TEIXEIRA, Anísio. A lei de diretrizes. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.18, n.48, 1952. p.280-283

A LEI DE DIRETRIZES

A A. B. E. apresentou ao Congresso Nacional o esbôço de uma Lei de Diretrizes e baseado nas conclusões da X Conferência Nacional de Educação, a título de sugestões para a elaboração definitiva da Lei de que já existe projeto oficial na Câmara.

Reconhecendo que tanto o esbôço da A. B. E. quanto o projeto oficial representam esforços muito significativos à busca de um equilíbrio entre as diferentes correntes de opinião do país a respeito do contrôle da educação, desejo, mais do que comentar um ou outro projeto, tecer algumas observações sôbre a atmosfera de cepticismo senão de letargia, que, hoje, se estende sôbre êste capítulo fundamental das atividades nacionais.

Estamos atravessando um período, que se diria de cansaço do espírito brasileiro, na sua luta sem fim por um sistema de educação, com o mínimo de garantia e de eficácia indispensável ao desenvolvimento do país.

Concorrem para isto, primeiro, a descrença em efeitos resultantes de lei, depois a dúvida sôbre a própria possibilidade de se obter uma lei do porte da Lei de Bases e Diretrizes da Educação e, por fim, a convicção de que o Brasil, de qualquer modo, sem leis, sem novos esforços em educação, segue o seu destino e acha o seu caminho.

Ora, é exatamente isto o que desejo pôr em dúvida. Não é verdade que estejamos achando o nossa caminho, sem o procurar. Estamos nos deixando levar, ninguém sabe para onde. Porque não se trata do problema material, que, bem ou mal, tem seus quadros e suas sanções e pode ser resolvido com essa ação intermitente e extraordinária que caracteriza, hoje, a ação brasileira. Trata-se do problema da formação do homem, dos seus hábitos e da sua vontade, da sua qualidade e do seu vigor.

Êste problema não se resolve com "projetos específicos", como nos pedem hoje as comissões técnicas e racionalizadoras.

Êste problema se resolve com a criação de uma "atmosfera", de um "clima", de um "estado de espírito", capazes de gerar a determinação de propósitos e de esforços indispensáveis à renovação humana.

Por que tudo isto se tornou impossível e até impensável?

Por que chega a ser ridículo dizer-se que a luta em que estamos empenhados exige uma mudança de vontade, uma disposição de espírito nova, um reconhecimento da situação de dificuldades e de crise capaz de fazer deflagrar o esforço de vontade indispensável para vencer e superar a crise? Será que estamos, no fundo, convencidos da inevitabilidade de nossa desagregação? Será que julgamos não ser possível a cooperação e o esfôrço no regime democrático?

Prefiro uma explicação mais simples. Estamos, inegàvelmente, em um período de progresso material e de igualização de oportunidades econômicas. As nações já civilizadas detêm as condições humanas para êsse progresso. Tudo se resume, em última análise, em crises financeiras, pois nem chegam a ser realmente crises econômicas. O homem está formado, tem sólidos padrões de esfôrço e de vontade, agitando-se inquieto, em face de dificuldades oriundas dos programas de defesa em curso e de peculiaridades do nosso regime mundial de moedas. Êste, numa supersimplificação, o problema dos países já civilizados, dos países que fizeram a sua integrarão social e educaram tôda a sua população.

O que cria, no Brasil, aquela atmosfera de cinismo e desalento, de que falamos, no campo das grandes tarefas normais de formação do país, sobretudo no campo da educação, é a convicção de que, como nos demais países civilizados, o nosso problema é também puramente financeiro e econômico. Daí a relativa maturidade com que tratamos os aspectos materiais do nosso progresso, e o êxito, embora moderado, de certos projetos industriais. Quando muito, sentimos algumas dificuldades técnicas que suprimos com a cooperação estrangeira, felizmente disponível, para êsse tipo de empreendimentos.

Nenhum dêsses projetos resolverá, porém, o problema da formação do brasileiro, seja lá qual fôr o estágio em que se encontre, ou melhor, seja lá qual fôr o local em que esteja. Porque o brasileiro muda segundo o processo de seu meio, mas, muda de trajes, de tipo de Iazer, de comportamento exterior, conservando a mesma atitude de descuido, de pouco esfôrço e pouca eficiência, de imprevisão, de irresponsabilidade, de falta de perspectiva e de desorientação, que decorre de não se sentir o autor do progresso, mas o felizardo que o desfruta. O progresso "acontece" para o brasileiro, e não sendo êle quem o faz, o inteligente é aproveitar-se do mesmo e explorá-lo até que acabe ou leve à breca.

Essa "mentalidade" mineradora a respeito da própria civilização e do próprio progresso é o resultado de causas históricas diversas, mas só poderia ser corrigida por educação e muita educação. Ora, é exatamente isto que não fazemos. Assim como se "acha" o progresso, assim também, julgamos, se "acharão" os homens. "Quem é bom já nasce feito". Tudo é uma questão de chance e de sorte.

Somos uma civilização de garimpeiros, desde o incorporador de prédios em Copacabana, o industrial feliz de S. Paulo, o comerciante venturoso na especulação, o agricultor miraculoso do Paraná, o funcionário jeitoso de letra O, até o imigrante de sorte que conseguiu um lugar na favela e uma série de biscates rendosos.

Fora dêsse grupo, vegeta, sólido, resignado, triste e digno, o grande bloco mudo dos desamparados do interior. Mas, até lá, pelo rádio, pelo cinema e pelo jornal, vai chegando o ruído da grande feira nacional. E, num movimento lento mas constante, êsse grande bloco começa a se mover para qualquer coisa como uma invasão pacífica e vigorosa da grande área da especulação e do êxito. Essa ocupação do Brasil civilizado pelo não civilizado poderá produzir, está produzindo, tôda uma série de complicações.

Êsses dois Brasis - o feliz e o desgraçado - podiam coexistir e, mais, podia o primeiro explorar o segundo, enquanto estivessem separados pelo silêncio do analfabetismo e da distância social e material. Mas o rádio e o automóvel vêm sistemàticamente acabando com êsses dois abismos.

Aproximados os dois grupos, o atrito será inevitável, com a destruição de padrões, por um lado, e, por outro, o congestionamento das cidades e dos locais felizes. Será uma "corrida para o ouro" e o país se verá, então, transformado em um imenso acampamento onde, como lei suprema, imperará o "salve-se quem puder".

Não será que já estamos vendo os sinais de tudo isto? A emancipação do interior vai-se dar pelo esclarecimento oral que lhe leva êsse jornal dos analfabetos que é o rádio. O automóvel fará o transporte. E um vago senso da iniqüidade da sorte, por um lado, e da viabilidade de uma mudança dessa mesma sorte, por outro lado, fará o resto. O resultado será a diminuição da produção de subsistência e o aumento do seu consumo. Duas, fôrças que se somarão para as aflições e a angústia dos venturosos centros de concentração da população.

Poderá êsse problema ser resolvido num simples projeto, ou empreendimentos materiais? Parece-me de todo impossível. O problema de educação popular para o esclarecimento e a formação do homem comum, de educação média para o produtor qualificativo e as ocupações de serviço e direção, de educação superior para as elites profissionais, técnicas e científicas se, impõe como medida para dar estabilidade e direção às grandes mudanças que estão em marcha.

Temos de disciplinar o justo anseio das populações do interior despertadas para o progresso, provocando-lhes a vontade de construir êsse progresso em substituição ao desejo de fugir para a sua miragerm. Temos de preparar as populações das cidades para produzirem mais e consumirem menos, a fim de que os recursos se distribuam mais equitativamente entre os grupos a serem incorporados à civilização e os pequenos grupos felizes, que, anteriormente, monopolizavam os benefícios da prosperidade brasileira. E tem os de preparar as equipes de homens de cultura de nível superior para planejar, dirigir e executar o progresso nacional.

Nada disto se pode fazer sem um grande plano de educação. Ao lado dos problemas chamados de base do Brasil, nenhum é mais de base e de fundamento do que êste. A sua solução tem de constituir o clima dentro do qual se moverá o progresso brasileiro.

A lei de bases e diretrizes, ora no Congresso, ou o projeto da ABE podem constituir o grande motivo para início dêsse "grande debate", que é o debate da civilização brasileira. Temos que educar para poder organizar o progresso nacional. Educar, hoje, não é problema remoto e mediato de outras épocas, mas a questão urgente por excelência, depois que a sua solução passou a ser a condição essencial de ordem, de estabilidade e de paz do Brasil.

A Constituição de 46 abre oportunidade para êsse grande debate. Esqueçamos, um pouco, as nossas divisões e separações em pequenas questões de filosofia de administração, façamos um ato de fé no brasileiro, examinemos, com olhos de observação, o panorama educacional brasileiro, discutamos à luz dessa observação o que mais nos convenha, e demos ao país uma lei ampla e corajosa, mais de poderes e faculdades do que de dificuldades e restrições, para que tôdas as fôrças, privadas, locais, estaduais e federais, se possam lançar à grande tarefa comum de educar o brasileiro para a nova era, que já se iniciou, e que será a da vertebralização dêste país ou a da sua crescente desagregação, conforme sigamos essa orientação ou a do criminoso laisser faire em que nos estamos deixando arrastar - ANíSIO TEIXEIRA (Formação, Rio).

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