TEIXEIRA, Anísio. As escolinhas de arte de Augusto Rodrigues. Arte e Educação. Rio de Janeiro, v.1, n.1, set. 1970. p.3.

As escolinhas de arte
de Augusto Rodrigues

Anísio Teixeira

Nem sempre nos lembramos de que a escola era, desde o século XIX, centros de instrução e, dêste modo, é que se fêz pública e universal. Escola, como instituição de educação, no sentido integrativo do têrmo, já é conceituação nova dos princípios de nosso século. Por isto mesmo, não havia idéia de arte em escola primária, mas apenas a de desenho, como treino para sua técnica.

A criação de Augusto Rodrigues cai já no conceito mais amplo de nosso século, representando inovação corajosa, que a sensibilidade do artista procurou disfarçar na designação mimosa e feliz de "escolinha de arte". Trata-se de instituição, hoje espalhada por vários pontos do País, proposta a oferecer à criança nada mais e nado menos que oportunidade para atividades de criação artística. Representa, no Brasil, alguma coisa que se podia considerar óbvio, e que, entretanto, é, no gênero, talvez, o que de mais significativo se faz entre nós no campo da educação infantil.

Neste período de transição em que vivemos, entre a era tipográfica e a eletrônica de nossos dias, com a consciência aguçada pelas revelações que nos trouxe a visão retrospectiva da era de Gutemberg, já não é novidade ser tôda e qualquer educação esfôrço por incorporar e tornar consciente algum aspecto da "cultura" existente e não apenas a transmissão de "meros retalhos de informação" da época das escolas de simples "instrução". Com efeito, "cultura", na expressão de Whitehead, não é apenas informação, mas "pensamento em perene atividade e receptividade à beleza e ao humano sentimento". Na imensa aridez da paisagem dos escolas nacionais, paisagem que lembra aspectos de nossos desertos, as "escolinhas de arte" são oasis de sombra e luz, em que as crianças se encontram consigo mesmas e com a alegria de viver, tão "deliberadamente" banida das "escolas" convencionais de "retalhos de informação", secos e duros como a vegetação habitual das zonas áridas.

Mas, não é sòmente a "escolinha de arte" uma inovação pedagógica. É também inovação do próprio conceito de "arte", pois esta já não é a atividade especial de criaturas excepcionais, miraculosamente dotados do poder de "redescobrir" a arte no emaranhado organizatório da vida racional, homogêneo e mecânica, passiva e obrigatória da era de Gutemberg, mas atividade inerente ao senso humano da vida, que, felizmente, ainda se pode encontrar nas crianças que não foram completamente deformadas pelos condicionamentos inevitáveis da instrução morta e fragmentada das escolas convencionais. Mesmo por entre as divisões, separações e especializações da era tipográfica, não faltou quem visse na "arte" a maior exceção do seu espírito linear, visual e extrínseco, inerentemente fragmentário e isolacionista. Por isto mesmo, a "arte" veio a se fazer símbolo da verdadeira visão do mundo em contraste com a visão racionalizante e mecânica do mundo newtoniano, que presidiu o desenvolvimento de nossa civilização, com justiça concebida como "mal-inevitável", mas que nem por ser inevitável deixou de produzir seu específico "mal-estar", capaz de fazer de seus usuários esquizofrênicos mais ou menos declarados ou disfarçados.

A arte, então, nesse longo período moderno em vésperas de se encerrar, teve também que se isolar em sua excepcionalidade, estendendo este característico, que é apenas específico das pessoas que têm os dons de expressar a arte em forma comunicativa ou simbólica, a todo o mundo, ou seja, à própria compreensão e sentimento da arte. Sem dúvida, o artista é criatura excepcional, como excepcional é o intelectual, o erudito, ou qualquer um que devote sua vida a exprimir simbòlicamente as formas de comunicação do homem, dando-lhe os instrumentos para a compreensão e o uso de seu conhecimento ou de seu sentimento. Todos, porém, são capazes de compreender e sentir. E como a arte é a forma de expressão do sentimento humano, fazê-la é excepcional, mas senti-la é comum, geral e universal. Contudo, a situação real e concreta criada pela nossa civilização foi a do isolamento da arte, como forma de refúgio e consolo do homem moderno. A criança entretanto, à despeito das fôrças de condicionamento da cultura tipográfica, escapa, de certo modo, a êsse condicionamento, podendo ainda conduzir sua existência dentro de formas livres e criadoras que, de algum modo, podem dor a suas vidas tom e atmosfera de criação, de beleza e de arte. É essa a grande motivação das escolinhas de arte de Augusto Rodrigues. Êle não está a "treinar" artistas, mas a dor às crianças oportunidade para a mais educativa das atividades, a atividade da criação artística. Essa é a atividade mais altamente educativa, porque sendo a educação esfôrço de adaptação ao mundo, tal adaptação se faz pela descoberta do mundo, sem dúvida, mas sobretudo pela descoberta dos próprios podêres e faculdades mentais de cada um, pois êstes podêres e potencialidades são os que dão sentido e expressão a todo seu esfôrço de adaptação e realização de si próprio. Ora, nenhuma atividade é capaz como a artística de dar ao ser humano êste sentido de integração, conscientização e incorporação ao seu "eu" e ao seu meio: e isto é afinal a própria essência da educação. Para muitos, devido às dicotomias, divisões e separações da era tipográfica, Augusto Rodrigues está, apenas, dando às crianças chances para um "recreio" artístico, como os dariam os museus e galerias de arte. Mas, na realidade, está a educar a criança, pela forma mais alta, mais inteligente e mais reparadora e integrativa, que hoje possuímos para curar-nos das falsas deformações, que nos está ou nos irá impor o mundo de valôres mortos ou moribundos de nossa civilização em transição. Dia virá, em que a alta e grande experiência das "escolinhas de arte", aparentemente modesta e "acidental", será a maciça e universal experiência de nossas escolas. Augusto Rodrigues é quem está no "presente". Mas nossa existência comum está hipnotizada pelo passado que continua onipresente em nosso inconsciente. McLuhan afirma num de seus livros, que o presente é o futuro do futuro. Surge dentro do passado, é antevisto por alguns contemporâneos, mas sòmente será vivido e sentido por todos, duas fases adiante de seu real e escondido aparecimento. Augusto Rodrigues está a antecipar o nosso presente que irá ser o futuro em que êsse escondido presente irá dominar e, por sua vez, criar condições para novas mudanças e novos videntes e antecipadores de suas promessas e "prospectivas".

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