TEIXEIRA, Anísio. O problema de formação do magistério. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.46, n.104, out./dez. 1966. p.278-287.

O Problema de Formação do Magistério*

Anísio Teixeira* *

1. Dualismo da Sociedade Brasileira e Conseqüente Dualidade Educacional

O fato dominante nos últimos cinqüenta anos de vida brasileira, com referência à educação, é a expansão e fusão gradual dos dois sistemas escolares que serviram ao país em seu dualismo orgânico de duas sociedades, primeiro de senhores e escravos, depois de senhores e povo, e que se iriam integrar progressivamente na sociedade de classe média em processo.

Reflete-se na educação êsse dualismo substancial, com a manutenção, desde a independência, de dois sistemas escolares. Um, destinado à formação da elite, compreendendo a escola secundário acadêmica e as escolas superiores, mantido sempre sob o contrôle do govêrno central e, rígida e uniformemente, impôsto a tôda a nação. Outro, destinado ao povo e, na realidade, à classe média emergente, compreendendo escolas primárias e escolas médias vocacionais, sob o contrôle, desde 1834, dos governos provinciais ou locais e mais tarde, com a federação, dos governos dos Estados. Os dois sistemas eram separados e independentes, para o que contribuía a sua subordinação a diferentes áreas do poder público. O sistema de elite era federal e o sistema popular ou de classe média, estadual.

Além das diferentes filosofias dos dois sistemas de educação de classe, havia a diferença política, pela qual o sistema da classe média era estadual e de manutenção pública e o dos senhores (squireocracy) de contrôle nacional mas de manutenção dominantemente privada. O Govêrno Central mantinha uma escola secundária padrão ou modêlo e umas poucas escolas superiores, às quais se adicionavam escolas privadas, sob o regime de concessão do poder público e equiparadas aos padrões das instituições públicas. Os sistemas estaduais, pelo contrário, eram fundamentalmente de manutenção pública. Nestes sistemas públicos se encontravam as escolas normais de formação do professor primário.

Transferida assim às províncias, primeiro, e depois aos Estados, a obrigação de manter o sistema público de educação, está claro que êste se iria expandir mais fortemente e, gradualmente, tornar-se o sistema de educação da classe média nascente, o que logo ocorreu com o ensino primário e com o ensino médio, sobretudo o feminino, por representar para as mulheres as primeiras oportunidades de educação. As escolas vocacionais femininas e, entre elas, as escolas normais, fizeram-se, em certos Estados, escolas de acentuado prestígio social. Sòmente as escolas vocacionais masculinas destinadas a ocupações manuais ficaram marcadas por manifesta discriminação social.

Os sistemas públicos estaduais não se restringiram apenas a êsse ensino limitado ao seu contrôle, mas expandiram-se incluindo o ensino secundário acadêmico e até escolas superiores, mediante concessão federal, ficando suas escolas sob regime de equiparação, como era permitido ao ensino privado.

Por outro lado, o Govêrno federal, além das escolas de seu contrôle exclusivo, secundárias acadêmicas e superiores, resolveu manter estabelecimentos de nível médio de caráter vocacional. Quebrou-se, dêste modo, a rígida separação entre os dois tipos de govêrno quanto à manutenção dos dois sistemas. Tanto o govêrno federal como os governos estaduais mantinham escolas dos dois sistemas, o que iria facilitar sua gradual fusão e integração.

Até a primeira guerra mundial, a relativa estagnação econômica da sociedade brasileira pôde mantê-la dentro dêsse dualismo educacional, com o ensino público primário para uma substancial percentagem da população (pràticamente para tôda a classe média nascente), o ensino médio vocacional e, dentro dêle, as escolas normais para as mulheres de classe média que começavam a desejar trabalhar, e o ensino secundário acadêmico e o superior para a elite e pequena parcela da classe média, devido à existência daquelas poucas instituições públicas dêsse ensino. O povo, pròpriamente dito, não chegava a ter ou a poder freqüentar a escola, mas educava-se pela vida e suas formas de trabalho elementar. As escolas vocacionais masculinas davam sua pequena contribuição ao trabalho qualificado, anteriormente de tipo artesanal e com sistema próprio de aprendizado direto no ofício.

É esta situação que entra em crise após a primeira guerra mundial, com o encerramento da fase semicolonial de produção de matéria-prima e importação de bens de consumo e o início do processo de industrialização e modernização da sociedade brasileira. Retomou-se o fervor do início da república pela educação do povo e pela sua formação para o trabalho especializado de sua nova fase de vida.

O aspecto que assumiu, entretanto, o movimento foi o de expandir as oportunidades educativas a maior número de pessoas do modo que fôsse possível. A educação seria um bem absoluto, importando, acima de tudo, distribuí-lo mais amplamente, conforme poderemos ver na análise que se segue.

2. Popularização do Ensino Primário

Na década dos 20, desperta um dos governos estaduais - muito significativamente o do Estado de S. Paulo, o mais avançado no processo de industrialização - e promove reforma radical do ensino primário, a fim de estendê-lo a tôdas as crianças e não apenas à camada social média e alta.

A reforma reduziu o curso primário, em primeira tentativa, a dois anos e, finalmente, em face de crítica e protestos, a quatro anos de estudo nas cidades e três anos na zona rural e, na década seguinte, a mudança passou a refletir-se na formação do magistério primário, com a criação das chamadas escolas normas regionais, com um curso de formação do magistério reduzido apenas ao primeiro ciclo do curso secundário.

Afastava-se o país do modêlo anterior de escolas primárias com cursos elementares e complementares de 6 a 8 anos de estudos e escolas normais com o seu curso equivalente, em extensão, ao da escola secundária, passando a adotar uma política de educação popular reduzida, com professôres também de preparo reduzido.

Em países de cultura transplantada, como são os da América Latina, é curioso observar o reflexo de idéias em curso no desenvolvimento educacional europeu. Podemos, no Brasil, acompanhar as fases do debate educacional que dominou, na própria Europa, o desenvolvimento da educação.

Êsse debate compreendia a disputa e conflito entre três correntes diversas e mesmo opostas, representadas, para usar a terminologia de Raymond Williams, pelo "educador público", que defendia para todos uma educação completa e adaptada à nova sociedade industrial e científica; pelo "industrial trainer", que se batia pelo treino para o nôvo trabalho industrial, sem outras considerações e, por fim, pelos "velhos humanistas", que julgavam se deveria voltar aos métodos de educação clássica, única suscetível de formar o homem, habitualmente entendido como o "gentleman".

Essas posições refletem-se no Brasil. O "educador público" domina, no período da implantação da república, as primeiras décadas do nôvo regime, quanto à filosofia do ensino primário, normal e vocacional dos sistemas estaduais de educação; os "velhos humanistas" dominam no ensino secundário acadêmico e no superior do sistema federal de educação (foi mantido o latim, como língua fundamental de educação, até os meados do século XX); o "industrial trainer" é a influência dominante no movimento iniciado da década dos 20 em S. Paulo, a que venho chamando de "popularização" do ensino, com o programa mínimo de educação primária e o relêvo em educação vocacional ou técnica para os níveis posteriores.

A idéia de treinamento para o trabalho, aliada à extensão do ensino a todos, resultou, na prática, em um programa de menos educação a maior número de alunos. Além da redução de curso primário, logo surgiu, para ampliar a matrícula, a inovação dos turnos escolares, ou seja, o funcionamento da escola em vários turnos, com redução do dia escolar, e, por fim, a redução do período de formação dos professôres. Era a chamada democratização do ensino, que passou a ser concebida como a sua diluição e o encurtamento dos cursos. Longe iam as idéias dos primórdios da República, em que se sonhava um sistema escolar estendido a todos, mas com os mesmos padrões da educação anterior de poucos. A despeito da tremenda expansão do conhecimento humano, um paradoxal imediatismo escolar reduziu a duração dos cursos e do dia escolar, a fim de oferecer a maior número de alunos uma educação primária reduzida ao mínimo. A essa expansão do ensino primário, pela compressão dos cursos, seguiu-se a expansão do ensino médio e do secundário acadêmico, pela improvisação de escolas secundárias sem formação adequada de professôres. A filosofia de educação mínima a maior número de alunos estendeu-se do ensino primário aos demais níveis do ensino, com o que se iniciou o processo de ruptura da dualidade do sistema histórico de escolas para a classe popular e escolas para as classes média e superior.

3. A Dualidade do Sistema Escolar e a Formação do Magistério

O movimento de popularização do ensino primário foi, dêste modo, o início de uma expansão educacional em todos os níveis, que iria progressivamente destruir a dualidade do sistema educacional brasileiro. Até então, essa dualidade, que se institucionalizara com o Ato Adicional à Constituição do Império em 1834, pelo qual se atribuirá a educação primária às províncias, e a secundária e superior ao Govêrno Central, fôra substancialmente mantida. A educação brasileira compreendia, conforme já referimos, dois sistemas: o de escolas secundárias acadêmicas, preparatórias para a escola superior e escolas superiores, subordinado ao contrôle federal e destinado às classes média e superior; e o da escola primária, seguida de escolas vocacionais, subordinado ao contrôle estadual e destinado às classes média inferior e trabalhadora. O primeiro formava a chamada elite nacional, o segundo, os quadros de ocupações de nível médio e inferior. Os dois sistemas eram separados e independentes. Embora, como também já referimos, a escola primária e a escola normal tivessem, devido à própria escassez e à composição social do magistério primário, conquistado prestígio de escolas de classe média, a dualidade, pelo menos legal, dos dois sistemas, conservou-se até a década dos 20. Com a redução do ensino primário a 4 anos de estudo e a legislação federal de 1930 fixando o início do curso secundário aos 11 anos de idade, os dois sistemas encontraram um ponto de interseção.

À expansão do ensino primário promovida pela redução do curso seguiu-se a expansão do ensino secundário acadêmico por pressão das classes sociais emergentes da sociedade em desenvolvimento. Essa expansão se efetivou pela improvisação de escolas privadas, a que o Govêrno Federal concedeu a necessária equiparação, rompendo assim a política de limitação dêsse ensino aos poucos destinados a constituir a elite social. O currículo continuava de elite, uniforme, rígido e dificultoso, mas as facilidades de equiparação reduziram êsses obstáculos a simples formalidades a serem nominalmente atendidas. Tornando assim fácil a sua expansão, o sistema federal de ensino, - sem perder os privilégios de promoção social, passou a estender-se, incluindo os próprios sistemas estaduais, que buscaram também equiparar-se ao sistema privilegiado, ou seja, o federal. Essa fusão dos dois sistemas processou-se lenta e gradualmente, tendo sido estimulada pela maior centralização de podêres no govêrno federal, durante o período ditatorial que, pràticamente, se prolongou de 1930 a 1946. O sistema estadual ficou, em essência, reduzido ao ensino primário, passando o sistema pós-primário ao contrôle legal do govêrno federal.

A escola normal de formação do magistério primário foi a que encontrou maiores dificuldades para se deixar assimilar pelo sistema federal, por não manter êste sistema escolas dêsse tipo. Como porém o seu curso era pós-primário e se estendia por sete anos, as escolas normais equipararam o ciclo inicial de 4 anos ao primeiro ciclo ginasial de contrôle federal, mantendo vocacional apenas o segundo ciclo. Êste ciclo vocacional foi então considerado como paralelo aos cursos técnicos das escolas federais, embora estas não mantivessem essa modalidade de curso. Como a pressão social para a fusão dos dois sistemas continuasse forte, uma lei federal em 1946, promulgada no período ditatorial, revogou o dualismo educacional, dispondo indiscriminadamente sôbre todo o sistema educacional, desde o primeiro até o superior. Na década de 50, uma lei federal completou a integração, dispondo sôbre a equivalência de todos os cursos médios, que passaram a dar direito a acesso ao ensino superior. Neste grupo de cursos médios, incluía-se o curso normal. Estavam, dêste modo, dado o passo para a sua descaracterização como curso vocacional de habilitação ao magistério primário. Êste curso passa também agora a ser uma modalidade de curso para acesso à universidade (Faculdade de Filosofia). Perde-se a antiga unidade de propósito e a perfeita caracterização de escola vocacional. O mesmo sucedeu também com as escolas normais regionais de 4 anos de estudos, que adaptaram seu currículo ao do primeiro ciclo do curso secundário, considerando-se equivalentes a ginásios.

Deu-se, na realidade, uma integração dos cursos normais no sistema de educação secundária do país, fazendo-se as escolas normais um dos modos de educação secundária para acesso ao ensino superior. Era natural que se deixassem dominar mais pelo caráter de educação preparatória do que pelo da formação vocacional do mestre, pois os alunos já agora desejavam também a nova oportunidade que a mudança lhes acenava, além da habilitação no magistério.

A despeito disto, contudo, as escolas normais não passaram ao contrôle do govêrno federal, que não dispunha de escola padrão dêste tipo a que as escolas estaduais pudessem ser "equiparadas", continuando a sua fiscalização no âmbito estadual, o que, cumpre acentuar, lhes conferia a liberdade de constituição e organização regional, sem a rigidez e uniformidade do regime de concessão e autorização federal.

Esta circunstância, que poderia parecer favorável, iria, devido à pressão pela integração dos dois sistemas, dar lugar à proliferação dessas escolas, menos pelo propósito de preparar professôres do que pelo de oferecer uma modalidade de curso secundário equivalente ao do curso padrão federal, cuja demanda se fazia cada vez mais incoercível ante a aspiração dominante por ensino que levasse ao acesso às escolas caracterizadamente de classe superior, ou seja, à universidade. A redução do curso da escola primária, por outro lado, também concorria para criar êsse ímpeto de expansão, pois o curso primário se fizera completamente inadequado ao preparo para as ocupações mais elementares. Tal redução não se deveria ter feito sem o complemento da transformação do curso secundário de primeiro ciclo em curso de cultura comum, destinado a dar livre acesso ao aluno primário, para os estudos necessários à qualificação para o trabalho em uma sociedade em vias de industrialização. O dualismo anterior do sistema baseava-se numa escola primária de sete e oito anos de estudo, suficiente para o preparo básico. Agora, terminado o curso primário deficiente de apenas 4 anos e meio dia escolar de dois turnos, o aluno se defrontava com o curso secundário, dominantemente acadêmico e necessàriamente seletivo. Êste caráter seletivo o tornou particularmente atraente, desenvolvendo-se tôda sorte de pressões sociais para sua expansão de qualquer modo e por todos os meios. Uma das formas que tomou essa expansão foi a da proliferação dos cursos normais de primeiro ciclo, o que se confirma com o exemplo do Estado do Paraná, que, por um só ato, criou certa vez quase uma centena de cursos normais regionais.

Torna-se necessário recordar que, conforme já referimos, na sistemática da educação brasileira, só a escola primária era dominantemente pública e, na primeira fase da vida republicana, isto é, até 30, também a escola normal e as escolas técnico-profissionais. Quanto ao ensino secundário acadêmico, sob contrôle federal, de caráter eminentemente seletivo, destinado à elite social, o Estado se limitava a manter uma ou poucas escolas públicas, consideradas "modêlo", deixando livre à iniciativa particular a sua expansão em instituição privada sob fiscalização federal.

Com a integração do ensino normal a essa sistemática do ensino federal, a expansão dêsse ensino no campo privado acompanhou a tendência já estabelecida de atribuir à escola pública a função de simples modêlo para a expansão privada. As escolas privadas de ensino normal entraram a proliferar, do mesmo modo por que havia proliferado o ensino secundário. Essa proliferação se fêz mais fácil na medida em que seu ensino passou a ser de tipo acadêmico, dispensado aparentemente equipamento e especialização dos professôres. A adoção do currículo federal pelas escolas normais levava-as a se considerarem "acadêmicas", o que, numa grosseira corrupção do conceito de acadêmico, significava ensino verbalístico por meio de simples memorização de textos.

4 . Expansão Educacional e Consciência Nascente da Importância da Formação do Professor

As pressões da sociedade em desenvolvimento, desinteressada das velhas preocupações do "humanismo clássico" e, igualmente, das lúcidas antecipações do "educador público", preocupado êste, sobretudo, na elaboração de um humanismo científico, conduziram o país a buscar no "industrial trainer", conforme já referimos, uma liderança pragmática e de certo modo neutra para a sua expansão educacional.

O imediatismo dessa posição acabou por justificar, além da escola primária de 4 anos, a escola média improvisada, o ensino superior de segunda ordem em intensa proliferação, e a descaracterização do ensino vocacional de formação do magistério.

Contudo, não nos iludamos. Apesar da expansão, o sistema escolar continua a se destinar a poucos, que, por isto mesmo, continuam "privilegiados", embora a escola já não seja a mesma da velha educação humanista, que visava a prepará-los apenas para continuarem a compor a elite nacional. Adotou-se, assim, a política do "industrial trainer", sem abandonar as "vantagens" do sistema humanístico e seletivo anterior.

Sob o impulso dessas fôrças de expansão, desapareceu, pràticamente, o dualismo educacional. O sistema educacional integrou-se e expandiu-se tremendamente. Entre 7 e 14 anos mais de 9 milhões de crianças freqüentam a escola primária, cêrca de 2 milhões a escola média e a matrícula do ensino superior também cresce aceleradamente.

Nesta situação, sobremodo confusa, o problema da formação do magistério faz-se o problema máximo da educação brasileira.

Sòmente pela reformulação integral dos moldes e padrões da formação do magistério será possível injetar na expansão desordenada do sistema escolar as fôrças de revisão, reforma e correção que se impõem para a sua gradual reconstrução.

Será o nôvo professor que irá dar consistência e sentido às tendências de popularização da educação primária e do primeiro ciclo da escola média; que irá tornar possível e eficiente o curso de colégio, com suas preocupações de dar cultura técnica, cultura preparatória ao ingresso na universidade e cultura geral de natureza predominantemente científica; e que irá preparar a transformação da universidade para as suas novas funções de introduzir a escola pós-graduada para a formação dos cientistas e a formação do magistério superior, tendo em vista as transformações em curso no sistema escolar, sem esquecer que lhe caberá, inevitàvelmente, uma grande responsabilidade na difusão da nova cultura geral que a atual fase de conhecimentos humanos está a exigir.

Sòmente agora começa a surgir a consciência de que a chave para essa expansão da educação formal, cuja necessidade para o desenvolvimento econômico, social e político acabou por ser reconhecida, está num grande movimento de formação de professôres, em nível superior, para todos os níveis de ensino, inclusive o primário, de um sistema contínuo de educação, que vai da escola primária à universidade.

Considerados os desenvolvimentos recentes, não faltaram esforços para ampliar a formação de professôres primários, bem como certa consciência da necessidade de aperfeiçoamento dos professôres improvisados que a expansão determinara e, às vêzes, embora acidentalmente, ensaiou-se a formação especializada de professôres de ciência. A percepção contudo de que urgia não sòmente criação de oportunidades esporádicas de treinamento, mas também a reformulação de todo o problema de formação do magistério, em face da transformação educacional, desde a fase primária até a superior, não chegou a se efetivar. Sobretudo, não se percebeu que a formação do professor secundário teria de acompanhar, senão antecipar, a formação do professor primário e, na formação do professor secundário, a universidade teria de assumir a responsabilidade principal. Com esta nova função dominante, sem perder as suas preocupações pela formação dos profissionais liberais e pelas novas ocupações de caráter técnico e científico da sociedade em vias de modernização, a universidade teria de se fazer a instituição, por excelência, de formação e professôres, primeiro dos seus próprios, pela escola pós-graduada, e depois dos professôres das escolas secundárias e das escolas normais para a grande expansão e conseqüente mudança, radical mudança, do sistema educacional. Não aos ministérios de educação, mas às universidades, caberia o estudo e a crítica dos sistemas escolares em expansão, a formação em massa dos professôres necessários para conduzir a reformulação do ensino médio, e dos professôres do ensino normal para a preparação em grande número do professor primário.

Dominava, entretanto, a universidade brasileira a tradição arraigada de pura e simples formação do profissional liberal. O médico, o advogado e, por último, o engenheiro, eram suas preocupações maiores e quase exclusivas. No mesmo espírito, outras escolas se lhe acresceram, mas sempre com o mesmo caráter de formação profissional.

5. As Faculdades de Filosofia e a Formação do Magistério

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criada na década de 30 exatamente para enfrentar êsse problema de diversificação e expansão dos sistemas escolares, deveria transformar-se na grande escola de formação do professor e de estudo dos problemas de currículo e organização do nôvo sistema escolar. Mas a duplicidade dos seus propósitos de preparar o professor secundário e, ao mesmo tempo, os especialistas e pesquisadores das diversas disciplinas, sem falar no propósito implícito de difundir a cultura geral, antes reservada ao ensino secundário acadêmico e seletivo, tragado na voragem da expansão tumultuosa dêste ensino, levou a Faculdade de Filosofia a buscar sua distinção no preparo dos especialistas e pesquisadores em ciências e humanidades, ficando residual a função do preparo dos professôres secundários. Pouco importa que a maioria das Faculdades de Filosofia não cheguem senão a essa função residual. A gravidade está em que esta função não é a que atribui às Faculdades de Filosofia a sua distinção e o seu orgulho. O espírito de estrita especialização acadêmica que as caracteriza não se coaduna com a formação do nôvo professor secundário para o primeiro ciclo de ensino médio de cultura comum, nem mesmo para o professor do segundo ciclo de ensino médio de caráter técnico, ou preparatório, e sòmente em pequena parte, de cultura geral acadêmica.

É fácil perceber o sentido que orientou o desenvolvimento das Faculdades de Filosofia. Criada, inicialmente, com o propósito de alargar o campo dos estudos universitários, além das áreas restritas da formação do profissional liberal, deveria ela ministrar a cultura básica para os cursos profissionais, formar os professôres de tipo acadêmico e preparar os "scholars" das suas respectivas disciplinas. Vê-se que sua conceituação não compreendia a formação do professor secundário para a nova escola secundária moderna, estendida a todos os alunos e compreendendo uma variedade de currículos destinados à cultura comum, ao treinamento para o trabalho de nível médio e só parcialmente à formação preparatória acadêmica para a universidade.

O melhor que ela poderia fazer seria preparar aquêle professor secundário de cultura acadêmica, o que, de algum modo, estará fazendo com os alunos que não se revelem dotados para a especialização alta, graças à qual se farão candidatos ao magistério superior. Por terem nascido marcadas por êsse espírito acadêmico de cultura especializada nas diversas disciplinas, e não pelo espírito vocacional pròpriamente dito, as Faculdades de Filosofia não se revelaram capazes de ministrar a cultura básica para as profissões liberais nem a cultura dominantemente eclética e prática para os novos cursos secundários. Igualmente, não se revelaram capazes de preparar o professor para os cursos normais, de tipo vocacional, reduzindo-se neste campo à formação em certa especialização pedagógica de validade duvidosa para as disciplinas de pedagogia das escolas normais, recebendo os demais professôres da escola normal preparo especializado de tipo acadêmico.

Veja-se bem que estou usando para o têrmo acadêmico o conceito de ensino do saber pelo saber, apto a desenvolver uma certa capacidade para a futura especialização. A cultura acadêmica forma o "intelectual", o que representa hoje uma especialização, sem dúvida também vocacional, embora se prefira considerá-la cultura geral.

Nem o curso secundário de hoje, nem o curso normal, são cursos acadêmicos, mas vocacionais, práticos e de cultura aplicada. O curso secundário, quando preparatório para a universidade, pode assumir o caráter estritamente acadêmico para os alunos que se destinem à especialização acadêmica.

O caráter, pois, que as Faculdades de Filosofia assumiram no curso de sua evolução, afastou-as do estudo e da preocupação pelos problemas do magistério secundário e do primário e limitou-as à formação, quando muito, dos especialistas nas disciplinas literárias e científicas, tendo mais em vista o ensino superior do que o ensino nas escolas de cultura prática de nível secundário ou cultura vocacional das escolas normais.

Os departamentos de educação, nessas escolas de filosofia, por terem propósitos vocacionais, são, porque menos acadêmicos, os de menor prestígio, havendo pressão para se fazerem também departamentos acadêmicos para ensinar pedagogia.

Resultaram de tudo isto, como dissemos a princípio, a deterioração generalizada das escolas normais e a confusão de objetivos da escola secundária, transformada, sob o impacto de sua expansão, em escolas de cultura comum e prática, mas conservando seus professôres de formação vagamente acadêmica. Uma das conseqüências talvez inesperada dêsse estado de coisas é a complacência com que o país recebe o fato de serem em quase 50% leigos, ou seja, não diplomados, os professôres primários, e não chegarem a 30% os professôres secundários diplomados pelas Faculdades de Filosofia.

A situação está a exigir profunda transformação dos cursos das faculdades de filosofia, pela adoção de currículos especiais para a preparação da grande variedade de professôres secundários do 1º e 2º ciclos e pela criação da escola pós-graduada de educação para a formação pedagógica, após os cursos de bacharelado, do professor já para os cursos médios, já para as escolas normais. Estas escolas normais deverão constituir estabelecimentos de nível de colégio, com curso de 3, 4 ou 5 anos de estudo para a formação do professor primário do curso elementar de 4 anos e complementar de 2 anos, ora em vias de serem instituídos. Impõe-se que se façam escola tìpicamente vocacionais, que integrem os sistemas estaduais de educação, dentro de sua tradição original.

Êste é hoje o problema máximo da reconstrução educacional do Brasil. Não se trata de mais uma reforma por ato legislativo, tão do gôsto do país, mas de longo e difícil processo de estudo, revisão e reformulação do conteúdo dos cursos, de elaboração de novos livros de fontes e de texto, de novos tipos de currículos e de descoberta dos métodos novos exigidos para a eficiência dos novos e variados programas, que a expansão desordenada e acidental do sistema escolar, hoje integrado, criou e que se está tentando executar sem os instrumentos necessários e sem a formação adequada dos novos professôres para a escola primária reduzida ao nível elementar, e para a escola média compreensiva e complexa, com os seus cursos diversificados de educação comum, educação vocacional e educação preparatória à universidade.

A unificação do sistema educacional brasileiro encontrou na Lei de Diretrizes e Bases o seu reconhecimento, pois outra coisa não significam os dispositivos que transferem aos Estados a competência de organizá-lo e administrá-lo em sua totalidade, ficando o sistema federal limitado à ação supletiva nos estritos limites das deficiências locais. Sòmente nos Territórios ficou com o Govêrno Federal a atribuição de organizar todo o sistema público. Como o sistema de ensino superior vem constituindo a parte dominante da ação supletiva federal, a atuação dêsse sistema federal sôbre o sistema dos Estados deve manifestar-se pela formação do professor de nível médio e superior.

Estando as escolas normais de formação do magistério primário ainda em nível médio, a sua organização, administração e fiscalização competem aos Estados, ficando-lhes assegurado o caráter regional, sem perda de seus aspectos nacionais, pela formação em nível superior do professor de curso normal.

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