TEIXEIRA, Anísio. Falsa elite. Boletim Informativo CAPES. Rio de Janeiro, n.60, nov. 1957. p.1-2.

FALSA ELITE

Anísio Teixeira

Tôda sociedade tem seus processos instintivos de defesa e de conservação. O Brasil, com o país agrário e pobre, havia desenvolvido um sistema de educação muito engenhoso para a sobrevivência de suas classes altas. Com a decadência do latifúndio, a fronteira que se abria às famílias empobrecidas era a da educação para as funções do Estado, a política e as profissões liberais. Um sistema público, universal e gratuito de educação não conviria, pois abriria as portas a uma possível deslocação das camadas sociais. Uma escola pública primária gratuita, mas pouco accessível, com espírito marcadamente de classe média, poderia servir às classes populares, sem com isso excitá-las demasiado à conquista de outros graus de educação. Como válvula de segurança, escolas normais e técnico-profissionais se abririam à continuação dos estudos pelos mais capazes. No nível médio, pois, criar-se-iam dois tipos de escola: o secundário ou propedêutico aos estudos superiores, a ser ministrado em escolas particulares pagas e destinado às classes de recursos suficientes para custear, nesse nível, a educação dos filhos e a escola normal e a técnico-profissional, em número reduzido, públicas e gratuitas, para o povo. Criados tais óbices para o acesso ao ensino superior, poderia o mesmo ser público e gratuito. E foi o que se fêz, ficando dêste modo assegurada às classes dominantes mas em parte já empobrecidas do país a oportunidade de dar a seus filhos a educação necessária às carreiras burocráticas e liberais, com que as boas famílias brasileiras contavam superar as dificuldades da desagregação da classe agrária.

Tivemos, assim: o ensino primário gratuito mas de oportunidades reduzidas; o ensino secundário pago, para servir de estrangulamento a qualquer rápido desejo generalizado de ascensão social; e o ensino superior gratuito, para atender aos filhos dos "pobres envergonhados" em que se transformou a elite rural do país. Com êsse sistema, assegurou-se a estabilidade social e começamos a marcha para a sociedade de "funcionários e doutores" que sucedeu ao nosso patriarcado rural.

Ao fazer estas observações, costumo acrescentar que o instinto de defesa da sociedade não ficou completamente tranqüilo com um tal sistema. A gratuidade do ensino superior havia sempre de oferecer algum perigo. Não seria, então, de todo mau que tal ensino não se aforçurasse demasiado em ser eficiente. Os filhos-famílias que principalmente o freqüentavam eram pessoas bem nascidas, com razoável oportunidade de educação em suas casas, podendo, portanto, suprir as possíveis deficiências da educação escolar, pela aquisição de bons livros, alguma viagensinha de estudos ou de aperfeiçoamento no estrangeiro, inclusive cursos pagos lá fora.

Não só a possível seriedade dêsses cursos superiores gratuitos poderia constituir-se um óbice a que o fizessem os filhos pouco inteligentes de nossas melhores famílias, como poderia criar rivais demasiado poderosos por entre os poucos elementos populares que, devido à gratuidade, acabariam por ingressar no ensino superior, como, de fato, e cada vez mais passaram a ingressar.

Foi êste modesto sistema de segurança educacional, mantido em razoável funcionamento até 30, que se viu, dessa data em diante, tomado de assalto pelas camadas em ascenção social e transformado na tumultuado acampamento educacional dos dias de hoje.

Organizado com o objetivo de servir à periclitante estabilidade social anterior a 30, está agora a servir, com a sua expansão desordenada, dentro de critérios ainda mais graves de ineficiência, a uma verdadeira demagogia educacional, formando, no nível superior, turmas, cada vez mais numerosas, de diplomados de duvidoso preparo para engrossar as fileiras dos candidatos ao emprêgo público, o que obriga ao Estado, como patrão quase exclusivo dessa massa de pseudo-educados, a alargar cada vez mais os seus campos de emprêgo.

A velha república de "funcionários e doutores" estava longe de supor que seu engenhoso sistema de segurança educacional viria a produzir, com a rutura dos freios tão bem imaginados, a dissolução educacional, graças à qual se vêm multiplicando os estabelecimentos de ensino superior gratuitos, a fim de poder acolher todos os que logrem atravessar a barreira, cada vez mais fácil, do ensino médio em geral e não mais só do secundário pròpriamente dito.

Longe de ter assegurada a sobrevivência da elite tradicional, o ensino superior gratuito está servindo para forjar uma falsa elite diplomada e para aumentar até o ponto de perigo a inflação burocrática do país.

Cumpre-nos fazer essa advertência, em que outras implícitas se encerram, sob pena de não podermos defender, perante a parte lúcida da nação, a necessidade de recursos abundantes para a educação. Se esta se faz, não a fonte de preparo de elementos produtivos para o país, mas de elementos improdutivos ou apenas semiprodutivos, antes aumentando o ônua de despesas improdutivas da nação do que lhe socorrendo as fôrças de produção, porque há de a sociedade fazer o esfôrço financeiro a custeá-la?

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