TEIXEIRA, Anísio. Lei e tradição. Boletim Informativo CAPES. Rio de Janeiro, n.54, maio 1957. p.1-3.

LEI E TRADIÇÃO

Anísio S.Teixeira

A educação se faz no Brasil em obediência a prescrições legais minuciosas, que determinam a organização da escola, os seus currículos e, de certo modo, até os métodos de ensino. Não há uma tradição escolar, no sentido real da palavra, isto é, algo que seja um produto da cultura brasileira e que se imponha e resista à mudança. A tradição, se tradição há, é a tradição da lei. E como as leis vigentes, em sua grande maioria, foram produtos cerebrinos de determinadas pessoas, que detiveram, no período do Estado Novo, o poder legislativo, a tradição escolar brasileira é a tradição da legislação discricionária dêsse período.

Essa "tradição" legislativa se encarnou em uma burocracia, dominantemente federal, e se fêz, em virtude disto, uma "tradição" difícil de mudar, por estar sendo defendida, por assim dizer, pessoalmente, pelos seus detentores.

Agita-se o país em um grande debate, todos se inquietam e afligem com a imensa simulação educacional em que se transformou o sistema educacional da nação, mas nada se consegue mudar, porque a burocracia, que não participa do debate, diga-se de passagem, está vigilante e pronta para impedir qualquer mudança, em nome de uma tradição, que é, na realidade, a lei discricionária do Estado Novo, e de um poder, que é o de que essa lei a investiu e que não deseja perder.

Sociològicamente, essas leis do Estado Novo foram leis restauradoras das condições de poder pessoal, que os doutrinadores do Estado Novo julgavam mais conformes com as estruturas arcaicas da sociedade brasileira e, nesse sentido, seriam tradicionais e conservadoras.

Tôdas as ditaduras e todos os ditadores são profundamente imbuídos da idéia de salvação. Estão sempre a salvar alguma cousa. Na realidade, estão a salvar os seus preconceitos, os seus apriorismos, as peculiaridades de sua visão particular da vida nacional.

Polìticamente, entretanto, tôda essa legislação foi senão uma revolução, uma contra-revolução. O país, com efeito, estava, nas alturas da década de 30, em um grande processo de transformação. A experiência republicana e democrática deflagrara em 30 em uma revolução de nítido sentido político, visando à implantação definitiva de processos democráticos na sua vida política e, em conseqüência, em tôda a sua vida institucional. Foi uma revolução acima de tudo contra o poder pessoal, que, a despeito de nossas instituições republicanas, continuava a prevalecer na república.

Ao lado, pois, do arcaismo da nossa estrutura semifeudal, havia fôrças, no país, capazes de conduzir uma revolução vitoriosa e perfeitamente representativas de uma nova mentalidade, susceptível de inspirar não sòmente uma legislação democrática e republicana que, na realidade, já possuíamos, mas o seu efetivo cumprimento. O Estado Novo foi a restauração contra-revolucionária do país arcaico. Tal restauração se fêz amplamente em todo o país, mascarada até de revolução social, ajudada nisto pelo espírito da época, que considerava tôda intervenção estatal algo de revolucionário - mas foi sobretudo em educação que o espírito de restauração mais se afirmou, colorindo-se até de certo doutrinarismo filosófico, que se poupou a outros aspectos da restauração do poder pessoal.

Não se pode, assim, afirmar que a legislação do Estado Novo seja a legislação tradicional do país. Havia duas tradições em luta. A tradição republicana, com cêrca de 40 anos de experiência, cujas forças novas mas insistentes se fizeram vitoriosas em 30, e a tradição burocrático-personalista herdada da colônia e do império, vencida e destruída. A restauração desta última e mais velha tradição em 37 foi uma contra-revolução.

Essa contra-revolução resistiu tão sòmente - e aqui cabe êsse tão sòmente - oito anos, vencendo novamente o espírito da revolução de 30 em 45, quando se reimplantou a república democrática.

Tão vivaz, entretanto, é a fôrça da burocracia personalista, que ela hoje se faz a representante da tradição no país, em virtude da sua revivescência por oito anos no período do Estado Novo. As dificuldades, como viemos a vêr, da reconstrução educacional brasileira, partem sobretudo da burocracia ditatorial que se instalou na educação.

O que caracteriza o poder absoluto ou totalitário, como hoje se chama, máscara nova de algo de velhíssimo, não é a ausência da lei, mas a amplitude da área de contrôle legal e o uso da autoridade administrativa unipessoal para impô-la. Os reis absolutistas sempre fizeram leis e alguns se diziam seus humildes servidores. O espírito de legalismo sempre foi o característico de tôdas as ditaduras. O que distingue o poder absoluto do poder democrático é a natureza de uma e outra lei e, sobretudo, a área de contrôle que ela - lei - reconhece como legítima, e a forma ou o modo do seu cumprimento.

A legislação do ensino brasileiro é, em essência, totalitária. São imposições federais de planos unitários de organização, currículos e métodos, invadindo a esfera não sòmente da iniciativa individual, reconhecida na Constituição, mas, a das atribuições expressas dos Estados e a da consciência profissional do professor. Sendo uma imposição, tem todos os característicos de cousa artificial, que só poderia ser executada com uma máquina policial eficiente, capaz de tornar a imposição efetiva. Como tal máquina, embora organizada, não tenha funcionado com a devida eficiência, o ensino sob o contrôle total do Estado, no Brasil, se fêz, em grande parte, uma simulação, expandindo-se, sabe Deus como, e cada vez mais, como um processo de validação legal da escolaridade brasileira.

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