TEIXEIRA, Anísio. A escola secundária em transformação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.21, n.53, abr./jun. 1954. p.3-20.

A ESCOLA SECUNDÁRIA EM TRANSFORMAÇÃO(*)

ANíSIO TEIXEIRA
Diretor do Instituto Nacional
de Estudos Pedagógicos

A minha satisfação de participar dêste seminário é grande e ainda a aumentam as palavras generosas, que o Dr. Armando Hildebrand acaba de pronunciar.

Em tôda a minha vida, jamais procurei formar discípulos. A minha própria filosofia, assistemática, não comporta mesmo a idéia de ter discípulos. Para ela, para mim o pensamento humano está em permanente reconstrução. Busco, humildemente, participar ou, pelo menos, acompanhar essa reconstrução. Geralmente, no meu contacto com os outros, antes procuro avivar-lhes o sentido de revisão e estimulá-los a se criticarem, do que formá-los ou convencê-los, catequizando-os. E assim é que, freqüentemente, talvez perturbo mais do que educo.

Quando me encontrei com o atual Diretor do Ensino Secundário pela primeira vez, já me encontrei com um colega e não com um discípulo. E foi grata a satisfação de me sentir identificado, na maioria dos pontos de vista a respeito de educação, com o jovem mestre que, ao longo do seu tirocínio e da sua experiência, veio a adotar posição muito aproximada da minha própria posição.

O Professor Armando Hildebrand pediu-me para vir até aqui, a fim de que os Inspetores de Ensino Secundário me conhecessem. Confesso que isso seria um pouco constrangedor, se não soubesse que, com tais palavras, o professor Hildebrand queria apenas significar a liberdade com que desejava que me entendesse com os senhores. A liberdade e a franqueza foram, pois, ditames imperadores e a reunião visaria antes uma conversa entre educadores do que uma aula ou uma conferência.

Direi, aliás, sôbre a escola secundária brasileira certas cousas muito óbvias, porque muito elementares, mas indispensáveis para se perceber nìtidamente o que está ocorrendo em sua evolução. Êsse óbvio, êsse elementar me obrigará a recuar um pouco no tempo.

A escola secundária brasileira sempre foi, no passado, uma escola preparatória. Preparava os candidatos ao ensino superior; como escola de "preparatórios", tinha objetivos determinados e uma clientela determinada. A clientela era a que se destinava ao ensino superior; e os objetivos, os de fornecer o que, na época, se chamava de cultura geral. Tal escola secundária, como aliás a escola secundária de todo o mundo, sendo preparatória para o ensino superior, não visava dar nenhuma educação específica para ensinar a viver, ou a trabalhar, ou a produzir, mas, simplesmente, ministrar uma educação literária, que era tôda a educação que a êsse tempo se conhecia.

Hoje, não se desconhece que há três tipos de educação: podemos dar, na escola uma educação literária, uma educação científica, ou uma educação técnica.

Mas, a educação literária era a única educação existente no mundo, até, pelo menos, o século XVII. Até então, em todo o mundo, a única forma de alguém se educar consistia em buscar apropriar-se dos grandes documentos da cultura literária. Eram os grandes livros da literatura grega, os grandes livros da literatura romana, nos quais a ciência era apenas um balbuciar de ciência, que resumiam os conhecimentos existentes até a época. O conhecimento das línguas clássicas, portanto, e dos monumentos que os seus melhores conhecedores puderam escrever, monumentos artísticos ou monumentos de pensamento, representavam a cultura da época. De maneira que, até então, para um homem se reputar completamente educado, teria que entrar na posse da cultura em livros e em livros geralmente anteriores à sua época.

Tôda a educação consistia em levar o homem a se familiarizar com os grandes documentos literários da cultura grega e da cultura latina, e com os comentários sôbre tais culturas, não havendo nenhuma expressão de cultura atual, local ou nacional.

Falar-se em cultura e falar-se em humanidades era falar nesse apropriar-se da obra literária antiga e anterior à vida contemporânea do histórico em curso. A escola, até a época a que remontamos, não resolvia nenhum problema presente; os homens se cultivavam para ficar de posse de uma herança literária da humanidade e se fazerem os seus apreciadores e os seus comentadores ou continuadores.

Sòmente a partir do século XVII, podemos falar em uma cultura própria da época. Vale lembrar que, em rigor, podemos datar a ciência de Descartes. O que havia antes, era comêço, relativamente insignificante, e, sobretudo, sem nenhum reflexo, sôbre a vida prática dos homens.

Vejam bem que a cultura não visava a resolver nenhum problema de produção econômica, nem resolver nenhum problema material ou prático da vida corrente. A escola cultivava certas pessoas, transmitindo-lhes a herança intelectual da espécie, herança que estava consubstanciada em certos grandes livros. Era esta a chamada educação humanística. Conhecer a cultura grega e a cultura romana importava em ser educado nas humanidades. Tais "humanidades" produziam o que se chamava o homem livre; a educação liberal, quer dizer, a educação pela qual o homem, tomando conhecimento de tôdas as conquistas intelectuais dos antigos, se fazia um homem livre, isto é, um homem com o poder que a sabedoria antiga até então dava aos seus portadores.

Ora, a sabedoria antiga, apesar de tôda a sua extrema importância, desenvolveu-se e vem-se desenvolvendo em tôda a humanidade, até os nossos dias; mas, sobretudo, vem se desenvolvendo, a partir do século XVII, no sentido de se fazer uma cultura científica e depois técnica. A escola, entretanto, continuou no seu hábito de transmitir uma cultura pretérita, só do passado...

Ainda no século XIX, um país como a França conserva a educação secundária de tipo humanístico, destinada a transmitir aos seus alunos a cultura greco-romana, a cultura chamada clássica, porque esta é que seria a cultura formadora, ignorando as outras culturas que se vinham elaborando, desde o século XVII, e que, resultado de transformações da sociedade, por seu turno, estavam começando a transformar acentuadamente a vida humana.

Ao findar o século XIX, é que surge uma certa inquietação e se começa a perceber que tal educação já não atendia aos problemas contemporâneos. Cultura, sobretudo do século XIX até os nossos dias, não podia ser apenas o conhecimento de coisas existentes em livros de uma cultura passada. A cultura da época, a cultura contemporânea, predominantemente científica e técnica, e, quando literária, constituída por grandes documentos literários da fase histórica em curso, tem que ser o objetivo da escola, pois agora já temos a nossa própria civilização com a sua literatura, a sua ciência e as suas técnicas.

E se analisarmos desde o fim do século XIX, mais profundamente, o problema da educação adequada ao nosso tempo, verificamos que a educação técnica, e não a literária ou mesmo a científica, é que deveria ser a educação comum a todos os homens. A literária já é uma especialidade, a científica ainda, outra especialidade, e a técnica é que passa a ser a educação generalizada, necessária a todos e que todos devem possuir.

Aliás, - e aqui destaco - seja a educação predominantemente literária, seja a científica ou a técnica, tôdas elas, em rigor, participam dos três aspectos da educação.

Ninguém adquire - para só considerar a mais tradicional - uma educação literária, se não adquire as técnicas do trabalho literário, que se baseiam nos aspectos científicos do conhecimento da língua e da literatura. Uma coisa é o primeiro deslumbramento com a literatura, em que se vive a fase de consumidor encantado com as maravilhas que a literatura oferece, e outra coisa é a segunda fase, pela qual alguém se faz literato e conquista o pleno conhecimento da língua e da sua gramática. Êste conhecimento é tão científico quanto qualquer outro conhecimento de ciência. Assim como, em ciência, teria que conhecer a gramática da ciência, em literatura, teria que conhecer a gramática da língua e da literatura, que constituem verdadeiro estudo científico. E para passar a ser um produtor em literatura, terá o estudante também que aprender as técnicas da literatura.

Com efeito, tôda e qualquer educação, sabemo-lo hoje, é, fundamentalmente, técnica, embora tenha e deva ter sempre seus aspectos científicos e literários ou estéticos. Daí, também a impropriedade do conceito restrito de educação humanística, que herdamos da Idade Média. Como só existia, outrora, a educação literária, considerávamos a educação científica ou técnica, como formas à parte, mecânicas e limitadas de educação, sem a harmonia e o sentido integrador da educação literária. Hoje, tôda a educação dever ser essencialmente técnica, com o enriquecimento do aspecto científico, quando pudermos ensinar o fundamento teórico das técnicas, e do aspecto literário ou estético, quando ensinarmos também o sentido humano das técnicas e lhes acrescentarmos essa dimensão imaginativa.

Em relação à educação secundária, em particular, quer isto dizer que, assim como no passado a identificávamos com a educação literária, hoje devemos identificá-la com a educação técnica. Na vida moderna, tôda educação secundária, isto é, a educação que sucede à comum educação fundamental ou básica, elementar ou primária, deve ter em vista habilitar os seus alunos à posse de um instrumental de trabalho, seja no campo técnico, seja no campo científico, seja no campo literário. Mas, em todos êsses três campos, cumpre que a educação cultive as três modalidades de uma verdadeira formação integral, ensinando as técnicas ou modos de fazer, as fundamentações ou as teorias das técnicas, o que é ciência, e o lado estético imaginativo das mesmas técnicas, o que é arte e literatura, isto é, cultivo das formas de sentir e viver, que se inspiram nas técnicas. Em cada um dos três campos, seja no da educação literária, seja no da científica ou seja no da técnica, há que seguir os três estágios de uma verdadeira formação humana contemporânea. E, neste sentido, tôdas as três educações serão educação humanística.

Até aqui, um lado da evolução da escola secundária. O outro lado da evolução está no fato de que, no curso da história, a escola secundária, que tinha, por finalidade exclusiva preparar um pequeno grupo de "pessoas cultas" ou o dos "intelectuais", de trabalhadores da "elite", de literatos, a escola secundária, em virtude da evolução da própria civilização, passou a ser uma instituição absolutamente necessária, não já para a ilustração de alguns espíritos, não já para habilitar aquêle grupo especializado de intelectuais, de trabalhadores de nível científico ou técnico ou literário, mas para habilitar os homens a viver adequada e inteligentemente.

Com efeito, anteriormente, o trabalho e a produção estavam fora da escola. Sòmente com a civilização contemporânea, civilização que tem apenas 150, ou melhor 100 anos, porque sòmente há 100 anos os resultados pròpriamente da ciência e dos laboratórios estão sendo aplicados à vida, é que a arte de viver passou a precisar de ser aprendida, e aprendida na escola.

Até 1850, podíamos em rigor dizer que a vida evolvia melhorando empìricamente as suas técnicas de produção, as suas técnicas de trabalho, mas sem sofrer nenhuma ação direta e patente da ciência. Esta, como obra intencional, formulada teòricamente pelos homens, não se aplicava à vida. Aplicou-se, entretanto, e mais e mais, a partir da máquina a vapor, e, depois dessa aplicação da máquina a vapor, é que passamos sucessivamente a sofrer-lhe o impacto e a ver a vida modificada e alterada, cada vez mais, pelas tecnologias, pelas técnicas que decorriam do conhecimento elaborado pelo homem, dos seus conhecimentos teóricos e científicos.

Ora, é esta civilização tecnológica, esta civilização de aplicações de ciência, cada vez mais numerosas e em ritmo acelerado, é ela que está transformando tôda a nossa vida, transformando nossos métodos de alimentação, nossos métodos de vestir, nossos métodos de residir, nossos métodos de comportamento, criando condições novas para a nossa própria evolução pessoal. E é esta nova civilização que passou a exigir, para todos os indivíduos, não um mínimo de educação escolar, mas uma educação escolar suficientemente desenvolvida para nos permitir viver e compreender as novas complexidades da vida.

Não se trata mais - note-se bem - de educação, pura e simples, que desta sempre a humanidade precisou; mas de educação escolar; isto é, educação que se recebe especialmente, numa instituição especial, chamada escola. Anteriormente à nossa época, o homem se educava para a vida, vivendo, e ia à escola aprender certas técnicas de que precisava, ou para a profissão, ou para a ilustração. Do século XIX em diante, começa a surgir a necessidade absoluta de educação escolar para todos.

O Estado, então, assume a responsabilidade do processo educativo escolar, que a humanidade havia, desde os tempos mais remotos, considerado um processo altamente especializado para algumas pessoas, e cria a escola primária compulsória, obrigatória para todos. Esta escola primária é uma escola que dá aquêle mínimo que o Estado pode pagar de educação, mas como é uma educação para todos, já não é a educação puramente intelectual, já não é uma educação livresca, já não é uma educação especializada, científica, literária ou técnica, mas é a educação comum de que qualquer pessoa precisa para poder viver.

Uma educação dêsse tipo, desde o início adotou certos aspectos práticos. Não era, pura e simplesmente, uma réplica elementar da escola tradicional e convencional, a ensinar cousas abstratas ou de outra época. A escola primária nasce assim, com um pouco de preocupação pela realidade ambiente, ao lado da escola secundária tradicional, intelectualista e livresca, distanciada da vida, do contemporâneo e das necessidades práticas da existência. Porque, como já acentuei, a escola tradicional visava à aquisição de uma cultura anterior à sua época, cultura que se assimilava, a princípio, numa língua morta. Com efeito, era pelo latim, no chamado ocidente, que o homem se cultivava, pelo latim é que se transferia para a comunidade dos homens cultos e passava a viver entre os seus clássicos, distante da realidade contemporânea e da vida corrente, cujo conteúdo não interessava à escola, isto é, às escolas tradicionais antigas, secundária e superior, que precederam a escola primária, de constituição muito mais recente. Foi esta escola primária que deu início a uma pedagogia de certo modo diferente da tradicional. Sendo uma escola despretensiosa e prática, admitia que ao lado de ler, escrever e contar, pudesse acrescentar algo de educação religiosa, moral e utilitária. Tal escola primária, sem feições intelectualistas, nos países de evolução normal, chegou a evolver paralelamente ao outro sistema tradicional de educação. Na França, na Europa tôda, de um modo geral, verificamos o dualismo de um sistema de educação popular e de um sistema de educação para elite, ou educação secundária e superior, lado a lado. O sistema de educação popular passou logo a compreender a escola primária e escolas posteriores à primária, como a escola complementar, que muitos de nós chegamos a conhecer mesmo no Brasil, e que, na França, era a escola primária superior, seguida da escola normal para a formação de professôres primários, tal sistema existia paralelamente ao outro sistema, acadêmico, das escolas secundárias e superiores. O "acadêmico" preparava a "elite", e o "popular" preparava o "povo ".

Que se está dando presentemente? Está-se dando, não sòmente no Brasil, mas no mundo inteiro, a transformação da escola secundária, no sentido de perder o caráter de escola de "elite", o caráter de escola intelectualista, e de adotar a pedagogia e a psicologia da escola primária. Não se trata de uma luta de sistemas pedagógicos, mas de um desenvolvimento institucional, conseqüente a mudanças sociais. Primeiro, há a mudança de clientela da escola secundária, que já não é especìficamente a de pessoas que se destinem ao ensino superior. Já agora a clientela é mais de pessoas, que, julgando o ensino primário insuficiente para a sua formação, desejam de qualquer modo continuar, prolongar a sua educação. Buscam, então, a secundária, porque esta educação secundária, dentre os diversos ramos da educação média, é a de mais prestígio e, além disto, a única que até pouco tempo atrás permitia a continuação indefinida da educação, até os níveis mais altos. O sistema paralelo "popular" de escolas médias - escolas normais e profissionais - não assegurava a possibilidade de continuação da educação. Daí não merecerem tais escolas a preferência das camadas populares em ascensão e com um novo senso dos seus direitos. Estas escolas nunca conseguiram prestígio equivalente ao da escola secundária, aureolada pela idéia de que ministraria cultura geral, cultura humanística destinada a conduzir à elite, ao nível das classes dominantes, freqüentada que sempre fôra antes sòmente por pessoas com suficiente lazer para fazer cultura, adquirir cultura e gozar a cultura.

As novas gerações, cada vez mais oriundas das camadas populares, buscam essa escola, na ilusão de que, não sòmente vão ali adquirir a "melhor" educação, uma vez que a escola se destinava aos "melhores" ou melhor classificados socialmente, como também o meio mais fácil de "melhorarem" ou se "reclassificarem" melhor socialmente. Mas, tal mudança de clientela vai, inevitàvelmente, mudar a escola. Com efeito, tomada de assalto, a escola secundária está-se multiplicando entre nós a torto e a direito e, por fôrça mesmo dêsse crescimento, vai simplificar-se e fazer-se uma escola diversificada e heterogênea, em evolução desigual, tal qual a escola primária. Todos os padrões se vão romper, estão-se rompendo, e a orgulhosa escola secundária se vai fazer uma escola em prolongamento da escola primária, boa aqui, regular ali e péssima acolá, sem padrões fixos, mas, em transformação constante.

Êste é o fato que cumpre reconhecer. Todos os brasileiros estão querendo ter educação secundária, estão ganhando consciência dessa necessidade e querem ter a educação secundária, e uma educação secundária que lhes abra tôdas as portas. Por isto não desejam a educação técnico-profissional, nem a normal, nem a industrial, que lhes vedam alguns caminhos de acesso social.

Êste movimento é absolutamente geral em todo o mundo. Na França, em 1930, a despeito dos seus quarenta milhões de habitantes, havia apenas cêrca de 100.000 alunos no ensino secundário. Hoje, está com o mesmo problema que nós, tem mais de um milhão de alunos no ensino secundário. E esta proporção, note-se, já foi ultrapassada por nações outras, mais renovadas na base econômica e nos seus ritmos de progresso. O movimento de massas - pelo qual as camadas que não pertenciam às chamadas elites e, longe delas, não tinham lazer nem condições econômicas suficientes para prolongar a sua educação, estão tôdas buscando educação secundária - vai transformar fundamentalmente essa educação secundária.

A reforma de 1902 da França dividia o velho curso humanístico em 4 ramos, que, no fundo, se resumiam em dois, como os daqui, depois de 1937 - o clássico e o científico. Já no comêço dêste século, a França se vira coagida assim a quebrar a rigidez da formação humanística, reconhecendo ao lado das humanidades clássicas as "humanidades" modernas. Era ainda um dualismo que haveria de evolver para o pluralismo americano ou, melhor, para uma compreensão mais ampla e unitária da cultura, que pode ser transmitida "humanìsticamente" em qualquer dos seus aspectos, seja literário, científico ou técnico.

É o novo sentido que se define da escola secundária, cuja evolução se irá fazer fatalmente em virtude do crescimento de sua clientela, hoje, diversificada e múltipla, e, em virtude dessa compreensão mais perfeita da cultura de nossa época, tôda ela hoje científica ou técnica, e entretanto capaz, pela natureza teórica dos seus conhecimentos e pela amplitude humana de sua aplicação, de produzir uma educação humanística. A escola secundária vai-se fazer a escola para os adolescentes, destinada a prolongar a educação humana além do período primário, oferecendo aos seus alunos a mais variada gama de oportunidades educativas, capazes de formá-los de acôrdo com as suas aptidões e as suas capacidades. Em vez de ser uma escola exclusivamente de elite, com uma pequena matrícula de alunos predispostos a se fazerem helenistas, latinistas, cientistas ou, de modo geral, intelectuais; será uma escola para todos, a todos educando e orientando segundo suas aptidões, para o trabalho, hoje sempre técnico, seja no campo do comércio, da indústria, das letras ou das ciências. Está claro que tal escola, visando a educação de muitos, senão de todos, não pode ter a pretensão de fazê-los todos "intelectuais", no velho e costumeiro sentido da prestigiosa palavra. Mas se todos não serão intelectuais, todos deverão ser instruídos e formados para participarem de uma civilização que não é simplesmente empírica, mas racional e científica, intencionalmente construída pelo homem e tôda construída sôbre tecnologias e técnicas cada vez mais dependentes da inteligência compreensiva, informada e orientada, socialmente ajustada e individualmente cooperante, na medida dos próprios meios.

A nova pedagogia da nova escola secundária será, assim, a pedagogia da formação do adolescente, insistimos; como a da escola primária é a pedagogia da formação da criança. O programa consistirá de atividades educativas de nível adaptado a adolescentes, na diversíssima variedade de suas aptidões. Sempre, entretanto, se poderá dizer que a educação se fará ou predominantemente literária, ou predominantemente científica, ou predominantemente técnica, conforme os interêsses dos alunos, os seus talentos e a sua capacidade. Em cada um dêsses aspectos, haverá ainda variedades, pois, em rigor, tôda educação atende ao individual e cada aluno se educará de um modo especial ou com um cunho pessoal. O importante é saber que, nas condições atuais de conhecimento humano, a escola pode dar uma educação integral mediante o ensino adequado de qualquer programa. A regra de ouro é ensinar pouco e bem, pois se fôr bem, o pouco permitirá que, depois, o aluno se auto-eduque. A particularidade do homem é ser êle auto-didata. Os animais podem ser "ensinados", ou melhor "adestrados", o homem não é "ensinado" mas aprende por si. E a finalidade da escola é torná-lo capaz de fazê-lo ampla e abundantemente, poupando-lhe desperdícios e descaminhos evitáveis. Por isto é que a escola secundária inglêsa ou americana tem a liberdade que possui de organização de programa, de seriação e de método, sujeita a inglêsa sòmente à limitação de exame final feito na Universidade.

A solução por mim aventada de exame de Estado, entre nós, visa poder levar a escola secundária a essa liberdade de organização e variedade de níveis, inevitável pelo menos na sua fase atual de desenvolvimento, sujeitando-a entretanto, a êsse contrôle remoto dos exames finais ou de passagem de um curso a outro. Sòmente, assim, poderemos olhar sem receio para a expansão irrefreável do ensino secundário. Permitir essa expansão sem medida nem padrões, e dar a tôdas as escolas o benefício da sanção oficial, indistintamente, é igualizar cousas desiguais e desmoralizar a boa educação em face da sofrível e da absolutamente má ... Demos liberdade à escola secundária e classifiquemos e julguemos, no fim da jornada, os seus produtos, os seus alunos, dando a cada um segundo o que cada um adquiriu na sua luta livre pela educação. Assim é na Inglaterra. Só existe uma limitação: o aluno tem que passar por um exame, perante professôres estranhos, ao entrar na Universidade.

Não vejo razão para não tentarmos algo de semelhante. Mais; não vejo meio de evitar uma solução dêsse gênero. Pois, a escola secundária, por motivo da sua expansão, terá de adotar a pedagogia da escola popular, isto é, escola para todos, e neste sentido, da escola primária. E escola tal se caracteriza por não ser uma escola intelectualista e livresca, mas uma escola de formação prática, com programas utilitários e destinados a habilitar o aluno a viver e ganhar a vida. Nisto se terá de transformar a escola secundária, uma vez passando a ser a continuação da escola primária.

Ora, ninguém repute que essa continuação da escola primária seja uma perda de categoria para a escola secundária. A escola primária, também desde 1900, pelo menos, vem passando por uma transformação e uma reforma de métodos e de objetivos muito grande. A escola primária está sendo a escola mais ambiciosa dos três tipos de escola que possuímos. É uma escola que está visando formar efetivamente a criança, não só intelectualmente, mas moral e pràticamente, quer dizer, visa dar-lhe educação nos três grandes aspectos que a educação pode assumir. De maneira que se a escola secundária continuar a escola primária, não irá perder, antes ganhar categoria, porque as diferenças de educação, como educação para todos e ajustada a cada indivíduo, são apenas as que decorram das diferentes idades dos respectivos alunos.

Caberia aqui uma rápida análise do processo educativo como o concebe Whitehead, num daqueles seus pequenos e penetrantes ensaios, condensados no seu livro "Aims of Education" Whitehead esclarece aí que a educação tem um ritmo próprio, ritmo que é o ritmo do espírito humano na aquisição do conhecimento. A primeira fase do conhecimento é a fase de romance como compreendem os anglo-saxões êsse têrmo, isto é, uma fase imaginativa, a segunda fase, a da precisão e do detalhe e a terceira, a da generalização. Na primeira fase, o conhecimento deve ser adquirido com certo globalismo impressionista; numa segunda fase, tomado o gôsto pelo conhecimento, o indivíduo passa a desejar dominá-lo precisamente, exatamente, e chega-se ao compasso do detalhe, do esfôrço e disciplina e, depois, atravessado o compasso da especialização, entra-se novamente no compasso da liberdade, quer dizer a generalização, o estado de posse perfeita do conhecimento e do seu jôgo em plena liberdade. Tôda a educação segue êsse ritmo: imaginação, deslumbramento, "romance"; precisão, detalhes, esfôrço e disciplina; generalização ou liberdade. Começo a conhecer numa certa forma de liberdade, alargando os olhos sôbre o campo novo do conhecimento que estou a buscar. Depois, conquistado e interessado por êste campo de conhecimento, desço ao pormenor, à minúcia, ao conhecimento das particularidades, constrangendo-me e disciplinando-me nos esforços necessários para, afinal, reconquistar, em novo nível, a liberdade inicial com a posse precisa e completa do conhecimento. Tal ritmo, diz Whitehead, não se encontra sòmente em cada um dos períodos de aprendizagem mas também na vida, considerada ela como um todo.

O período da escola primária é um período de certo deslumbramento com o conhecimento humano, período de conhecimento impreciso e imaginativo ou impressionista; o período da escola secundária é um período de precisão e disciplina na aquisição do conhecimento; e o período da universidade é o período da generalização, da autonomia e da liberdade. De modo que o aluno, de maneira geral, deve encontrar liberdade e direção moderada e compreensiva na escola primária, atingir na escola secundária uma fase de trabalho mais exato, mais disciplinado e mais rigoroso, e reconquistar, afinal a sua autonomia, a sua liberdade, baseado nos seus novos poderes, nos poderes que deram a posse completa do conhecimento, na universidade.

Acrescenta o filósofo, então, uma observação muito interessante: e é que no processo de conhecer nem sempre se parte do mais fácil para o mais difícil, mas, do mais difícil para o mais fácil. Com efeito, vejamos como se passam as cousas na vida. Que é que aprende primeiro a criança na sua luta para se fazer um ser humano? A falar. E que é falar? Ouvir sons, perceber o que significam e usá-los adequadamente em situações sempre novas, pois novo é todo o mundo em que passa a criança a participar. Haverá algo mais difícil? Dar sentido aos sons, compreender as suas relações, identificá-los com as cousas, com o espaço, com o tempo, com as pessoas e usar êsses sons, em tôdas as suas variedades de tom e de sentido ... Que álgebra será mais difícil do que esta? Entretanto, a conquista da fala faz quase sem pedagogia, e aos três anos uma criança normal domina satisfatòriamente a técnica da linguagem.

Agora mesmo está em um dos nossos cinemas uma fita inglêsa sôbre a educação dos surdos-mudos. Nenhum educador devia deixar de ver esta fita, para ter o conhecimento concreto de como é difícil falar. Desde que nos falte um dos sentidos necessários a essa imediata captação da linguagem humana, que é o ouvido, logo se pode ver que inaudita proeza intelectual representa o ato de aprender a falar. Perceber o som, ser capaz de reproduzi-lo e ligá-lo às cousas e pessoas e atos, e jogar com êstes sons na linguagem articulada - perceber a dificuldade de tudo isto - só é possível acompanhando-se o trabalho dos educadores especializados, que ensinam os surdo-mudos a falar. Só então teremos exata, concreta e realìsticamente a idéia de quanto é difícil falar. Entretanto, a criança realiza entre 1 e 3 anos de idade essa proeza extraordinária. E a realiza sem nenhuma pedagogia, sem nenhuma escola.

A explicação está em que somos animais que aprendem. Aprender é a nossa forma natural de desenvolvimento, e por isso crescemos em fôrça e poder, em conhecimento, à medida que vivemos. Todos os segredos da pedagogia estão nesse caráter auto-didático fundamental do homem. Tôdas as vêzes que se criarem na escola condições semelhantes às em que vive a criança de 0 a 3 anos, as crianças aprenderão inteligentemente, as crianças revelarão uma enorme capacidade de esfôrço e as crianças ganharão a posse, realmente o poder novo, que significa um novo saber, que significa "ser educado". Porque ser educado não é saber informações, não é saber falar sôbre as coisas. Educar-se é passar por uma transformação da própria pessoa, atingir um nível mais alto de poder, e êsse novo nível de poder é o que verificamos em cada fase por que passa a criança que ainda não chegou à escola. Primeiro, não sabe caminhar. Lentamente aprende, aprende e conquista aquela nova forma de poder: caminha. Depois, não sabe falar. E luta, e aprende, e desaprende e volta a aprender, e conquista a capacidade de falar, de expressar os seus desejos, de dizer o que quer, para onde quer ir, conquistando plenamente êste novo poder. Quando a criança não consegue atingir estas etapas de sua educação normalmente e sem dificuldades, o escândalo é tão grande que, logo, se pensa em levar a criança ao médico. É um caso clínico. Se a criança não conseguiu aprender a falar, não conseguiu ajustar-se às suas companheiras, não conseguiu ajustar-se à situação da família, não estabeleceu boas relações afetivas no seu grupo social, todos a imaginamos doente. Entretanto, essas proezas intelectuais e sociais serão tudo menos cousas fáceis.

Em pedagogia, o fácil não antecede o difícil, antes o sucede. O importante é que o esfôrço seja pedido dentro das próprias condições naturais da situação, de modo que a criança esteja percebendo o problema que tem em mãos e deseje resolvê-lo, ou se interesse pelo problema e pela solução. Na escola, entretanto, chegamos a fazer o oposto. Criamos uma série de exercícios absurdos, que seriam viáveis sòmente naquela antiga escola, onde alguém entrava para aprender, em uma língua morta, a cultura de uma época dez a doze séculos anterior. O grupo de especialistas in-fieri que procurava tal escola de antemão sabia que a procurava ou o mandavam lá para isto, e aprendia a especialidade como poderiam aprender qualquer outra.

Uma escola para todos não é, porém, isto. Vai-se ali continuar a aprender o que vinha aprendendo na vida, precisando-se de escola porque a nossa civilização não é uma civilização natural ou primitiva, mas eminentemente intelectual e técnica. Se dermos, assim, à escola primária as mesmas condições em que se faz a educação pré-escolar, antes da criança sofrer a escola, aí também encontraremos as mesmas crianças altamente inteligentes, altamente capazes, altamente interessadas nos seus esforços, cooperando com o professor admiràvelmente e o professor aprendendo extraordinàriamente com elas. Sabemos quanto as mães inteligentes aprendem com os seus filhos. E o que os professôres não irão aprender com as crianças, o dia em que nos resolvermos a nos conduzir inteligentemente como educadores, na escola?!

Terminada a fase, em que a criança se educa sem escola e vem a adquirir perfeitamente as técnicas e os comportamentos que tem a adquirir, nesta fase, ingressa ela na escola para, acima de tudo, conquistar o melhor domínio da linguagem, pois que já aprendeu a falar. Vai aprender a ler e escrever a língua, a perceber-lhe os valores e as potencialidades, usá-la mais ampla, consciente e adequadamente, jogar com os conceitos e as formas de linguagem, os seus símbolos, a sua modalidade conceitual, matemática e gráfica: ler, escrever, contar e desenhar. Não deve a escola estar dominada por nenhuma idéia de fazer da criança um intelectual. A escola tem que fazer com que aquela criança viva êsse segundo período educacional, o período primário, continuando o deslumbramento que é sua iniciação à vida desde o 1º ano de idade.

Terminada a escola primária, entra, já pré-adolescente, na escola secundária. E, para que? Para adquirir nesta escola secundária, que seria então a escola da precisão, do pormenor, da disciplina, o comando mais perfeito daquelas técnicas de linguagem, cuja conquista iniciou na escola primária. A fase do "romance" da linguagem deve ser considerada terminal na escola primária, vai o aluno agora estudar a gramática da língua, a sua estrutura, ver como é que essa língua se arma e se desarma, como é que êle próprio pode manejá-la mais hàbilmente e chegar a expressão escrita e oral não só correta, mas elegante e, se possível, perfeita, e passear êste uso da língua pelos diferentes campos do conhecimento e do sentir humanos. Aprender a língua já é agora, sobretudo, aprender a pensar. Pela língua vai êle se familiarizar com o que o homem fêz e pensou no campo da história e da ciência. Com a ênfase nesse ensino da língua, o aluno pode chegar, na escola secundária, no limiar do seu comando completo, em que adquire a liberdade da generalização. Mas, ao lado disso, inicia o estudo da ciência, de que já teve os primeiros contactos na escola primária, e que, na primeira fase do ensino secundário, constituirá o período do "romance", em que aprende a ciência como algo de global, de forma prática, de modo a lhe dar o sentimento dêsse novo setor do desenvolvimento intelectual do homem.

A cadência e ritmo do processo educativo se entrelaçam, assim, nos diferentes níveis do ensino. De modo geral, repetimos, o período primário é o do "romance", o secundário, o da disciplina e precisão, e o superior, o da liberdade e autonomia. Mas, dentro de cada período, o ritmo se reproduz, em fases de deslumbramento ou romance, disciplina e esfôrço, autonomia liberdade. Na língua, o conhecimento será iniciado na escola primária, e já na escola secundária pode ganhar o período, não sòmente da disciplina, mas até o da generalização; e se inicia, nesse período, por sua vez, com a posse da língua, que não deve ser só a sua, mas a de mais uma, estrangeira, pelo menos, o período de deslumbramento ou "romance" da ciência. A ciência, então, deve ser apresentada, como uma coisa global, resolvendo os problemas cotidianos da vida, sem maiores aspectos técnicos, estritos ou difíceis. É a ciência na sua aplicação imediata à vida, pois que só depois dêsse período de "romance" é que a escola vai procurar dar-lhe os rigores e precisões do pensamento científico, isto é, na segunda fase da escola secundária que, no nosso sistema, é a fase dita colegial. Conjugado com êsse largo ritmo, está o aluno sempre a aprender a fazer cousas e a se conduzir adequadamente; está, por conseguinte, também aprendendo técnicas, porque técnica é, já passou a ser a base de tôda a educação, sôbre que se alarga, acima e em volta, a atmosfera intelectual de compreensão, que o conhecimento pròpriamente dito cria e alimenta.

A formação humana, então, seria uma formação, primeiro em linguagem, no domínio da língua materna e de mais uma língua estrangeira, e sempre que possível, quando o aluno fôr altamente capaz, de uma língua antiga, para, por êste meio, habilitá-lo a dominar completamente o campo e o curso da cultura. Depois, uma introdução à ciência, que deve ir familiarizando o noviço com o pensamento de alta precisão que é o pensamento científico, e, dêste modo, habilitá-lo a entrar na fase da plena compreensão, que será a da generalização.

Quando me refiro a essa capacidade de generalização, peço que não julguem que me refiro a conhecimento de cousas gerais e não especiais. Não. Trata-se de algo diferente. Não há nenhuma educação que não seja especial ou especializada. Nada se pode ensinar, senão como uma especialidade. O modo de tratar esta especialidade é que faz com que o meu conhecimento possa, ou não, atingir a fase de generalização. Não posso ensinar idéias gerais, como idéias gerais. Posso fazer alguém chegar a idéias gerais, mas por intermédio do ensino de algo específico. O que ensino será sempre qualquer cousa particular e especial. Mas, poderei obter que o conhecimento dessa particularidade leve o aprendiz à generalização. Isto é muito importante. O contrário é ensinar o vago e não pròpriamente o geral. No ensino secundário, estarei sempre ensinando especialidades e, por meio delas, procurando atingir a generalização, que é a compreensão mais ou menos profunda. Não posso ensinar conhecimento geral, pois não existe conhecimento geral, mas sim ensinar a generalização de um conhecimento especial. Sempre que estiver ensinando ciência estarei ensinando algo de especializado, o mesmo acontecendo se estiver ensinando música ou desenho; devo entretanto, estar procurando sempre com que o aluno faça desprender daquele conhecimento especial a parte de generalização ou compreensão, que o vai habilitar, exatamente, a, depois, aprender, por si, outras cousas especiais.

Um dos grandes equívocos da escola secundária é julgar que pode ensinar as coisas pela generalidade. Não. Tôda a educação tem que ser especializada ou particularizada. Conforme, porém, o modo de dá-la, poder-se-á levar o aluno além daquilo que especìficamente aprendeu e torná-lo capaz de generalizar os conhecimentos especiais e particulares.

Mesmo na escola primária, tôda a educação se faz por uma atividade especial e todo conhecimento será, de início, um conhecimento especializado. Não irei tentar o ensino de ciência na escola primária, julgando que devo dar conhecimento geral em ciência. Devo dar, mesmo na escola primária, um conhecimento específico e que permita, por meio dêle, atingir a criança aquela compreensão imaginativa da fôrça e capacidade do conhecimento científico. A atividade científica será simplificada por ser simples o problema que se deve oferecer à criança. Mas, a atividade será especialmente científica e não geralmente científica, o que seria absurdo.

A transformação, portanto, por que está passando a escola secundária - digamos, já pensando em concluir - decorre de mudanças sociais, de nossa época, e de mudanças em nossa compreensão do processo educativo. Não é uma mudança voluntária, não é uma mudança que possamos impedir. É inevitável a evolução da escola secundária, como a compreendemos e expusemos; tão inevitável como tem sido inevitável a evolução da Casa Brasileira, do solar em grandes chácaras ou dos sobrados citadinos para o apartamento em horrorosas novas "cabeças de porco".

Está claro que poderei deixar que a transformação se processe livremente, sem intervenção alguma, poderei dificultar a transformação, freiando-a por uma inteligente legislação conservadora, ou poderei dirigi-la e orientá-la para produzir os melhores resultados, à luz da melhor crítica social e pedagógica possível.

Que iremos fazer? O ensino secundário para todos ou, pelo menos para muitos, deve-se fazer, ao lado e além do quanto já dissemos, uma educação extremamente diversificada, a fim de atender às capacidades e aptidões individuais dos seus alunos. O que antigamente se fazia para alguns, de antemão e por dominante causalidade social, selecionados e destinados ou "predestinados" a atividades altamente especializadas, está-se hoje a fazer para todos, ou muitos, sem seleção alguma e com destinação às atividades mais diversas.

Que faria, diante das novas ou novíssimas condições, um magister da Idade Média, que se encontrasse entre nós? Na sua época, só possuía êle a literatura clássica para ensinar e com ela ensinava. Aqui e hoje, logo veria que havia mil outras possibilidades de ensinar e educar. Há muita gente que, um pouco ingênuamente, chega a suspirar por um período em que se sabia tão pouco, que a educação podia tornar-se algo de muito mais fácil, comparativamente. Não há, me desculpem, disparate maior. Se Platão pudesse ter lido Newton, Platão se reputaria muito feliz. E nós não podemos e não devemos dizer que seria melhor vivermos no tempo de Platão, porque no tempo de Platão só se sabia aquilo que Platão sabia. Platão, se aqui estivesse, protestaria, por certo, pois não só estimaria conhecer Newton, como, talvez, ainda mais Einstein. Seria infantil que, hoje, em 1953, aqui estivéssemos a querer simplificar a educação de tal modo, que nos reduzíssemos apenas à Grécia ... e à Roma antiga, - e sòmente ensinássemos o que Grécia e Roma houvessem sabido.

A nossa escola secundária tem de ser a escola de nosso tempo e atender aos objetivos da população que a está procurando. A sua evolução é a meu ver uma coisa inevitável, está acima da vontade dos governos e acima das vontades nossas, individuais, e sobretudo acima das vontades dos pedagogos. Os pedagogos, como todos os especialistas, naturalmente se enganam e julgam muito importante a sua atuação. Mas, a educação vai se transformar a despeito dêles. A despeito da enorme resistência que estão oferecendo à transformação dessa escola secundária linear, uniforme e rígida, segundo o figurino legal imposto a todo o vasto e já tão diversificado país; a escola secundária vai-se fazer uma escola média vária, diversificada, múltipla, heterogênea. A lei de equivalência do ensino médio foi o comêço dessa transformação. O legislador brasileiro atuando por fôrça exclusiva da pressão social do tempo presente, constituiu-se o maior reformador educacional até hoje aparecido no Brasil. Reformou, contra todos os pedagogos, a famosa escola secundária humanística e clássica.

Não sou contra o humanismo, nem contra o humanismo clássico. Apenas acho que pode ser humanística também a educação dada com os conhecimentos de hoje, sejam êles literários, científicos ou técnicos. Por isso, há pouco o disse, se os homens antigos estivessem aqui, acredito que todos estariam apoiando francamente o estudo das técnicas, da ciência, pois êste é o conhecimento mais importante de nossa época. De maneira que não sou, repito, contra a formação humanística, nem clássica, pois apenas julgo que a formação humanística e clássica de hoje é outra que não a da Idade Média, digamos. Podemos hoje ser muito mais perfeitos humanistas do que foram os que nos precederam.

Tomemos, pois, a face a uma realidade que não se tapa com peneiras, a atitude mais aconselhável. A escola secundária vai transformar-se, está a transformar-se. Dentro de pouco, a lei de equivalência terá produzido seus efeitos e o nosso processo de equiparação de escolas ficará superado. Procuremos, assim, estudar esta transformação e busquemos guiá-la e orientá-la, a fim de levá-la para melhores rumos e caminhos. Antes do mais, cumpre suprimir o regime de revalidação formal ou formalística, que é o processo de equiparação, pelo qual se assegura, na realidade, a tôdas as escolas, sejam boas ou más, a mesma sanção e o mesmo resultado. Enquanto se mantiver tal regime, só por heroismo ou algo de milagre teremos boas escolas no Brasil.

A seguir, busquemos melhorar a escola, melhorando, tanto quanto possível, os vários fatôres que nela atuam. Melhoremos os professôres. Melhoremos o livro didático. Melhoremos o equipamento. Melhoremos o prédio. E, sobretudo, melhoremos o financiamento da educação, dando recursos às escolas para que elas elevem os seus padrões e as suas ambições. Substituamos a ação pela lei; a ação pela fiscalização; a ação pelos programas oficiais, por uma ação concreta pela elevação de suas condições reais. E teremos iniciado a verdadeira reforma da educação.

A escola, como o lar, é instituição de tal modo fundamental no funcionamento da sociedade, que o seu progresso será menos efeito de leis, do que do progresso real da sociedade brasileira e da melhor expressão dos seus anseios. Não pretenda tanto o Estado o seu contrôle, quanto assisti-la, estimulá-la, ajudá-la a ser o que deve ser, para se constituir a reguladora da civilização brasileira.

Todos desejamos uma boa escola. Deixemo-la livre e responsável e confiemos que a consciência pública dos pais e a profissional dos educadores orientem e controlem o seu desenvolvimento.

Pouco a pouco se irá apagando o gôsto nacional pelas sanções formais de validação de resultados falsos, e se irá criando a consciência de que o válido em educação é o resultado concreto e real dos estudos, e não o formalismo de sua prática. E nesse dia, estaremos entrando na estrada real do progresso educativo, autêntico, vigoroso e incessante, que é a nossa aspiração e a aspiração de todo o Brasil.

Muito obrigado pela atenção.

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