TEIXEIRA, Anísio. A escola brasileira e a estabilidade social. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.28, n.67, jul./set. 1957. p.3-29.

A Escola brasileira e a estabilidade social*

Anísio Teixeira

Diretor do INEP

Não é fácil dar, em uma só palestra, descrição suficientemente exata da situação educacional brasileira e indicar os principais aspectos que mostram como e quanto ela é pouco satisfatória. Em todo caso, tal é a minha tarefa, hoje, aqui, e vou buscar cumpri-la como me for possível. Tomaremos em cada um dos níveis de ensino - primário, médio e superior - os fatos que nos parecem mais significativos, buscando interpretá-los à luz de uma compreensão ampla da função de todo o sistema de educação, a fim de caracterizar-lhe as tendências e indicar as correções mais recomendáveis. A educação, sendo um processo de cultivo ou de cultura, há de ser sempre algo em permanente mudança, em permanente reconstrução, a exigir, por conseguinte, sempre novas descrições, novas análises e tratamentos novos. Como a agricultura ou como a medicina, a educação está em permanente transformação, não só em virtude de conhecimentos novos, como em virtude de mudanças decorrentes da própria dinâmica da sociedade.

A situação educacional brasileira apresenta-se como uma pirâmide, em que a base não chega a ter consistência e solidez de tão tênue que é, logo vai se afilando, mais à maneira de um obelisco do que mesmo de uma pirâmide. Tal aspecto manifesta-se desde a escola primária.

Para uma população escolar de 7 a 11 anos de idade, num total de 7.595.000, a escola primária acolhe 4.921.986, ou seja, cerca de 70%. Destes alunos, porém, encontram-se no 1º ano 2.664.121, quando ali só se deviam encontrar 1.600.000 (grupo de idade de 7 anos), no 2º, 1.075.792, quando aí se deviam achar 1.500.000, no 3º.,735.116, onde deviam estar outros 1.500.000, no 4º e 5º anos, 466.957, quando aí deviam estar 1.480.000; só este fato já afila singularmente a pirâmide, conforme se pode ver no gráfico, que ora apresentamos, das matrículas por séries nas escolas brasileiras de nível primário, médio e superior**.

O gráfico revela quanto não está sendo cumprida a função precípua da escola primária, que é a de ministrar uma cultura básica ao povo brasileiro. O ensino primário vem fazendo um processo puramente seletivo. A ênfase está no puramente. Com efeito, embora o próprio ensino primário deva contribuir para uma primeira seleção humana, não é esta a sua finalidade precípua. Se todo ele passar a ser um processo de seleção, isto é, de escolha de alguns, destinados a prosseguir a educação em níveis pós-primários, estará prejudicada a sua função essencial.

Ora, aí temos o primeiro aspecto pelo qual se verifica como e quanto o ensino primário vem sendo desvirtuado. Considerando-o puramente preparatório às fases ulteriores da educação, descuidamo-nos de organizá-lo para efetivamente atender a todos os alunos, seja qual for a capacidade intelectual de cada um, e vimos, ao contrário, mantendo a velha organização seletiva de escola propedêutica. O característico da organização das escolas para finalidade seletiva é o menosprezo às diferenças individuais, ou a utilização das diferenças individuais apenas para eliminar os reputados incapazes. A escola fixa os seus graus ou séries de ensino, os padrões a que devem atingir os alunos capazes de seguir o curso. Os que não se revelarem capazes são reprovados, tornando-se, ou repetentes ou excluídos. Nessa organização, cabe ao aluno adaptar-se ao ensino e não o ensino ao aluno. Nada mais legítimo, se a escola visa realmente selecionar alguns alunos para determinados estudos. E nada mais ilegítimo, se a escola se propõe a dar a todos uma habilitação mínima para a vida, a promover a formação possível de todos os alunos de acordo com as suas aptidões. Não será necessário estender-me mais sobre a matéria, pois as reprovações maciças no ensino primário, respondendo pelo número de repetentes e, em parte pelas deserções, demonstram que esta é, realmente, a organização do ensino primário. No próprio Distrito Federal, as reprovações no ensino primário chegam a ser de mais de 50%.

A organização da escola primária, como escola seletiva e propedêutica, justifica uma porção de fatos, que seriam julgados pelo menos surpreendentes se tal não fosse a sua organização.

Primeiro, justifica a desordem por idades na matrícula. A escola primária recebe na primeira série e, depois nas demais, alunos de todas as idades entre 7 a 14 anos. Se a escola fosse organizada para a educação básica, todos sentiriam o que importa não começá-la na época própria, não somente pelo tempo que o menino terá perdido, como porque as diferenças de idade prejudicam o tipo de organização da escola primária, destinada a todos. Esta escola é mais do que qualquer outra, e exatamente porque é para todos, uma escola organizada por idades. Vai, na primeira série, sem impor qualquer padrão seletivo, educar crianças de 7 anos, com seus interesses, seus gostos e suas aptidões. Receber, na primeira série, meninos de 8, 9, 10 e até de mais anos, será toda uma desordem, salvo, repito, se a escola não fosse a escola de educação básica, mas um curso preparatório a outra escola mais alta.

Como ela se vem fazendo, realmente, um curso preparatório, professores e diretores aceitam, sem discussão, a desordem de idades, que aflige a organização das séries escolares, prejudicando-a no seu espírito e na sua eficiência.

A segunda conseqüência da organização seletiva da escola primária é a possibilidade de ser ela reduzida em tempo e em objetivos educacionais. Desde que seu propósito seja seletivo por um lado, e preparatório, por outro, pode-se reduzir a mesma, cada vez mais, a um adestramento para os exames e sobretudo para o exame da entrada na escola seguinte. O ensino assume, então, cada vez mais, caráter informativo, limitando-se a mínimos de habilidade e a uma esquematização taxinômica de conhecimentos formais necessários aos exames.

À desordem na matrícula por idade, sucede, assim, a desordem dos horários letivos, reduzidos ao mínimo, com os turnos, que, em muitos casos, já ascendem a quatro por dia! Numa tal escola, está claro, nada mais se faz do que adestrar os meninos numa alfabetização sumária e, depois, treiná-los para os exames de mínimos conhecimentos formais, considerados necessários à promoção seletiva e, por último, ao exame de admissão ao ensino secundário.

Se não tivéssemos o propósito democrático de dar às massas uma boa educação prática para a vida, mas, apenas, o de selecionar os melhores para lhes oferecer uma educação de elite, eu diria que a nossa escola primária está procurando cumprir a sua missão. E a questão seria, apenas, se o está conseguindo. Levam, realmente, os seus métodos à escolha dos melhores para o ensino médio e superior de que precisamos? Tenho as minhas sérias dúvidas e, por elas, chego até a convicção do contrário.

Com efeito, o tipo de adestramento aparentemente intelectualista que a escola primária experimenta fazer, não chega a ser seletivo sequer das boas inteligências teóricas. Não direi que tais inteligências não cheguem a aproveitar-se do ensino, mas, mesmo para este tipo de inteligência, os estudos puramente formais podem ser prejudiciais. Realmente, as inteligências que se ajustam ao ensino formal são as de certo tipo médio, excessivamente plástico e passivo. Os verdadeiramente capazes são desencorajados, e a grande maioria dos de outro tipo de inteligência - artística, plástica, prática - é destruída. Assim, creio que a própria capacidade seletiva da nossa escola primária não é a melhor para o ensino posterior ao primário de que precisa a nossa sociedade e que o nosso estágio de desenvolvimento está a exigir.

Logo, mesmo como escola seletiva, o espírito com que a escola primária vem buscando selecionar não nos parece o mais recomendado para a conjuntura que estamos atravessando.

A realidade, porém, é que a escola primária não pode ser simplesmente seletiva, mas precisa de cuidar seriamente dos alunos de todos os tipos e todas as inteligências que a procuram - e que até obrigatoriamente e devem procurar - para lhes dar aquele lastro mínimo de educação, capaz de nos estabilizar e dar à Nação as necessárias condições de gravidade e responsabilidade. Quebrados os óbices à unificação democrática do povo brasileiro, percorre, com efeito, todas as suas camadas, e sobretudo as mais baixas, um ímpeto de ascensão social a que só a educação poderá dar ordem e estabilidade. A ordem e a estabilidade numa sociedade democrática são mantidas por critérios conscientes de valor e hierarquia. Tais critérios não se adquirem por meio de adestramento para exames formais, mas por uma lenta impregnação que a família e a classe promovem, e a escola, quando, como as duas primeiras, se faz forma de vida em comum, com atividades de participação e de integração, também pode promover. Ora, como a família e a classe, em rigor a classe, pois a família é sempre um aspecto dela, está vivendo, pelos próprios deslocamentos sociais causados pelo progresso econômico do País, um período de intensa mudança, não consegue a classe, por isto mesmo, a transmissão pacífica dos seus padrões, deixando, assim, de operar como força estabilizadora suficiente.

Fica, portanto, a escola. Se ela não se fizer a transmissora de padrões de hábitos, atitudes, práticas e modos de sentir e julgar, as forças liberadas pelo progresso material lançarão os indivíduos a uma corrida de ascensão social, tanto mais desordenada e caótica quanto menos preparados tiverem ficado para tais promoções, situação que não é afinal senão a que vimos, presentemente, registrando no País.

A escola primária deverá, assim, organizar-se para dar ao aluno, nos quatro anos do seu curso atual e nos seis a que se deve estender, uma educação ambiciosamente integrada e integradora. Para tanto precisa, primeiro, de tempo: tempo para se fazer uma escola de formação de hábitos (e não de adestramento para passar em exames), e de hábitos de vida, de comportamento, de trabalho e de julgamento moral e intelectual.

Uma vez alcançado o tempo necessário, para o que todos os esforços devem ser feitos, a organização da escola, em termos de escola-comunidade, com um currículo de aprendizagem por participação, não é difícil, embora exija abundantemente material de ensino e de trabalho e professores preparados de forma mais acentuadamente profissional - tudo bem diverso do que vimos atualmente fazendo. A escola se organizará como um local de atividades adequadas às idades, dentro de três setores, que se conjugarão entre si, mutuamente complementares e integrados: o do jogo, recreação e educação social e física; o do trabalho, em formas adequadas à idade, e o do estudo, em atividades de classe propriamente ditas.

Os próprios conjuntos de edificações escolares compreenderiam, sempre, prédios para as atividades de classe, ou "escolas-classe"; para as atividades de recreação e jogos, ou ginásios e campos de esporte; para as atividades sociais e artísticas, ou auditórios e salas de música, de dança e clubes; e para as atividades de trabalho, ou pavilhões de artes industriais; além de bibliotecas e dos demais espaços necessários à educação integral.

A didática dessa escola obedeceria ao princípio de que as atividades infantis, predominantemente lúdicas, evoluem naturalmente para o trabalho, que é um jogo mais responsável e com maior atenção nos resultados, e do trabalho evoluem para o estudo, que é a preocupação mais intelectual de conduzir o trabalho sob forma racional, sabendo-se porque se procede do modo pelo qual se procede, e como se pode aperfeiçoar ou reconstruir esse modo de fazer. Quando esse interesse intelectual se desenvolve bastante para se tornar uma atividade em si mesma, teremos o intelectual, o cientista, o pesquisador e o pensador, que irão constituir os corpos especializados da Nação para o seu desenvolvimento cultural e científico.

Nessa escola primária, a idade é o elemento fundamental de graduação e classificação, organizando-se as séries com programas de atividades escolhidas à luz dos interesses e impulsos dos vários grupos em cada idade, com as diversificações decorrentes dos diferentes quocientes intelectuais. Daí constituírem-se os grupos quase sempre de duas idades: 7/8 na 1ª série, 8/9 na 2ª série, 9/10 na 3ª série, 10/11 na 4ª série, 11/12 na 5ª série ou 1ª complementar e 12/13 na 6ª série ou 2ª série complementar.

Estendido o tempo da escola primária pelo dia letivo completo e pelos seis anos mínimos de estudos, teríamos a possibilidade de reorganizá-la para a educação de todos os alunos e não apenas dos poucos selecionados. Para isto, seriam necessários o enriquecimento do currículo pela forma antes recomendada e a formação de magistério adequado. Temos, quanto à última tarefa, a da formação do magistério, a experiência das escolas de enfermeiras e das escolas de serviço social. Deveríamos elevar as escolas normais à categoria profissional dessas duas escolas, não direi para torná-las de chofre de nível superior, mas para acentuar-lhes o espírito de formação nitidamente profissional. Antes, porém, do currículo novo e do novo professor, teríamos de alterar a própria ordem ou estrutura da escola primária, a fim de que deixe de ser apenas seletiva e se faça formadora e educativa.

Para tanto, antes de tudo, importa ordenar e regularizar a matrícula por série e por idade, a fim de organizar-se o programa por idade, suspender-se o regime de reprovações e dar-se o devido número de lugares para os alunos da 5ª série e, depois, da 6ª série - séries novas pelas quais se estenderá a escola primária. 1

Desse mundo do ensino primário - algo informe e desordenado, compreendendo presentemente escolas estaduais, congestionadas e funcionando em dois, três e até quatro turnos de matrículas, escolas municipais, com instalações geralmente inadequadas e com professores despreparados, e escolas particulares livres, todas ou de simples alfabetização ou de caráter, como vimos, propedêutico e seletivo - passamos ao mundo do ensino médio.

A transição tem algo de um salto. Não é apenas um novo nível, mas um novo reino, ou, então, a entrada definitiva no reino da educação seletiva. Como a marcar a violenta transformação, há que registrar o ritualismo que caracteriza a nova escola. A licença de organização, de programas, de métodos e de escolha de magistério do ensino primário é substituída pelo formalismo mais estrito e por uma verdadeira inflexibilidade de organização. Distribui-se por cinco ramos esse ensino: o secundário, de caráter nitidamente intelectualista, o técnico-industrial, o agrícola, o comercial e o normal ou pedagógico.

Teoricamente, o secundário seria propedêutico ao ensino superior, e os demais, de caráter profissional, destinados ao preparo dos quadros de nível médio de técnicos para a indústria, o comércio, a agricultura e o magistério primário. Na realidade, porém, todo esse ensino médio se vem fazendo propedêutico ao ensino superior, contentando-se com o seu preparo para se iniciar no trabalho ativo apenas aquele grupo de alunos que não conseguindo adaptar-se à rigidez dos seus padrões, acaba por abandonar o curso ou dele ser excluído pelas reprovações.

Para confirmar essa observação, basta atentar no declínio progressivo da matrícula ao longo das séries, conforme se vê no gráfico anteriormente apresentado. Dos 230.000 alunos da série inicial do primeiro ciclo, 95.000 atingem o quarto ano. E dos 88.000 do primeiro ano do segundo ciclo, apenas 42.000 alcançam a terceira série. Destes, logram atravessar a barreira do vestibular ao ensino superior pouco mais de 20.000.

No ensino médio, depois do estabelecimento da equivalência dos estudos entre o ramo secundário e os ramos ditos profissionais, ou sejam, comercial, técnico-industrial, agrícola e normal, temos algumas novas tendências a assinalar. Embora o secundário continue a ser o ramo dominante, com 537.000 alunos no 1º ciclo e 82.000 no 2º ciclo, já são 92.000 os que fazem o 1º ciclo nas escolas médias não secundárias e 110.000 os que nelas fazem o 2º ciclo, isto é, número superior em cerca de 30.000 aos matriculados em colégios clássicos ou científicos.

Os segundos ciclos dos cursos comerciais e normais caminham para terem matrícula equivalente à do 2º ciclo do secundário. Será interessante examinar se esse acréscimo de matrícula corresponde a um real desejo de realizar o curso profissional de nível médio, ou se estão apenas procurando tais cursos porque são mais fáceis do que os de colégio.

Em todo caso, trata-se de uma nova tendência que deve ser observada com cuidado. Todos os cursos médios profissionais são de natureza mais prática do que os dos colégios, tendo, a par disto, professores de mais baixo preparo do que os do secundário, e podendo, caso a maioria dos seus alunos procurem o ensino superior, ser responsáveis pelo fraco índice de preparo revelado pelos candidatos nos exames vestibulares.

Chegando, afinal, ao ensino superior, registra-se, algo de surpreendente: cessam quase as reprovações. O ensino superior é o menos mortífero dos períodos escolares. Quase todos os seus alunos acabam por graduar-se. Não será isto mais uma comprovação do caráter propedêutico de todos os graus que o antecedem? A passagem no vestibular equivale a uma sagração: só com muito "esforço" o aluno daí em diante escapará à graduação.

Não se diga que assim deva realmente ser e que, assim, por certo, também acontece nos países já desenvolvidos.

Na América do Norte, para citar o país de nosso continente em que é mais intensa a fé na capacidade de promoção social pela educação, o quadro é bem diverso. Veja-se a situação americana: em cada mil habitantes dos EUA de 7 a 13 anos, todos terminam a escola elementar e 910 entram na escola secundária aos 14 anos; 750 terminam o 1º ciclo de três anos (Junior High School) aos 16 anos e 620 terminam o 2º ciclo (Senior High School) aos 18 anos. Entram na Universidade 320 alunos e terminam o College (4 anos) 140. Destes, 27 graduam-se Masters e 3,5 atingem o doutorado (8 a 9 anos de estudos universitários).

Pelo gráfico anexo, pode-se ver quanto é crescente a aspiração do povo americano por mais educação. O processo, entretanto, eleva cada vez mais o nível educacional de todo o povo, ficando a função seletiva como um dos corolários e não o aspecto primacial da educação. Cada um dos graus se faz, cada vez mais, formador e não apenas selecionador ou propedêutico.

Com efeito, a educação é um processo de estabilidade social e apenas secundariamente de ascensão social.

É pelo êxito na sua missão formadora que a educação se constitui uma força estabilizadora, e é pela capacidade de encorajar os mais capazes a prosseguir em seus estudos que se faz uma fronteira de oportunidades para o progresso individual e a ascensão social e, como tal, torna-se uma força de renovação. As duas funções da escola - a de estabilidade e a de renovação - devem ser cumpridas, mas sem se prejudicarem. O equilíbrio entre elas é uma condição de boa saúde social.

Seja o ensino primário, seja o médio, seja o superior, destinam-se, primordialmente, à transmissão de certo nível de cultura indispensável à vida das diferentes camadas sociais e, deste modo, a mantê-las estáveis e eficientes. Por outro lado, porém, como o regime de classes, em uma democracia, é um regime aberto, com livre passagem de uma classe a outra, a escola facilita que os mais capazes de cada classe passem à classe seguinte. É esta, porém, por mais importante que seja, uma função suplementar da escola e não a sua função fundamental. Se for desviada deste mais importante objetivo, a escola deixará de exercer a sua função primordial, que é a de ser a grande estabilizadora social, para se fazer até uma das causas de instabilidade social.

Poderá parecer isto algo de reacionário. Na realidade não o é. A educação escolar é uma necessidade em nosso tipo de civilização, porque não há nível de vida em que dela não precisemos para fazer bem o que, de qualquer modo, teremos sempre de fazer. Deste modo, a sua função é primeiro a de nos permitir viver eficientemente em nosso nível de vida e somente em segundo lugar, a de nos permitir atingir um novo nível, se a nossa capacidade assim o permitir. Se toda educação escolar visar sempre à promoção social, a escola se tornará, de certo modo, repito, um instrumento de desordem social, empobrecendo, por um lado, os níveis mais modestos de vida e, por outro lado, perturbando excessivamente os níveis mais altos, levando-lhes elementos que, talvez, não estejam devidamente aptos para o novo tipo de vida que a escola acabou por lhes facilitar.

Palavras duras essas, sem dúvida, mas temos de dizê-las, pois os países subdesenvolvidos são os que mais rapidamente se deixam perder pela miragem da educação como exclusivo processo de promoção social. E este será, sem dúvida, o mais grave defeito de todo o nosso sistema escolar. Fazendo-se, como se vem fazendo, um simples sistema seletivo, a escola, ajudada pelo caráter democrático de nossa população, está se constituindo num processo de desorganização da vida nacional, deixando nas atividades fundamentais da sociedade somente os que não se podem educar e levando todos os que logrem qualquer êxito em seus cursos, mais formais do que eficientes, a condições de vida em que não vão ser mais produtivos, mas apenas conduzir existências mais amenas, senão parasitárias.

Temos examinado, em nossos estudos, este aspecto da escola brasileira sob vários ângulos. Hoje desejamos apresentá-lo, mais uma vez, à luz da verdadeira finalidade da escola. Há como que o esquecimento da função por excelência estabilizadora da educação e o exagero da função de promotora do progresso individual.

Como explicar tal fenômeno em uma sociedade, sob outros aspectos, tão conservadora como a sociedade brasileira?

Para entrarmos na análise mais aprofundada desse fenômeno, devemos apreciar certos fatos fundamentais do ensino brasileiro e acompanhar a sua evolução nos últimos 30 anos.

Até as alturas de 1925, o ensino brasileiro caracterizava-se por um ensino primário de razoável organização, embora de proporções reduzidas, atendido em sua maior parte pela pequena classe média do País, seguido de modesto ensino secundário, predominantemente de organização privada, e de umas poucas escolas superiores divididas, como a escola secundária mas em proporção bem diversa desta última, entre o patrocínio oficial e o privado. O Estado ou o Poder Público mantinha o ensino primário, escolas-padrões de ensino secundário, escolas técnico-profissionais, destinadas aos poucos elementos do povo que atendiam ao ensino primário, e algumas escolas superiores profissionais.

Para dar idéia das proporções desse ensino bastará indicar as matrículas globais em 1927: no ensino primário, para uma população em idade escolar estimada em 4.700.000, encontravam-se nas escolas cerca de 1.780.000; no secundário, para uma população em idade escolar de 4.350.000, o número de alunos não excedia de 52.500; no ensino técnico-profissional, os alunos atingiam a cifra de 42.000;1 e no superior, em todo o País, estudavam cerca de 12.500.

Como se vê, a educação escolar existente não penetrava profundamente nenhuma grande camada popular e se caracterizava perfeitamente como uma educação da elite, eufemismo pelo qual significamos o fato da educação não atingir senão os filhos de pais em boa situação econômica na sociedade.

Toda sociedade sobrevive à custa de um mínimo de educação que permita aos pais de certo nível social manter, nesse nível social, os próprios filhos. No início deste século, embora o patriarcado rural já se achasse em desagregação, a nova sociedade mercantil emergente e que o sucedera, guardava ainda os moldes velhos de educação para as profissões liberais, que vinham, de certo modo, satisfazendo as suas ambições ainda eivadas do vitorianismo caboclo do tempo da monarquia. Na década de 20 é que começa a ebulição política e social, que deflagra, afinal, na revolução de 30, e com a qual ingressamos em um período de mudança, mais caracterizadamente representado pelo desenvolvimento da industrialização na vida nacional.

Como se comportou, durante o referido período, o nosso sistema educacional? Até que ponto se modificou para atender às novas necessidades do País? Estas têm sido as questões que agitaram e continuam a agitar o debate em torno dos problemas do ensino brasileiro.

Dois pontos poderão nortear a nossa análise: caráter ou natureza do ensino necessário ou bastante para a sobrevivência da sociedade agrário-mercantil de antes de 30; e reconstrução indispensável desse ensino para atender aos imperativos do novo estágio da vida nacional, assegurando-lhe a estabilidade e o progresso. Desejaríamos mostrar como não bastaria expandir o sistema arcaico e ornamental do ensino de antes de 20, mas reconstruí-lo em novas bases, para atender, não já apenas a imperativos de sobrevivência de uma elite, e sim a imperativos de formação de todo um povo em vigoroso processo de mudança de civilização.

Que temos feito, entretanto, até hoje? Temos, dominantemente, expandido o sistema velho de educação, destinado originariamente à formação de uma elite letrada ou profissional liberal para a vida política, burocrática e profissional do País e, só acidentalmente, temos atendido às exigências do novo tipo de vida da Nação brasileira.

Sem desejar estender-nos sobre matéria que já examinamos em outros trabalhos, vejamos rapidamente os fundamentos dessa afirmação.

Antes de 30, o sistema educacional da elite brasileira, como já acentuamos, era um sistema particular de ensino secundário, de caráter acadêmico e intelectualista, com veleidades de imitação do sistema francês de ensino, seguido das grandes escolas de profissões liberais, estas, em sua maioria, públicas e gratuitas. Para o povo, havia uma certa quantidade de lugares nas escolas primárias públicas, de onde poderiam estes poucos alunos se dirigir às escolas normais e técnico-profissionais, estas mantidas, em sua quase totalidade, pelo poder público e, portanto, gratuitas. Com estas escolas, por dizê-lo, populares, o Estado reconciliava a sua consciência democrática, ferida pela gratuidade do ensino superior, destinado quase exclusivamente à elite.

Ao entrar o País em sua fase de mudança correspondente à industrialização, o renascimento de energias e de esperanças que acompanha tais processos de transformação deflagrou uma procura insofrida por educação escolar, pois essa educação se fazia indispensável às novas oportunidades de trabalho que a vida entrou a oferecer, não só diretamente, em virtude de novos tipos de trabalho industrial inaugurados, como, sobretudo, pelos novos serviços que o enriquecimento público veio a criar, com o surto industrial e urbano e o crescimento conseqüente da classe média.

Para atender à busca assim intensificada de educação, não estava o País aparelhado, pois o modesto sistema existente não se propunha resolver o problema da formação das novas classes de trabalho, emergentes do surto industrial, mas, apenas, ilustrar com certas tinturas profissionais os elementos já pertencentes às pequenas classes superiores e médias e que encontravam em suas próprias classes todos os estímulos e condições necessárias à sua formação propriamente dita.

Por isto mesmo, a educação secundária e, sobretudo, a superior, era uma educação de tempo parcial, servida de professores eminentes, mas, em sua maioria, de cultura geral, relativamente pouco especializados, o que dava às próprias escolas superiores profissionais um ar de academias de cultura do espírito, um tanto ornamentais e um tanto divagantes e verbalísticas, salvas as poucas exceções de expoentes destacados, tanto na cátedra, quanto na prática profissional, nos setores de medicina e engenharia.

Tomada de imprevisto e sem os recursos necessários para o novo empreendimento educacional, a sociedade brasileira não se apercebeu de que a alternativa à sua negligência seria a expansão, para as novas camadas em ascensão social, do sistema existente, destinado às suas reduzidas classes média e superior, sistema satisfatório, talvez, para a sociedade estabilizada, senão estagnada, da década de 20, mas absolutamente inadequado às novas condições sociais.

Tal sistema tinha a seu favor, para uma expansão imediata, a vantagem de ser um sistema de educação de custeio pouco dispendioso. Não visando senão a uma cultura geral, ou, se quiserem, teórica, isto é, uma cultura da palavra, da enunciação verbal de problemas e soluções, tal educação se pode fazer por meio do professor e do livro de texto, e em tempo parcial. A essa vantagem de custeio módico, acrescentava-se a de possuir o sistema a grande motivação de "classificar" socialmente o aluno, dando-lhe aquilo que mais seduz na educação, que é a capacidade de consumir mais do que a de produzir.

De nada valeu existirem realmente dois sistemas: um de educação superior, pública e gratuita, para as classes mais altas, antecedido de uma escola secundária privada e paga, de caráter propedêutico, para o acesso à superior (o número de ginásios públicos era diminuto); e outro, de escolas primárias públicas e escolas públicas técnico-profissionais para o povo. Poderia parecer que a impotência do Estado em arcar com os novos problemas de educação não viesse a quebrar esse dualismo e continuasse o Poder Público a se esforçar, dentro dos limites de nossas possibilidades, por melhorar as escolas primárias e médias (normais e profissionais) para o povo, deixando à iniciativa privada a educação de caráter secundário e superior, no aspecto em que buscavam apenas a conservação de status social ou a conquista deste status.

Acredito mesmo que tal fosse o pensamento dos "reformadores" da educação em 1930. A realidade, porém, é que a expansão do sistema educacional brasileiro frustrou os intuitos porventura concebidos.

O chamado sistema de educação da elite - compreendendo o ensino secundário de caráter propedêutico ao superior e o ensino superior gratuito - expandiu-se fora de todas as proporções, e o sistema popular, - compreendendo o ensino primário e o técnico - não somente não se expandiu nas mesmas proporções, como vem também tornando propedêutico ao ensino superior, meta final a que todos aspiram, sem nenhuma consciência do que representa o custo dessa educação, logo que deixa de ser uma educação de cultura geral para se fazer, como é necessário que se faça, de cultura especializada e profunda.

A modesta sociedade brasileira do princípio deste século, podia dar-se ao luxo de uma escola superior gratuita para a sua diminuta classe de lazer - gratuidade apenas aparente, pois, localizada em alguns poucos e grandes centros urbanos, obrigava as famílias a deslocar e manter seus filhos nessas poucas cidades servidas de ensino superior. Mas a nova sociedade brasileira só poderia fazer tal com o sacrifício dos seus deveres com a educação efetiva e generalizada do povo brasileiro. Este sacrifício é o que se fez, como podemos agora ver em toda a sua extensão.

Está o País a despender, presentemente, pouco mais de 14 bilhões de cruzeiros com o seu sistema educacional (1956).

Como vimos no gráfico apresentado, o sistema acolhe cerca de 5 milhões de crianças no ensino primário, logrando dar o nível equivalente ao quarto grau ou ano escolar somente a pouco mais de 450.000 crianças. O deficit desse ensino - aceito que bastasse o mínimo de quatro anos de estudos - é de mais de 1.200.000 crianças, que também deveriam chegar ao quarto grau e que deixam a escola sem o correspondente aproveitamento. Pois bem: com essa má e deficiente escola primária, destinada a 5 milhões de alunos, despende a Nação pouco mais de 6 milhões de cruzeiros, à razão de 1.200 cruzeiros por criança.

No ensino médio, primeiro e segundo ciclos, acolhe o sistema apenas cerca de 800.000 adolescentes, despendendo com os mesmos 4 bilhões e 300 milhões de cruzeiros, numa média por aluno de 5.300 cruzeiros. No ensino superior, acolhemos cerca de 70.000 estudantes, despendendo um total de 3 bilhões e 700 milhões de cruzeiros, com um custo médio anual por aluno de 52.000 cruzeiros.

Estudos recentes realizados pela CAPES e pelo Banco do Desenvolvimento Econômico revelam que a tendência se vem afirmando, cada vez mais, no sentido de drenar os recursos públicos para os dois mais elevados níveis do ensino, com sacrifício cada vez mais patente do ensino primário e da formação popular.

Nas despesas globais com o ensino, em todo o País, a quota com o ensino elementar era, em 1948, de 60,3% e chega, em 1956, a ser apenas de 43,2%. As despesas com o ensino médio, de 27,3% do total de despesas com o ensino, sobem a 30,8% em 1956. Nesse rateio, entretanto, o caso do ensino superior é o mais espetacular: correspondendo a 12,4% do total em 1948, atingem as suas despesas, em 1956, a 26%, ou seja, a mais do dobro em oito anos.

Demonstra isto a exacerbação da tendência - já manifesta, mas de certo modo controlada no período anterior à década de 30 - de buscar a classe superior do País obter a sua educação à custa dos cofres públicos. Com o crescimento da classe média, está a mesma também buscando obter do Estado recursos não só para conservar o seu status social, como para poder ascender gratuitamente ao nível da classe média superior, à maneira da velha e menor classe aristocrática do País, criadora do mau exemplo de educar-se às custas do Estado.

O que está acontecendo não é somente prejudicial à Nação, por lhe retirar recursos para a educação do povo, mas, sobretudo, por deformar todo o espírito da educação brasileira. A forte motivação social que a inspira - ascender no escalão das classes sociais - contribui, não sei se irremediavelmente, para afastar da escola os critérios de eficiência em relação ao seu real esforço educativo e dar-lhe critérios falsos de eficiência, fundados no objetivo secundário de promoção social. A educação se faz ritualística, mais de aparência do que de realidade, pois não visa tanto preparar efetivamente os alunos quanto titulá-los, diplomá-los para o seu novo status social.

Não era isto que fazia ela ao tempo da velha sociedade estabilizada de antes de 1930? Por que não há de continuar a fazer com a nova sociedade fluida e dinâmica de uma nação em expansão industrial?

Há, com efeito, a observar que o desenvolvimento no século XIX e princípios deste século se fez, nos Estados Unidos e, em pequena parte, no Brasil, com a importação de elementos educados que se encarregavam da produção, deixando às classes médias e superiores nativas as vantagens do consumo da riqueza produzida. E enquanto isto fosse possível, não seria pelo menos totalmente desastrosa uma educação de formação do consumidor que é, no final das contas, a educação do tipo da que vimos examinando..

Alteradas, porém, tais condições, sendo praticamente impossível a importação de educação do tipo necessário ao estágio industrial, temos de produzi-Ia aqui no País e este tipo de educação não se faz em escolas de educação formalística e verbal, mas em escolas de real eficiência no preparo do homem para as diversíssimas formas de trabalho inteligente e técnico, que caracterizam a civilização industrial.

Toda sociedade tem seus processos instintivos de defesa e de conservação. O Brasil, como país agrário e pobre, havia desenvolvido um sistema de educação muito engenhoso para a sobrevivência de suas classes altas. Com a decadência do latifúndio, a fronteira que se abria às famílias empobrecidas era a da educação para as funções do Estado, a política e as profissões liberais. Um sistema público, universal e gratuito de educação não conviria, pois abriria as portas a uma possível deslocação das camadas sociais. Uma escola pública primária gratuita, mas pouco acessível, com espírito marcadamente de classe média, poderia servir às classes populares, sem com isso excitá-las demasiado à conquista de outros graus de educação. Como válvula de segurança, escolas normais e técnico-profissionais se abriram à continuação dos estudos pelos mais capazes. No nível médio, pois, criar-se-iam dois tipos de escola: o secundário ou propedêutico aos estudos superiores, a ser ministrado em escolas particulares pagas e destinado às classes de recursos suficientes para custear, nesse nível, a educação dos filhos; e a escola normal e a técnico-profissional, em número reduzido, públicas e gratuitas, para o povo. Criados tais óbices para o acesso ao ensino superior, poderia o mesmo ser público e gratuito. E foi o que se fez, ficando deste modo assegurada às classes dominantes, mas em parte já empobrecidas, do País, a oportunidade de dar a seus filhos a educação necessária às carreiras burocráticas e liberais, com que as boas famílias brasileiras contavam superar as dificuldades da desagregação da classe agrária.

Tivemos, assim: o ensino primário gratuito, mas de oportunidades reduzidas; o ensino secundário pago, para servir de estrangulamento a qualquer rápido desejo generalizado de ascensão social; e o ensino superior gratuito, para atender aos filhos dos "pobres envergonhados" em que se transformou a elite rural do País. Com esse sistema, assegurou-se a estabilidade social e começamos a marcha para a sociedade de "funcionários e doutores" que sucedeu ao nosso patriarcado rural.

Ao fazer estas observações, costumo acrescentar que o instinto de defesa da sociedade não ficou completamente tranqüilo com um tal sistema. A gratuidade do ensino superior havia sempre de oferecer algum perigo. Não seria, então, de todo mau que tal ensino não se aforçurasse demasiado em ser eficiente. Os filhos-famílias que principalmente o freqüentavam eram pessoas bem nascidas, com razoável oportunidade de educação em suas casas, podendo, portanto, suprir as possíveis deficiências da educação escolar pela aquisição de bons livros, alguma viagenzinha de estudos ou de aperfeiçoamento no estrangeiro, inclusive cursos pagos lá fora.

Não só a possível seriedade desses cursos superiores gratuitos poderia constituir-se um óbice a que o fizessem os filhos pouco inteligentes de nossas melhores famílias, como poderia criar rivais demasiado poderosos por entre os poucos elementos populares que, devido à gratuidade, acabariam por ingressar no ensino superior, como, de fato, e cada vez mais passaram a ingressar.

Talvez seja demasiado cerebrina essa interpretação... Mas eu a ensaio, porque confesso julgar necessário achar-se uma explicação para o caráter extremamente ineficiente, em regra, do nosso ensino superior, até período muito recente. A hipótese que aqui lanço é a de que a ineficiência seria um modificador da gratuidade, infelizmente necessária devido à pobreza da classe dominante, mas reconhecida, ou instintivamente pressentida, como arriscada pela sociedade medrosa e estacionária que sucedeu à emancipação dos escravos.

Foi este modesto sistema de segurança educacional, mantido em razoável funcionamento até a década de 30, que se viu, dessa data em diante, tomado de assalto pelas camadas em ascensão social e transformado no tumultuado acampamento educacional dos dias de hoje.

Organizado com o objetivo de servir à periclitante estabilidade social anterior a 30, está agora a servir, com a sua expansão desordenada, dentro de critérios ainda mais graves de ineficiência, a uma verdadeira demagogia educacional, formando, no nível superior, turmas cada vez mais numerosas de diplomados de duvidoso preparo para engrossar as fileiras dos candidatos ao emprego público, o que obriga o Estado, como patrão quase exclusivo dessa massa de pseudo-educados, a alargar cada vez mais os seus campos de emprego.

A velha república de "funcionários e doutores" estava longe de supor que seu engenhoso sistema de segurança educacional viria a produzir, com a ruptura dos freios tão bem imaginados, a dissolução educacional, graças à qual se vêm multiplicando os estabelecimentos de ensino superior gratuitos, a fim de poder acolher todos os que logrem atravessar a barreira, cada vez mais fácil, do ensino médio em geral e não mais só do secundário propriamente dito.

Longe de ter assegurada a sobrevivência da elite tradicional, o ensino superior gratuito está servindo para forjar uma falsa elite diplomada e para aumentar até o ponto de perigo a inflação burocrática do País.

Cumpre-nos fazer essa advertência, em que outras implícitas se encerram, sob pena de não podermos defender, perante a parte lúcida da Nação, a necessidade de recursos abundantes para a educação. Se esta se faz, não a fonte de preparo de elementos produtivos para o País, mas de elementos improdutivos ou apenas semiprodutivos, antes aumentando o ônus de despesas improdutivas da Nação do que lhe socorrendo as forças de produção, por que há de a sociedade fazer o esforço financeiro necessário a custeá-la?

Porque, já aqui, cabe mostrar que, ao contrário da educação para o consumo de uma classe já rica e que precisa de escola para manter o seu status social e aprender a gastar com gosto a sua fortuna, e consumir, com espírito, a sua vida; a educação para a produção não pode ser nem barata nem ineficiente.

Não quero dizer que toda a educação para o lazer seja barata e ineficiente. Bem sei que esta educação pode ser custosa e até custosíssima. Acredito, porém, que se compreenda que, sendo a educação para o lazer, a ineficiência possa não ser punida com conseqüências demasiado desastrosas, pois o educado já se sustenta, ou vai ter quem o sustente, estando sendo educado tão-somente para usar melhor os bens que usufruía ou venha a usufruir.

Já a educação para a produção é, naturalmente, mais exigente. Porque, se não for eficiente, haverá destruído o seu objetivo e, o que é mais grave, haverá transformado o educado em um passivo e não um ativo da sociedade, a qual com ele despendeu os seus recursos com o propósito de reavê-los e com juros, por isto e só por isto podendo aplicar em sua educação o dinheiro do povo.

Essas duas escolas de ensino eficiente e de ensino ineficiente são bem conhecidas entre nós. Para exemplificar as primeiras, isto é, as eficientes, temos as escolas médias técnico-industriais, as escolas superiores de engenharia, as escolas de medicina. Todos sabemos o seu custo. Um médico da Escola de Medicina de São Paulo custa ao Estado nada menos de 2 milhões e 500 mil cruzeiros. Um aluno de uma escola técnico-industrial não deve custar, com o curso completo, hoje de sete anos, menos de 1/2 milhão de cruzeiros. Os alunos de escolas agrícolas médias andam a custar uma média de 50 mil cruzeiros por ano.

Concordaria que certos estudos exigem despesas menores de equipamento, mas todos os estudos são caros, só podendo ser baratos rápidos adestramentos de tipo muito especial. A própria chamada cultura geral, quando verdadeiramente ministrada, é das mais caras. Exige estudos demorados, contatos prolongados com professores do mais alto nível, bibliotecas imensas e tempo, muito tempo para o estudante se concentrar na lenta e contínua absorção da cultura passada e presente.

Todos os estudos, aliás, de verdadeira e autêntica formação para o trabalho, seja o trabalho intelectual, científico, técnico, artístico ou material, dificilmente podem ser estudados de tempo parcial, dificilmente podem ser feitos em períodos apenas de aula, exigindo além disto, e sempre, longos períodos de estudo individual - e para tal grandes bibliotecas, com abundância de livros e de espaço para o estudante - longos períodos de prática em laboratórios, salas-ambiente, ateliês, etc., e longos períodos de convivência entre os que se estão formando e os seus professores. Somente com professores de tempo integral e alunos de tempo integral poderemos formar esses trabalhadores de nível médio e o mesmo devemos dizer do ensino superior, na preparação dos intelectuais, técnicos, cientistas e professores de alto nível. Toda simplificação só é possível se não visarmos verdadeiramente preparar os estudantes, mas obrigá-los apenas a algumas atividades formais como condição para lhes dar certos títulos de valor preestabelecido.

Ora, não será possível, em face do alto custo, a expansão do ensino superior em condições adequadas, sem a descoberta de novas fontes de receita para o autêntico preparo neste nível.

Vejamos, sumariamente, qual vem sendo a expansão em particular do ensino superior.

Possuímos, em 1936, 173 instituições de ensino superior, sendo 160 escolas profissionais, 3 escolas de Filosofia, 8 de Economia, 1 de Educação Física e 1 de Sociologia e Política. Apenas dez anos após, em 1956, elevou-se o total a 346, sendo 208 escolas profissionais, 45 de Filosofia, 38 de Economia, 8 de Educação Física, 8 de Biblioteconomia, 22 de Serviço Social, 8 de Jornalismo e mais nove outras diversas.

Pode-se ver que a grande expansão foi de escolas de Filosofia e de Economia que subiram de 11 a 83, as de Educação Física de 1 para 8 e as novas pequenas escolas de Biblioteconomia, Serviço Social, Jornalismo, etc., que, inexistentes em 1936, chegaram a 47 em 1956.

No campo profissional propriamente dito, o crescimento é um tanto menor: 160 em 1936, 208 em 1956. Incluímos nesse campo o Direito, a Engenharia, a Medicina, a Farmácia, a Odontologia, a Agronomia, a Arquitetura, a Química Industrial, a Veterinária e as Belas-Artes. Trata-se da formação do quadro de profissionais de nível superior. Concluíram o curso em 1936, nesse campo 3.990 alunos e, em 1956, concluíram 8.469. O crescimento maior é o de engenheiros que, de 220 em 1936, ascendem em 1956, a 1.225. Já os médicos, em 1936, eram 1.376 e em 1956, 1.465, aumentando apenas de 80, isto é, cerca de 6%. Já os bacharéis em Direito, mais do que dobram, passando de 1.213 a 2.810. Interessante é o caso das Belas-Artes. Cresce o número de escolas de 4 para 10; concluindo o curso, nas 4 escolas, em 1936, 12 alunos e nas 10 em 1956, 53 alunos, à razão de 3 e 5,3 alunos diplomados por escola. Pode-se bem avaliar o custo desses diplomados!

Tomados todos os 11.348 diplomados em todas as escolas superiores em 1955 e considerando-se que o ensino superior está a despender 3 bilhões e 665 milhões de cruzeiros por ano, a média do custo de um diplomado de nível superior seria de 322.000 cruzeiros, cifra muito pouco expressiva, pois a média é de custos demasiado heterogêneos, sendo comparação exemplar a do custo de formação de um médico com a de um bacharel em Direito ou em Economia.

O problema que toda essa expansão suscita é o de como custeá-la.

Não parece justa a gratuidade do ensino superior, salvo se já estivessem plenamente resolvidos os problemas da educação popular primária e os do preparo de nível médio, na proporção e qualidade considerada necessária ao desenvolvimento do País. Todo o ensino gratuito deve ser universal. No caso de estudos acessíveis apenas a alguns, devem os mesmos ser pagos pelo interessado. Quando o Estado for o interessado, que se organize um sistema de bolsas, concedidas mediante concurso apropriado à justa seleção dos bolsistas.

Outro não é, aliás, o princípio consagrado pela Constituição: o ensino primário será gratuito e o posterior ao primário gratuito para todos os que provarem insuficiência de recursos. Tal princípio deixa claramente subentendido que o ensino posterior ao primário somente seja acessível aos que a ele se habilitam mediante alguma forma de concurso. Para que este concurso tenha valor para o Estado e possa prover o custeio dos estudos dos alunos por ele selecionados, seria necessário que tal concurso fosse feito por meio de exames de Estado. De qualquer modo, o ensino posterior ao ensino primário, pela Constituição, só deve ser gratuito para os que provarem insuficiência de recursos, justificando-se, assim, a instituição de taxas para todos os demais, o que viria a criar-lhe uma nova fonte de recursos e limitar a sua expansão indiscriminada.

A necessidade de educação no Brasil se mede pelo quadro constante do gráfico da página 393. O nosso deficit no ensino primário é da ordem de 1.200.000 crianças, em números redondos, para assegurar quatro graus escolares a todas as crianças de 7 a 11 anos de idade.

Considerando-se que esse mínimo já não é satisfatório e que precisamos elevar a escolaridade obrigatória a 6 anos, temos que o deficit sobe a 3.668.000, incluindo-se os alunos de 12 e 13 anos. Somente este deficit não poderá ser coberto por menos de 4 bilhões e 16 milhões, à razão de Cr$ 1.200 por aluno, custo médio atual do aluno primário em todo o Brasil.

Se admitirmos que, no ensino médio, devemos elevar a matrícula nos dois últimos anos do 1º ciclo pelo menos ao dobro da atual, teremos que receber, nas duas séries, mais 223.000 adolescentes, que importarão no mínimo em mais 1 bilhão e 160 mil cruzeiros, a Cr$ 5.200 por aluno, custo médio atual.

Resta o aumento a ser previsto para o curso de colégio ou segundo ciclo do ensino médio e para o ensino superior. Para o segundo ciclo, o aumento mínimo seria de 50% da matrícula atual, o que elevaria os atuais 192.000 a 250.000, com uma despesa mínima de mais de 300 milhões de cruzeiros.

No ensino superior, a expansão se teria de fazer em obediência a um sistema de prioridades, em que se assegurasse às escolas de engenharia e aos estudos científicos o necessário desenvolvimento.

Para expansão dessa grandeza e assim disciplinada (vide gráfico na página 402), não podem bastar os recursos orçamentários, embora estes tenham de ser elevados ao máximo da resistência da Nação.

Tomando-se a renda total da Nação, que foi em 1956 de 691,2 bilhões, e considerando-se que em 1953 ela despendeu com a educação 2,8% dessa renda, teremos que não seria impossível a despesa em 1956 de 19 bilhões e 353 milhões. Como apenas despendemos 14 bilhões e 65 milhões, teríamos a margem possível de 5 bilhões e 288 milhões, o que daria para o aumento do ensino primário e do ensino médio, com exceção do segundo ciclo. Isto, sem onerar a sociedade mais do que foi ela onerada no ano de 1953.

Admitindo-se que este não seja o máximo, pois os próprios Estados Unidos da América despendem 3% de sua renda total no custeio da educação e nós apenas 2,8%, no ano em que mais gastamos, proporcionalmente, poderiam ser criadas taxas de matrículas, a partir do ensino médio, a serem pagas por todos os alunos, para cobrir as despesas do ensino acima da média das despesas atuais, o que daria margem ao melhoramento do ensino. Os alunos que não pudessem pagar, receberiam bolsas de estudos a serem custeadas pelos interessados no preparo ministrado pelas escolas, de acordo com o nível de estudos e os seus diferentes ramos. O Estado, o Comércio, os Bancos, a Indústria, os Serviços Públicos se associariam na constituição desses fundos para bolsas de estudo, de acordo com os seus interesses particulares, seja no ensino médio, seja no superior.

Estabelecido que fosse o regime do ensino pago pelo aluno, acima de um mínimo básico a ser custeado pelo Estado, em cada curso, melhorar-se-ia o tom de seriedade de todos os estudos, professores e alunos se tornando responsáveis pela sua eficácia e pelo seu resultado. A gratuidade generalizada de hoje concorre, indiscutivelmente, para certa irresponsabilidade reinante no campo do ensino.

Outro aspecto a considerar no ensino superior é o do trabalho remunerado do estudante. É evidente que devemos admiti-lo, mas somente no próprio estabelecimento de ensino. Trabalhos de secretaria, de datilografria, de asseio, de auxilio técnico, de biblioteca, todas as funções suscetíveis de serem organizadas na base de tempo parcial devem ser postas à disposição dos alunos, que, deste modo, ganharão para sua subsistência e para o pagamento das taxas de matrículas. Organizadas as escolas no regime de tempo integral, com refeições, estudos, esportes, recreação, aulas, trabalhos de laboratório e exercícios práticos, muita função remunerada poderá ser criada para os estudantes, assegurando-lhes deste modo certa renda para custeio das despesas dos estudos.

Conclusão

Nesta análise, talvez longa, mas na realidade sumária, da situação educacional brasileira, procuramos mostrar duas tendências muito acentuadas e que nos parecem graves e até perigosas para o adequado desenvolvimento brasileiro.

Vimos como a expansão educacional obedece à tendência de alargar as oportunidades de educação seletiva para a classe média e a superior e à de custeá-la com recursos públicos subtraídos à educação popular e à educação de formação para o trabalho produtivo.

As duas tendências são sobrevivências do modesto sistema educacional de antes de 1930, destinado a uma sociedade em estado de relativa estagnação, com reduzidíssima classe média e também pequena classe superior.

A exaltação dessas tendências numa sociedade em transformação acelerada, com um operariado crescente e crescente aumento da classe média, corre o perigo de prejudicar a distribuição regular das classes sociais no Brasil, impedindo o desenvolvimento adequado do operariado e incentivando, na classe média, um falso espírito de privilégio. É da natureza da classe média não ser uma classe privilegiada. O vigor moral dessa classe está exatamente em não se sentir privilegiada e buscar, com certa nobre gratuidade, sustentar os padrões de dignidade e decência que constituem os seus pontos de honra.

Os nossos deveres para com o povo brasileiro estão, assim, a exigir que demos primeiro a educação adequada às classes populares, a fim de lhes aumentar a produtividade e com ela o seu nível de vida. Somente depois de darmos estas oportunidades educativas básicas - que a todos devem ser obrigatoriamente dadas - poderemos passar à educação da classe média e da superior, pedindo-lhes, então, que socorram o Estado, assumindo parte do custo dessa educação em retribuição à manutenção do status social que lhes é, e muito justamente, tão precioso. Como a educação da classe média e superior é também essencial ao Estado, deve este custear parcela substancial dessa educação mas sem que isto importe em sacrificar a educação popular, pois esta, mais do que aquela, assegura a estabilidade social, no estágio de consciência popular em que vamos ingressando.

Custeando-a, assim, em parte, o Estado terá o direito e o poder de impor o sistema aberto de classes, e permitir que os mais capazes possam ascender às classes superiores seguintes. Isto também concorrerá para a estabilidade social. Mas se criarmos, ao invés disto, como vimos fazendo, um sistema regular de ascensão social pela educação, não ministrando a educação adequada às classes populares e suprimindo das classes médias e superiores o senso do sacrifício e do esforço necessário para nelas se manterem, o que equivale a torná-las privilegiadas, estaremos criando o fermento das grandes inquietações sociais e favorecendo um estado de coisas de desfecho pelo menos imprevisto.

A educação sempre se apresentou como a alternativa para a revolução e a catástrofe, mas, para isto, é necessário que não se faça ela própria um caminho para o privilégio ou para a manutenção de privilégios.

Façamos do nosso sistema escolar um sistema de formação do homem para os diferentes níveis da vida social. Mas com um vigoroso espírito de justiça, dando primeiro aos muitos aquele mínimo de educação, sem o qual a vida não terá significação nem poderá sequer ser decentemente vivida, e depois, aos poucos, a melhor educação possível, obrigando, porém, estes poucos a custear, sempre que possível, pelo menos parte dessa educação, e, no caso de ser preciso ou de justiça, pelo valor do estudante, dá-Ia gratuita, caracterizando de modo indisfarçável a dívida que está ele a assumir para com a sociedade. A educação mais alta que assim está a receber não lhe dá direitos nem o faz credor da sociedade, antes lhe dá deveres e responsabilidades, fá-lo o devedor de um débito que só a sua produtividade real poderá pagar.

Bem sei o quanto é difícil criar, entre nós, um tal espírito. Muitos dirão que será mesmo impossível. Persisto em crer o contrário. Os nossos jovens das escolas superiores podem não possuir a consciência perfeitamente nítida de quanto são privilegiados. Mas, é indiscutível que os agita um certo senso de dever social. Esclarecimentos como estes que estive aqui a procurar prestar juntar-se-ão a outros, até que se forme a consciência necessária para as duas reformas indispensáveis: a reorientação da escola para que a mesma se faça uma escola de trabalho e de preparo real e não apenas de atividades rituais para o diploma, e a redistribuição dos recursos para a educação, estabelecendo-se a prioridade da gratuidade do ensino popular universal e o custeio do ensino pós-primário e superior em parte com recursos públicos e em parte com recursos do estudante, salvo se lhe não assistirem condições para tal e houver obtido a matrícula em concurso público feito em escolas oficiais.

Com estas duas reformas, teremos corrigido, acredito, as duas tendências menos promissoras e de certo modo graves do nosso sistema educacional e, ao mesmo tempo, aberto um novo caminho para a sua expansão que se vem fazendo e se há de fazer cada vez maior e mais ampla, constituindo cada desenvolvimento a base sólida para um novo desenvolvimento e não um progresso ilusório, destinado tão-somente a criar amanhã problema ainda maior para a escola e para a sociedade.

Referências Bibliográficas

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------------. Educação. Problema da Formação Nacional.

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