniciou, não faltaram críticos lúcidos que entreviram muito dessas conseqüências. É que o movimento operava ao mesmo tempo que o democrático - êste, revolucionário no sentido da direção e da significação da vida humana; enquanto o outro, revolucionário apenas no sentido da mudança das condições da produção e da organização social e, em rigor, indiferente a qualquer mudança no sentido dos valôres sociais do indivíduo. A simultâneidade dos dois movimentos deu lugar a um desenvolvimento do pensamento social crítico, muito diferente de outros períodos da História, salvo talvez o helênico e o do cristianismo dos primeiros tempos. O pensamento social, antes apenas relativo aos aspectos religiosos e morais da vida humana, passou a ser político, econômico e pròpriamente social, tendo como objetivo a própria sociedade humana existente e concreta. E fêz-se, assim, um pensamento controvertido senão contraditório.

Êste pensamento teve seu grau de efetividade e, de certo modo, influiu sôbre o desenvolvimento industrial, mas, em rigor, não o dirigiu nem o forçou a nenhuma mudança substancial no quadro conservador do poder da sociedade antiga. A história do desenvolvimento da sociedade contemporânea é uma ilustração do modo por que as idéias atuam no desenvolvimento social. Em períodos de mudança social, a função do intelectual é descobrir e formular as idéias capazes de dar direção e articulação às mudanças em curso. Se essas idéias não refletirem movimentos nascentes no meio ambiente não se transformarão em fôrças atuantes. Não criam mas apenas dão fôrça ao que já existe em germe na sociedade. Sem essa correspondência, seu poder, que é antes fecundante do que pròpriamente criador, deixa de existir. As primeiras idéias do liberalismo com sua ênfase na liberdade individual só tiveram êxito porque encarnavam os interêsses de uma classe nascente, que iria substituir a aristocracia em fase de extinção. Neste sentido, as idéias ordenam, dão impulsos e tornam conscientes e articuladas as fôrças sociais em formação. O êrro mais comum do século dezenove foi o de acreditar que as idéias uma vez expostas tinham, por si mesmas, o poder de se efetivarem. As idéias se efetivam quando incorporadas aos meios de ação instituídos para o fim de transformar ou conduzir a mudança social. Não se pode negar que houve na fase de implantação do capitalismo um verdadeiro processo de invenção social, do que se poderia chamar tecnologia institucional para levar a nova classe ao poder e dar-lhe os instrumentos de ação imprescindíveis para o seu domínio. Êsse processo inventivo social corria paralelo com o processo inventivo mecânico para a produção. Por isto mesmo nem as idéias nem as formas que tomaram a sua aplicação se tornaram integralmente as mesmas ou integralmente idênticas na Inglaterra, na França ou nos Estados Unidos, embora o processo de transformação social fôsse bàsicamente o mesmo.

Todavia, como o processo tentava defender-se do acúmulo de restrições da ordem anterior numa afirmação radical da liberdade da nova ordem, um certo princípio de anarquia ou laissez-faire o inspirou desde o início, o que fêz de longo período do seu desenvolvimento uma fase de esperanças e decepções, de negações e anuências, até que afinal se chegou à aceitação global do nôvo poder humano de resolver o problema material de existência. O êxito maior dêsse processo é representado hoje pelo caso da América do Norte, cujo desenvolvimento criou a sociedade da plena riqueza e do pleno poder, melhor diria, da riqueza pela riqueza e do poder pelo poder. Como a ciência que produziu essa riqueza e êsse poder foi utilizada dentro da atmosfera de liberdade e anarquia que gerou o movimento, chegamos ao paradoxo que já no século XIX lembrava Arnold sôbre a liberdade. Dizia êle que a liberdade, sem dúvida, era um cavalo muito bom para se montar. Mas, o importante era saber para onde. Hoje Galbraith faz idêntica pergunta. Riqueza e poder, sim, mas para quê? A realidade é que, devido às condições em que se buscou a riqueza, subverteu-se profundamente a sociedade humana. Por um lado, a existência humana entrou em um processo de uniformização de suas condições materiais, o que é, sem dúvida, um bem, mas, por outro, viu-se dividida e fragmentada pela extrema complexidade e amplitude da organização social e pela extraordinária concentração das fôrças nela atuantes, que tendem a torná-la vastamente homogeneizada, mas impessoal, contraditória e, de certo modo, insuscetível de ser tornada consciente e, por isso, absurda. Com efeito, o saber em que se funda é tão extenso, complexo e profusamente especializado, que a antiga capacidade do chamado homem culto para formar e difundir a imagem da sociedade vem-se perdendo a olhos vistos.

A lição contida no tumultuoso período de transformação da sociedade até o seu atual estado de desenvolvimento é, repetimos, a de que não foram tanto as idéias, mas o progresso científico e tecnológico que atuou como fôrça transformadora. O homem forneceu a energia humana necessária a pôr em aplicação o conhecimento conquistado. O elemento catalítico para o deflagrar dessa energia humana foi indiscutìvelmente a utilização para fins privados dos fatôres do conhecimento e do processo tecnológico. As idéias entraram no processo como elementos de racionalização. E o debate de idéias foi o debate entre duas racionalizações opostas. Como a primeira dispunha da fôrça, prevaleceu a racionalização dos que a tinham.

Mas se a lição a tirar de tôda a marcha do desenvolvimento foi a de que seu fator essencial acabou sendo a revolução científica e tecnológica e não pròpriamente as idéias políticas, a surprêsa que nos trouxe êsse desenvolvimento foi a de que o nôvo meio de vida resultante dêsse processo de desenvolvimento não terá sido o esperado pelos que dêle tiraram o maior proveito, como não foi, e já aí sem surprêsa, o dos que o processo empobreceu e destruiu. A chamada sociedade individualista e capitalista fêz-se uma sociedade coletivista, mergulhando a vida individual em uma teia de organização, de comércio e de serviço de tais dimensões, que nenhum indivíduo pode sonhar em controlá-las. A fábrica, a organização mecânica do trabalho, a esteira de produção fêz-se o símbolo de todo o nôvo modo de viver. Cada indivíduo se viu reduzido a representar um diminuto papel no entrecho extremamente complicado e extenso não só da produção mas de tôda a vida, em seus aspectos de convívio, de recreação ou de consumo. Destruídas as formas de trabalho individual e organizada a forma coletiva de trabalho, a riqueza resultante coletivizou tôdas as formas de vida. O desgôsto que isso produziu foi considerável e levou a vários expedientes de valorização artificial de tudo que estava a desaparecer. Um dos aspectos dessa valorização compensatória foi a valorização do artista, porque o seu trabalho não era mecânico mas individual. Porém, a mais generalizada foi a valorização das profissões que escaparam ao processo de coletivização. A do médico, a do advogado, a do profissional liberal, ou seja, a do trabalho ainda livre das regras do trabalho em comum, planejado por uns e executado por outros. Nessa categoria estava também a nossa profissão de professôres e educadores.

Até aí estamos no desenvolvimento como êle se processou até o fim do período vitoriano. Daí por diante, até o momento atual, o que se deu foi a globalização do processo industrial e a extensão dos efeitos da coletivização a todos os aspectos da vida. A vida de cada um, sejamos nós operários ou trabalhadores do setor de serviço, ou profissionais de qualquer espécie, ou professôres de qualquer nível, todo o nosso trabalho e tôda a nossa vida passaram a ser governados pelas necessidades da organização e da escola em que esta se agigantou, até reduzir o indivíduo às parcelas do entrecho que lhe cabe desempenhar. Qualquer dos tipos de trabalho que o homem tente escolher, todos serão planejados por outrem e têm de ser executados, no melhor dos casos, como o cantor ou o instrumentista numa orquestra.

Ora, êsse tipo de trabalho e de vida nos obriga, a uma certa mudança radical de nosso comportamento e de nosso modo de julgar e entender a vida. Só raros, dentre nós, podem vir a ser o solista, o qual, ainda assim, só em parte lembrará o antigo individualista pois, na orquestra, o solista se encontra também dentro do plano da orquestra e sujeito à coletivização do seu esfôrço.

Parece-me ser êste o aspecto mais radical do processo de desenvolvimento e daí a resistência que oferecemos às mudanças necessárias. A diferença entre o regime de trabalho chamado socialista e o chamado capitalista é hoje mais aparente do que real, depois de processado o desenvolvimento. A real diferença está entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. Entre os subdesenvolvidos estão ainda muitos dos valôres que o desenvolvimento vai destruir e destruir sobretudo para os que, numa sociedade fundada na desigualdade, lograrem fazer-se desiguais. Dir-se-á que então a resistência do desenvolvimento estará sòmente nos privilegiados, mas não é verdade. Os que ainda não são privilegiados lutam para que a situação perdure, a fim de que possam, por sua vez, ser os privilegiados.

A sociedade capitalista que se implantou no século XIX foi uma sociedade devotada à conquista da desigualdade pelo esfôrço individual e daí a energia que a dinamizou. Mas na sociedade subdesenvolvida, a desigualdade é obtida por processos declaratórios, geralmente estabelecidos por lei e decretados pelas autoridades do govêrno. Assim é que se constituíram os privilégios em tôda história anterior ao laissez-faire individualista. O que vimos fazendo em nosso esfôrço de resistir ao desenvolvimento é sobretudo um esfôrço no sentido de conservar o regime anterior, da desigualdade decretada. A nossa resistência é tanto contra o capitalismo como em relação ao socialismo. Nenhum dos dois regimes nos convém, pois preferimos o anterior, que é o de obter o privilégio pelo favor do grupo que já o detém.

E como isto pode ainda ser continuado por algum tempo, adiamos os esforços e os sacrifícios pela mudança, seja ela a capitalista ou a socialista. A socialista parece subversiva porque ameaça os privilégios. A capitalista é indesejável porque desencoraja os que ainda não são privilegiados, que acham demasiado penoso o processo de se fazerem privilegiados à maneira capitalista. Perdura assim o status quo, pagando os privilegiados, pela preservação de sua posição, o preço da concessão de certo aumento às oportunidades de se fazerem mais alguns também privilegiados. Êsse crescimento, por mais moderado que seja, fornece a válvula de escape para as pressões sociais da ampliação dos desejos e aspirações.

O processo terá, um dia, de chegar a têrmo. Com efeito, os cientistas sociais, que hoje estudam a dinâmica da mudança social, emprestam ao processo de modernização ou desenvolvimento um caráter aparentemente determinístico. Na definição do professor C. E. Black, "modernização é o processo pelo qual instituições històricamente desenvolvidas se adaptam às novas funções decorrentes das crescentes e rápidas mudanças que refletem o aumento sem precedentes do saber humano, a fim de permitir o contrôle da situação ambiente criada pela revolução científica. O processo de adaptação teve suas origens e influências iniciais nas sociedades da Europa ocidental; mas nos séculos XIX e XX essas mudanças se estenderam a tôdas as outras sociedades, resultando em uma transformação mundial que afeta tôdas as relações humanas".

Estamos nós dentro dêsse processo e dêste modo as observações de minha análise se destinam, apenas, a revelar as resistências e obstáculos a sua aceleração.

A circunstância de estarmos, como país em desenvolvimento, vivendo as fases pregressas da revolução simultâneamente com a fase atual de conhecimento humano, torna impossível reproduzir os períodos históricos por que passaram os países desenvolvidos. Estamos mergulhados no momento histórico presente e, dêsse modo, nossos problemas se vêem agravados pela contradição entre a nossa situação material pré-industrial e a consciência histórica do momento, em rigor, correspondente ao período em que iremos viver mas em que ainda não vivemos.

Aí está, no meu ver, a grande dificuldade de país, como o nosso, em desenvolvimento. Nossas condições são as de cem anos atrás e temos de lutar pela sua adaptação aos conhecimentos e ao instrumental de hoje. Não só isto, mas ao estado de espírito de hoje.

Não podemos, assim, seguir os modelos com que cem anos atrás os homens procuraram resolver os problemas do desenvolvimento e também não podemos seguir os modelos de hoje das nações desenvolvidas, pois êstes não se adaptam às nossas condições reais, porém a condições já altamente modificadas pela fase do desenvolvimento em que se encontram. A nossa adaptação é muito mais difícil, tendo de ser criados os modelos pelos quais ela se irá implantar.

Nas primeiras décadas dêste século, com efeito, graças ao progresso tecnológico já até então obtido, as sociedades da desigualdade já desenvolvidas, com o seu tipo de sociedade-mercado, com a sua cultura do dinheiro, fizeram com o socialismo, seu grande opositor dentro da tradição do século XIX, o jôgo do gato e do rato, como, aliás, previra William Morris, a figura central da tradição no fim do século passado. Morris indagava "se, em suma, a tremenda organização da sociedade comercial civilizada não está fazendo conosco socialistas o jôgo do gato e do rato. Não será que a "Sociedade da Desigualdade" está aceitando a maquinaria (do socialismo) e pondo-a para funcionar no sentido de sustentar essa mesma sociedade em condições de algum modo, talvez, remendadas, porém seguras". . . "Os operários mais bem tratados, melhor organizados, ajudando-se a se governar a si mesmos, sem, no entanto, pretender mais a igualdade com os ricos, nem terem disto mais esperança do que a têm hoje", Morris escrevia isto no século XIX em pleno triunfo vitoriano da civilização utilitária. Era uma visão profética do "nôvo capitalismo" da América do Norte.

A Bahia teve, no fim do século passado, na sua grande figura de capitalista que foi Luiz Tarquino, um exemplo típico dêsse jôgo do gato com o rato, com sua obra exemplar de um capitalismo humanizado. Não faltava a Luiz Tarquino a agudeza de pensamento necessária para sentir que a sociedade do lucro precisava de certas roupagens socialistas para se tornar segura. Morris não o conheceu mas o imaginou e previu.

A nossa época não tem a tranqüilidade vitoriana, contra a qual se levantava William Morris, mas tem suas semelhanças. Os capitalistas de hoje retomaram um senso de segurança vitoriana, com os sindicatos organizados e conservadores dos nossos dias, o serviço de relações públicas, os altos salários, os cuidados com a saúde, o bem-estar e a educação dos trabalhadores e as "corporations" com os operários também acionistas. O gato socialista fêz-se um gato de louça. Tôda a civilização ocidental das nações desenvolvidas é hoje a da sociedade que William Morris previu no fim do século.

Mas não era esta a sociedade capitalista do comêço do século XIX. Poderemos nós, que não temos apenas de continuar o capitalismo mas de criá-lo, fazê-lo já nas condições a que chegou êle nos países desenvolvidos? Costuma-se dizer que a esquerda brasileira é uma esquerda festiva. Poderemos nós também fazer um capitalismo festivo? Ou, pelo menos, um capitalismo à Luiz Tarquino? O capitalismo humanizado dos dias de hoje - para usar outra expressão muito ao nosso gôsto - é êsse capitalismo em tremendo estado de concentração e riqueza, com os capitalistas em grau de segurança tão alto, que lembram a segurança do próprio Estado, o que, em rigor, faz do empresário uma figura quase pública. Será, talvez, por isso que tantos afirmam hoje que os Estados Unidos são a Rússia rica e esta, a América do Norte pobre.

Se êste é um lado da questão, não me desejo deter nêle, mas em nosso problema de educadores, convocados que nos achamos para verdadeiros desafios, em meio aos projetos da sociedade em desenvolvimento. O desenvolvimento da sociedade contemporânea, que a levou ao grau de organização e coalescência a que nos referimos, não foi desenvolvimento homogêneo nem uniforme e singelo, mas algo de extremamente complexo e mesmo contraditório. A sociedade da desigualdade, do lucro, do mercado e do dinheiro nunca foi isto pura e simplesmente. Para sobreviver contou com outros valôres que nunca esqueceu de cultivar. Assim, desenvolveu, ao lado do seu utilitarismo, o espírito de serviço com que marcou seu funcionário civil ou militar e as demais atividades voluntárias da comunidade, a doutrina da igualdade de oportunidades com que buscou tornar democrática a procura pela desigualdade, estendeu a educação a todos num esfôrço para a todos permitir partilhar da sociedade e, por último, criou o serviço de relações públicas que é uma continuação do esfôrço educacional, para dar certo grau de consciência, ou aparência de comunicação entre o indivíduo e o complexo social. Foi graças a tudo isso que construiu a imagem da sociedade que se sobrepõe à do outro mercado, ou, pelo menos, explica esta última ao indivíduo arregimentado mas relativamente seguro dentro da opulência alcançada.

Poderemos nós, subdesenvolvidos, que não fizemos isso em seu tempo, recriar tôdas essas instituições para nossa tardia adaptação? Sobretudo aquêle "espírito de serviço", que ao lado da sociedade competitiva, criou a sociedade dos responsáveis, dos guardiães das regras do jôgo que se fizeram os funcionários, por exemplo, da Inglaterra, nação em que primeiro se desenvolveu a sociedade de laissez-faire e do livre individualismo? Hoje, os funcionários ganharam a mentalidade dos assalariados e exercem a sua função à maneira defensiva que caracteriza a atuação do operário. São fôrças de pressão e não os guardiães da sociedade.

Não preciso encarecer que nossas dificuldades são, sem dúvida, maiores do que as que assaltaram, em seu tempo, as sociedades hoje desenvolvidas. Dentre tôdas aquelas instituições criadas então para atender à adaptação à transformação social, nenhuma será, por certo, mais importante do que a da educação. Ela é que poderá ter a flexibilidade e a virtuosidade necessárias para se erguer à altura de nossas dificuldades.

Cabe-nos nada mais, nada menos, do que vencer a crise de compreensão bem mais complexa em que se debate a sociedade em desenvolvimento. Tornar o presente compreensível a despeito de suas contradições, por intermédio do que chamamos cultura, que mais não é do que o conjunto de idéias e sentimentos que desenvolvemos para buscar entender e controlar o nosso complicado e difícil presente. Cabe-nos, afinal, acompanhar o processo de iniciação e integração social de cada indivíduo no mundo confuso e tumultuado de nossa sociedade em transformação. Para pensarmos em têrmos de experiência sôbre sociedade, temos de partir de um grupo de pessoas, de um povo que vive em certo local, em certo estado, em certo país e, por fim, no mundo. Mas nesse local, nesse estado, nesse país e no mundo existimos uns em relação com os outros e todos sujeitos a fôrças, leis e governos de tôda ordem, por sua vez decorrentes de condições históricas e culturais as mais diversas, imersos finalmente em um todo de posições conflitantes e opostas, que atingem e dominam nossas vidas individuais de maneira constante e inelutável. O homem primitivo tinha a sua sociedade simples e inteligível e as condições materiais dominadoras e implacáveis. O homem moderno tem posição polarmente oposta. Domina razoàvelmente (em teoria, pelo menos) as condições materiais e sente-se obscuramente dominado, senão esmagado, pela complexidade de suas relações sociais e de seu mundo cultural. O velho destino e fatalidade em que se refugiavam os antigos se eclipsou e hoje temos o homem, porque ainda convencido de que pode ser senhor do seu destino, inconformado com a nova espécie de tirania social a que se vê submetido, mas, na realidade, fraco, senão impotente.

Essa inconformidade do indivíduo é que marca o sentido da nossa hora e comanda a atitude de engajamento e compromisso do homem contemporâneo. Tôdas as dificuldades de compreender, em seu todo, o complexo processo de transformação social, tôda a sua real confusão de espírito não consegue impedir o estado de vigília, de mobilização e de energia comprometida que marca a mocidade de nosso tempo.

Mesmo aqui, em nossa Bahia, temos a ilustração do nosso tempo. Saímos do relativo descanso, em que vivíamos nas primeiras décadas dêste século, para o tumulto da modernização ou desenvolvimento. Até a Segunda Guerra Mundial, estávamos mergulhados em uma vida reflexa, em que podíamos separar a nossa consciência intelectual das condições materiais da existência do povo, e viver em dois planos, ambos relativamente tranqüilos: o da estagnada resignação dos muitos e o da confortável opulência dos poucos, êstes envolvidos em eventuais e pequenas querelas de política partidária e de luta de interêsses, mas assentes e tranqüilos em sua motivação cultural impregnada de valôres transferidos das culturas intelectuais cuja influência sofriam e que aqui chegavam idealizadas, mais como simples formas de contemplação e de apreciação estética, do que como modos de operação. Cultura se fazia, para êsses poucos, uma forma de isolamento, de distância, de agradável e voluntário exílio do meio inculto e atrasado em que tinham de viver. Êste isolamento tanto mais parecia justo e aceitável, quando, por motivos totalmente diversos, a cultura também na Europa tomara no século XIX, por prolongado período, êste aspecto, de meio de fuga às contradições e horrores do "progresso" causado pelo processo de modernização. A nossa chamada alienação cultural era uma forma exaltada da substituição da vida pela arte, que também na Europa tivera seu momento, com a idéia da cultura como forma de evasão à necessidade da luta e do engajamento nas formas conflitantes, desagradáveis e, de certo modo, intoleráveis da mudança social em curso.

A cultura na Europa era a "salvação", como em outros tempos fôra a religião, para o rebelde inconformado com os sofrimentos e as rupturas do "progresso" industrial, e, para nós, a forma tranqüila de viver como estrangeiro em nosso próprio país atrasado e primitivo.

Tudo isto se alterou e estamos a viver período social que, na Europa, teve seu início na primeira metade do século XlX, quando a radical mudança das condições de trabalho fragmentou a antiga sociedade já mercantil, mas fundamentalmente agrária artesanal, e fêz surgir a nova sociedade industrial, hoje em fase avançada nos países desenvolvidos.

Com o comêço, assim, do processo de industrialização, desapareceu a nossa tranqüilidade social, desapareceu a possibilidade da vida em dois planos, o dos poucos educados e distantes, e o dos muitos, quietos e ignorantes. Rompeu-se o descuidado enleio em que vivíamos e o conglomerado humano todo êle entrou a agitar-se, numa convulsão que não é integração nem unidade mas, em essência, confusão. Embora em outro ritmo e em outro espírito, outro zeitgeist, o mesmo sucedera antes nos países hoje desenvolvidos. Sucede, porém, conosco, quando os conhecimentos humanos são outros, outros os meios de transporte e comunicação e outros os meios de difusão, senão do saber, da informação e da notícia. O nôvo dinamismo social se faz assim extenso, geral e insopitável e outro o estado de espírito do povo. E como a distância cultural entre o País disperso pela vastidão territorial, sem maiores tradições locais, pobre e ignorante, e o País dos poucos localizados nos centros urbanos, sedes do poder e da modesta mas concentrada riqueza, era muito grande, êsses centros vêm sendo tomados como por assalto, crescendo em população de forma a só êste fato bastar para sua desorganização. Assim, o que ocorre não é apenas a tomada de uma nova atitude pelo indivíduo em face de suas condições existenciais em cada um dos dois países em que se divide a nação, mas a mobilização de tôda a população para os centros em que se refugiava o segundo País com sua pequena e tranqüila riqueza. A mudança de atitude do indivíduo se soma à de sua concentração, não nas cidades pròpriamente ditas, à maneira de um crescimento urbano, mas nos centros de govêrno e de poder, que funcionavam no País como metrópoles, no sentido colonizador do têrmo.

Os países colonizadores evitaram êste fenômeno fechando as suas fronteiras à imigração colonial e valendo-se, a posteriori, da independência política de suas colônias. Os países, como o nosso, que faziam a colonização interna, não o poderiam evitar em uma descentralização de poder e de recursos para que não se achavam preparados e a que se opunham certas características de nosso tempo, marcado por outra forma específica de concentracionismo, fundado na amplitude da organização do trabalho e nas facilidades de transporte e comunicação. Com efeito, nossa época é essencialmente antilocalista, tornando extremamente difícil a reprodução da situação localista que as condições históricas anteriores haviam criado, em seu tempo, para os países hoje desenvolvidos. Êste fato cria, sem dúvida, novas dificuldades para a transformação social em que nos vemos envolvidos e acentua a diferença entre o que ocorreu no século dezenove e princípio dêste século em outras partes do mundo e o que ocorre nos países hoje em desenvolvimento, sem falar na outra explosão que é a demográfica, decorrente dos meios de redução da mortalidade. Mobilidade populacional e expansão demográfica produzem uma multiplicação de números nos centros anteriormente organizados do País, que só por si sugere períodos históricos de declínio senão extinção da civilização, chegando a lembrar longìnquamente a invasão dos bárbaros na Europa.

No entanto, há mais de que essas mudanças, por assim dizer físicas, do nosso quadro social. Há mudanças da natureza do conhecimento ou saber agora utilizável, há mudança no comportamento do homem nôvo que as condições atuais estão gerando, há mudança na difusão da informação e na forma de comunicação entre os homens, que nos afetam ainda mais, como educadores, do que o já referido anteriormente, embora aquêle problema do número e da concentração populacional seja por si só enorme.

A mudança da natureza do conhecimento ou saber a ser transmitido é a mais importante para nós educadores. Com a existência dos dois países, o dos educados e o dos chamados ignorantes, a nossa tarefa seria a de formar a elite condutora da vida social, cujos conhecimentos eram dominantemente de deliberação e escolha na ordem política e social, de aplicação de normas e regras profissionais na medicina (altamente individualizada), na atividade liberal de base prática ou jurídica e na engenharia civil ou militar aplicadas. Ao lado disso, procurávamos dar a essa elite uma cultura geral (hoje chamada educação de consumo) para aprimorar-lhes as artes da convivência social e da vida elegante e civilizada.

Para isso, desde a escola primária, acentuávamos os aspectos intelectuais da educação, a ser desenvolvidos e disciplinados na escola secundária, para o ingresso na escola superior de habilitação para as profissões liberais. Tôda a produção e o próprio comércio eram servidos por um saber costumeiro e prático, dispensando, em alto grau, saber pròpriamente escolástico. Essa educação escolar era perfeitamente ajustada às condições sociais dominantes e com ela vivemos até, pràticamente, a década de 30. Na Bahia, podemos dizer que êsse tranqüilo estado de coisas se prolonga pelo menos até 40 senão 50. Sòmente nos últimos anos é que, também na Bahia, a situação começa a sofrer mudança considerável. Rompe-se o isolamento, que era até físico, do Recôncavo, o Estado entra em certo processo de integração regional, diminui a separação entre interior e capital e, pelo menos, as regiões do Nordeste e do Sudeste entram em certa coalescência, restando ainda relativamente isolados o Sul e o Oeste do São Francisco. Mas, não é só a integração geográfica mas também a social, com o incremento da gravitação para Salvador e não já apenas para o Sul do País. Embora o petróleo, por motivo de sua nacionalização, não haja tido a influência que dêle se poderia esperar, o Estado acha-se agora a defrontar um surto industrial, que poderá levá-lo a se recuperar econômicamente e a dar ao baiano uma nova atitude em relação a seu próprio Estado. São aspectos da mudança institucional em processo, que irá determinar a mudança no tipo de educação de que virá a precisar. Já não lhe basta a simples educação de elite que o torne apto à atuação no País mais do que em seu próprio Estado; já não lhe basta a educação de consumo para viver melhor, nas condições em que se acha, mas faz-se necessário uma educação para a produção e a capacitação de cada indivíduo para aplicar, nas formas de trabalho modificadas, o conhecimento científico e técnico dos dias de hoje.

Isto corresponde a uma mudança no espírito e nos métodos de ensino que se inicia desde a escola primária. Primeiro, a educação se faz necessária para todos. Segundo, há uma modificação profunda na qualidade da educação a oferecer. Essa modificação da qualidade da educação se processou com grande dificuldade nos próprios países desenvolvidos. Geralmente, os países da Europa resolveram o problema oferecendo diferentes tipos de educação, em instituições separadas. Entre nós parece que nos encaminhamos para uma instituição única polivalente. Contudo, a marcha é para uma modificação profunda de conteúdo e de método.

O essencial é que o conhecimento já não é apenas necessário para melhor compreender a vida, mas é instrumental para o próprio trabalho, que se vai fazer cada vez mais científico e tècnicamente qualificado. A educação passa a ser fundamentalmente a educação para ensinar a trabalhar desde o nível primário ao superior. As formas de trabalho, sejam as de produção ou de serviço, passam tôdas a exigir treino escolar e saber de tipo intelectual e técnico.

Tal educação vai servir a um aluno desperto em suas aspirações individuais, altamente motivado para encontrar na educação os meios de vencer as dificuldades da competição social e muito mais amplamente informado do que a antiga criança dócil ou preguiçosa dos períodos anteriores. Os meios chamados de comunicação de massa põem-no em contato com uma informação geral que, de algum modo, o desenraíza do seu meio imediato e até de sua família, correspondendo a sua iniciação em uma sociedade mais ampla que a sua imediata, e, sobretudo, mais impessoal.

A comunicação entre o mestre e o aluno, em qualquer dos níveis de ensino, faz-se algo muito mais difícil. Sempre fomos, como educadores, convidados a uma tarefa quase impossível. Para educar, temos de conhecer a criança, o adolescente ou o adulto, temos de conhecer a parcela de conhecimento humano cuja aprendizagem vamos conduzir e orientar e temos de conhecer a sociedade e a cultura que pertencemos. Cada um dêsses setores se fêz hoje todo um mundo de estudos e conhecimentos. Acrescente-se que já não recebemos o aluno como a página em branco que pedagogos antigos imaginavam, mas como um ser humano vitalizado e alerta, com uma massa informe de experiências em sua cabeça, que não recebeu tanto da família e da vizinhança mais ou menos eclipsadas, mas de seus pares, do transístor, do rádio e da televisão. (Caminha-se para tornar o estudo crítico dêsses meios de comunicação um dos pontos fundamentais da educação escolar.) Êsse nôvo aluno, vivo e ativo pela sua participação fora da escola na difusão oral e visual da cultura-ambiente, é um desafio ao mestre, que lhe parece distante e estranho.

Pode-se ver por aí como se fêz complexa e difícil a tarefa de educar. Tudo isso, contudo, é apenas um lado do problema. Ao nôvo aluno, ao seu número multiplicado dezenas de vêzes, ao nôvo saber, à difusão e ao alargamento da informação oral, comercializada e propagandística, junta-se o problema da nova sociedade em formação, junta-se o desaparecimento dos dois países, junta-se a extensão do poder à maioria, junta-se a confusão de desejarem os muitos, os privilégios dos poucos, junta-se, por fim, o desaparecimento da comunidade, pois as novas relações sociais se estabelecem impessoalmente dentro das formas amplas de trabalho especializado e pela comunicação mais direta com centros distantes do que com vizinhos ou com o local de vida. Se nos pudéssemos deter na análise da situação que essa simples enumeração nos deixa entrever, teríamos de concluir com uma imensa admiração pelo homem brasileiro, de que é o professor e o educador um exemplo, que, perdido neste báratro que mal podemos descrever, ainda consegue guardar tantas qualidades e até uma certa fundamental bondade e espírito de conciliação e brandura, sem falar na extraordinária capacidade de alegria, que atinge tantas vêzes a expressão artística.

É que, a despeito de tudo, a despeito da divisão, do abandono e do sofrimento, ou talvez por tudo isto, vem-se formando o que se poderia chamar o povo brasileiro, que não é um aglomerado de pessoas mas uma experiência histórica, uma soma de alegrias e tristezas, de vicissitudes em comum, de disposições, temperamentos e hábitos longamente desenvolvidos, de tudo resultando um estilo, uma forma comum de responder à vida, um tom, um senso de humor, um caráter nacional. É êsse espírito que forma uma nação e talvez êle se encontre mais no povo do que nas elites que nominalmente deveriam tê-lo dirigido. É nesse povo que se veio formando, ao longo de nossa História, por uma experiência que não chegou a ser escrita e que só ùltimamente aparece na literatura moderna brasileira - que vamos encontrar razões para esperar poder sair da confusão que marca a nossa fase de mudança e transformação social.

Contudo, depois dessa esperança a que não falta a nota, antes de fé que de comprovação, o nosso apoio, a base de um esfôrço voluntário, dirigido e consciente, para vencer a crise em que nos debatemos, é a educação, é a escola, é a descoberta, a formulação e a difusão da cultura brasileira, mediante a qual buscaremos pôr sob contrôle a transformação social. A extensão e a qualidade da educação e a incorporação por ela do desígnio nacional, do projeto nacional, daquela alma comum que entrevemos no povo brasileiro, poderá levar-nos a vencer a extensa e árdua conjuntura brasileira e consolidar a Nação, que não é um produto espontâneo mas algo que temos de ajudar o povo a construir e fazer com o material de tôda a História brasileira, somando o exemplo e a experiência, os erros e os acertos dos que já morreram, dos que vivem e dos que irão viver, a fim de prosseguir na obra sempre inacabada de criação, revisão, adaptação e contínua reconstrução do caráter nacional.

E dessa imensa tarefa somos nós os educadores as testemunhas mais vigilantes e ouso dizer os colaboradores mais próximos. A velha metáfora salta-me à pena: o sal da terra. A nação francesa, tão profundamente ligada ao início dessa longa revolução, que está ainda em curso e que vive agora entre nós a sua hora de partida para o desenvolvimento, deu a seus professôres primários a designação de instituteurs, instituidores. Gostaria de ver o nome estendido a todos os professôres, de todos os níveis. Profundamente agradecido à honra que me destes, fazendo-me paraninfo de vossa formatura, permiti-me que vos saúde com êsse nome. . . Sois, como educadores, os instituidores do Brasil ...

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