TEIXEIRA, Anísio. O ensino cabe à sociedade. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.31, n.74, 1959. p.290-298.

O ENSINO CABE À SOCIEDADE*

- Como vê a atual situação do ensino no Brasil?

- A situação do ensino no Brasil é a de laissez-aller, um deixar-se arrastar em expansão desordenada, pela qual antes se agravam do que se corrigem as distorções crônicas, que marcam a evolução de instituições e idéias apenas e mal transplantadas, sem adaptação nem às condições nem ao tempo brasileiro. Trata-se de uma das zonas mais opacas do desenvolvimento nacional. Não seria exagerado dizer-se que vem constituindo o reinado da tolice, em um país que, dia a dia, se vem fazendo mais realista e inteligente com relação a muitos dos seus problemas. Não é isto para admirar. A escola tem sido quase sempre o último dos refúgios para o preconceito, a rotina, o dogma, o tradicionalismo cego ou os interêsses mais egoísticos. Pobre escola! É a mais humilde, a mais mandada das instituições e, ao mesmo tempo, o bode expiatório de tôdas as nossas deficiências. Dela tudo se espera e nada se lhe permite! Quanto mais abandonada, mais culpada fica de tudo que nos suceda!

- Tendo em vista a atual conjuntura sócio-econômica, que soluções imediatas aponta?

- Não há solução imediata. O ensino é um processo longo e demorado. Esta, aliás, uma das razões de ser tão difícil fazer vingar um mínimo de lucidez nos seus domínios. Tudo que se fizer agora sòmente poderá ser julgado e avaliado dentro de certo tempo. Em um país impaciente, como o Brasil, isto cria oportunidade para tôda sorte de imediatismos. E quem diz imediatismo diz interêsse próprio. E interêsse próprio no ensino não é o do aluno.

- Ensino primário: problemas e soluções.

- O ensino primário é o ensino básico. Tão importante é, que, pela nossa Constituição, todo o ensino se divide em primário e pós-primário. Sòmente êle, ainda pela nossa Constituição, é obrigatório e gratuito. O pós-primário será facultativo e gratuito para os que provarem falta de recursos.

É necessário observar que não se determina por lei e, a maior parte das vêzes, pela própria lei magna, que algo seja obrigatório, se êsse algo constitui uma necessidade imprescindível e de cumprimento espontâneo. O ensino primário é obrigatório exatamente porque é uma necessidade relativa, indispensável a certo tipo de vida ainda não suficientemente generalizada e, por isto mesmo, objeto, tantas vêzes, de legislação central e de imposição e administração central.

Trata-se, nada mais, nada menos, do que de uma imposição revolucionária. Em países protestantes constitui o resultado de sua revolução religiosa. Em países católicos são movimentos provocados pela reforma protestante - duramente resistidos, os lassalistas que o digam - e, afinal, devidamente implantados pela revolução democrática.

A educação primária não se fêz geral e para todos em nenhum país sem certo grau de compulsão. Mesmo nos países protestantes, foi a lei, ou seja, o Estado, que a teve de impor. O propósito das revoluções é generalizar certas aspirações já alimentadas por muitos, mas sem vigor suficiente para se realizarem espontâneamente. A escola obrigatória constituía um dêsses postulados revolucionários a serem incorporados à comunidade. A comunidade local seria a mais apropriada, senão para impô-lo, para dar-lhe cumprimento.

É na medida da resistência da ordem tradicional à transformação social que se impôs a escola primária obrigatória, que esta se fêz uma instituição local ou central. Nos países dominantemente católicos, a imposição teve de se fazer central. Todos, porém, buscaram aliciar a colaboração local e a escola se fêz tanto mais integrada e orgânica quanto mais se conseguiu seu enraizamento na comunidade ambiente.

A própria França, paradigma de centralização, soube criar uma tal articulação com o meio local, que o verdadeiro segrêdo do seu êxito está na colaboração admirável entre a instituição revolucionária por excelência que foi a escola primária e o departamento e a Prefeitura locais. O professor primário é ali o secretário da Prefeitura e esta é que zela e conserva o prédio da escola pública. Faltando-lhe a tradição localista dos países germânicos e anglo-saxônicos e faltando-lhe o sentimento religioso da escola pública, que só a revolução protestante pôde criar, teve ela que descobrir meios e modos de dar sentido local, motivação local, espírito comunitário à sua escola, instrumento da revolução republicana, por meio da sua formação do mestre como missionário republicano e da inteligente articulação da escola com o meio local.

E nós, o que fizemos? Proclamamos a compulsoriedade da escola. Deixamo-la a cargo dos Estados, o que foi sábio. Mas não a procuramos enraizar na comunidade local. Os municípios ficaram com uma competência supletiva. Pobres e sem recursos criaram uma escola marginal. E a situação, hoje, é a que se vê. Escolas estaduais administradas à distância, não de todo más, alienadas, porém, do espírito local e dependentes em tudo e por tudo do poder central do Estado. Enquanto as escolas eram poucas, o Estado ainda lhes dava a devida atenção. Com o crescimento do sistema escolar e a expansão das demais obrigações do Estado, vem-se tornando, cada vez mais difícil, ao Estado, administrar a sua escola. Ante o imediatismo de certas necessidades materiais do progresso geral de cada unidade, a escola vem sendo relegada no plano geral de govêrno e, por outro lado, o tipo de centralização administrativa excessivamente compacto estabelecido pelos governos estaduais impede a atenção individual às escolas, o que leva a administrá-las como se fôssem unidades de um exército uniforme e homogêneo, espalhado por todo o território. Sem raízes locais, sem individualidade, as escolas se fazem o joguête dos interêsses do professorado - êle próprio também desenraizado e sem lealdades locais - e entram a expandir-se em desordem, multiplicando os turnos, congestionando-os e reduzindo os horários para os alunos - mal evidente - e também para os professôres - vantagem não menos evidente. Temos nessas escolas estaduais cêrca de três milhões de alunos, para os sete milhões mínimos que aí deviam estar. Os demais dois milhões e tanto que se acham nas escolas, encontram-se em escolas municipais paupérrimas, de tempo reduzido e professôres, na sua maioria, leigos. Pouco mais de meio milhão de alunos chega ao quarto ano, isto é, chega ao mínimo da educação primária consentânea com a obrigação escolar imposta pela Constituição. É evidente que há algo de errado, de tremendamente errado em nosso programa de educação escolar.

Onde o fato novo, em que nos podemos apoiar, para a retomada do impulso iniciado com a República? O fato novo consiste em que, a despeito de nossa negligência, a população brasileira acordou para a necessidade escolar. A escola já não é uma revolução a impor, mas uma revolução a atender. Senão em tôda a extensão do território nacional, em todos os lugares onde se tenha estabelecido certo progresso material, onde se caracterize o fenômeno do desenvolvimento nacional, a escola é uma necessidade sentida, buscada e que se tornaria fácil atender, caso nos dispuséssemos a fazê-lo, utilizando as fôrças de disciplina, que a compreensão geral do problema gera e provoca.

Como não somos ainda ricos, a disciplinação do problema impõe, acima de tudo, um regime de prioridade. E a prioridade número um é a da educação primária para todos, de qualidade tão boa e extensão tão grande quanto possíveis.

Os recursos previstos pela Constituição como mínimos a serem despendios com a escola deviam ser gravados prioritàriamente para o cumprimento dessa obrigação constitucional. Com uma escola de administração local - para que se constitua responsabilidade e orgulho da comunidade - financiada com recursos do município, do Estado e da União, teríamos lançado as bases do empreendimento comum e múltiplo de tôda a nação, que seria a escola primária para todos os brasileiros, capaz de lhes dar a educação básica, sem a qual lhes estamos a negar a própria condição para participar na aventura da construção de sua vida e da vida do Brasil. Com a escola de seis anos, de dia completo, daríamos a cada brasileiro uma educação superior a que obtém êle hoje com a escola primária em turnos de 2, 3 e 4 horas, no máximo, e os dois primeiros anos da escola média, cara e improvisada.

- Ensino secundário: problemas e soluções.

- A escola secundária constitui o ramo nobre, porque acadêmico, da escola média. Sendo, por excelência, a escola de classe, faz-se, como é natural, a escola mais desejada de uma nação, cuja classe média se acha em expansão. Por isto mesmo, é a escola que tem vigor bastante para se pagar a si mesma. Não é por outro motivo que se pôde organizar até como escola particular.

Se esta escola particular entrou agora em crise, é exatamente porque está sendo desejada pelos que não podem pagá-la. Cabe, portanto, fazer-se pública e gratuita, na medida do possível. Continue particular para os que tenham recursos e se faça pública para os que provarem falta dêles. É, aliás, a própria doutrina constitucional.

A primeira medida que cabe é a da extensão da escola primária. Elevada esta a seis anos de estudos, em dois ciclos, o primário de quatro séries e o complementar de duas, teremos, de logo, atendido a uma parte substancial da população em ascensão social.

Reduzida a escola média a 5 ou 6 séries, com os ciclos de 3 e 2 ou 3 e 3, conforme o aluno se destine ou não à Universidade, reduziríamos o ônus de mantê-la e poderíamos melhor expandi-Ia na medida em que a buscarem os que terminaram a escola primária. Também essa escola seria de administração local e com programa ajustado às condições locais de professorado e de cultura. Não seria apenas a escola preparatória à universidade, mas uma extensão da escola primária comum e destinada a atender um sem número de ocupações para que se exigem condições de educação superiores às da escola básica. Com isto lhe retiraríamos o caráter de educação de classe, que já vem, aliás, perdendo e a poríamos ao alcance de tôda a parcela do povo brasileiro desejosa de uma justa ascensão nas condições de trabalho e participação da vida nacional. Dia virá e não está êle tão longe, em que também essa educação de nível médio se fará uma necessidade de todo o povo brasileiro, como já se fêz na maior parte das nações desenvolvidas.

- Ensino superior: problemas e soluções.

- Nos últimos trinta anos, assistimos a uma modestíssima expansão do ensino primário, a espetacular expansão do ensino secundário e, ùltimamente, a expansão quase tão desmedida do ensino superior. É inegável que o Brasil passou a perceber as vantagens da educação escolar. E que os já educados, sobretudo, estão fazendo a grande pressão por mais educação. Em uma sociedade estabilizada os educados buscam para os seus filhos a educação que êles próprios tiveram e cuja experiência têm e cujos padrões conhecem. Em uma sociedade na situação de mobilidade vertical em que se encontra o Brasil, os pais querem para os seus filhos uma educação superior à que tiveram e que não conhecem.

Daí aceitarem o que lhes derem, e, pior, promoverem êles próprios a improvisação da educação que desejam e cujos padrões desconhecem. Por isto é que tão fácil se faz em educação, entre nós, vender gato por lebre.

Em educação superior, como em educação secundária, a diátese consiste nessa fraude pia e generalizada. Temos que superar o estágio do desejo insofrido por educação superior e nos dispormos aos sacrifícios e aos custos dessa educação. A educação superior não sòmente é cara como impõe um adiamento das atividades de trabalho reprodutivo, que a torna caríssima. O modo que o Brasil inventou de torná-la barata consiste em fazê-la formal e ineficiente. Isto dará vantagens a alguns, durante algum tempo, mas não poderá durar. Havemos também de chegar na matéria à maturidade.

- Gasta-se hoje, proporcionalmente, mais dinheiro do govêrno com o ensino superior que com o primário, em uma nação com mais de 50% de analfabetos. Que diz a respeito?

- A distribuição de rendas no Brasil deu à União o maior quinhão e ao Estado e ao município o menor. Por outro lado, não se deu à União o dever de educar o povo brasileiro. Por tradição e em virtude do seu poder de regulamentar as profissões de nível superior, ficou-lhe reconhecida uma certa obrigação de ensino universitário.

Juntando-se a essa maior riqueza da União o sentimento conservador de contemplar antes as classes mais altas do que as mais modestas, não foi difícil criar a situação de melhor atendimento ao ensino superior.

Será preciso que as necessidades gerais do país se incorporem melhor à alma nacional para que contemos com pressão suficiente para que os recursos brasileiros se distribuam com justiça e a necessidade de maior número venha a doer em nossa carne, como já doem nelas as nossas pequenas necessidades individuais.

- Para o ensino primário, que é o básico de uma sociedade, qual a solução melhor se lhe apresenta: a escola particular ou a pública?

- O ensino primário tem de ser normalmente ensino público, pois se destina a todo o povo, com largas camadas incapazes de custeá-lo com as suas rendas pessoais. O ensino particular significa ensino custeado pelos alunos e só pode, portanto, ser ensino para camadas razoàvelmente abastadas da sociedade. Essa história de ensino particular pago pelo Estado é um equívoco muito fácil de desfazer. Tal ensino não é particular, mas público. As experiências que dêle existem no mundo constituem experiências particulares de pequenas nações dilaceradas pelas lutas religiosas. Fôssem minorias protestantes ou católicas, essas minorias, em regimes dominantemente opostos de escolas protestantes ou católicas, lutaram bravamente para terem também direito a escolas confessionais do seu credo e acabaram por obter um modus-vivendi em que o Estado, protestante ou católico, lhes reconheceu o direito de terem suas escolas confessionais custeadas pelo Estado. No Brasil não há nada disto. Não somos um povo com tradição de lutas religiosas. Temos uma República leiga, mas que assegura plenamente a liberdade religiosa e chega a permitir o ensino religioso nas escolas, de acôrdo com a confissão dos pais. Nenhuma hostilidade existe nem pode existir contra a escola pública, que é a escola da maioria do povo brasileiro, em plena paz com a família brasileira, com os pais brasileiros e, sobretudo, com a consciência de liberdade do povo brasileiro.

Embora católico, o país não deseja ser nem Espanha, nem Portugal, nem Holanda, nem Bélgica, nem Alemanha, com as suas lutas religiosas, mas antes, se quisermos tomar exemplos, entre os países católicos, ser como a França, a Itália e, agora, talvez, a Polônia, resolvido o seu problema de liberdade - da grande liberdade que importa, a de consciência - com a separação entre a Igreja e o Estado. Embora menos áspera, o país teve também, no Império, a experiência da união entre a Igreja e o Estado. Não faria mal à Igreja lembrar-se que ela terminou não com a prisão de livres-pensadores, mas com a prisão de Bispos.

- É verdade que é contra a escola particular?

- Não sou contra a escola particular. Sou a favor do meu país. E ai dêle se a educação dos brasileiros se fizer uma obrigação de particulares.

Aliás, sejamos francos. Nenhuma escola particular jamais se viu em perigo no país. Aí está a Constituição para assegurá-la. O que se pretende é a escola confessional paga pelo dinheiro do Estado e isto não é escola particular, mas escola confessional pública. A matéria não é para ser discutida por pedagogos, mas por constitucionalistas. Que falem as autoridades de direito público, de direito constitucional, que falem os que ainda se lembram do que seja a República...

- Qual a principal vantagem da escola particular? E da escola pública?

- A escola particular, se fôr realmente particular, pode ter maior homogeneidade de composição social dos alunos e no caso de pais inteligentes dispor da liberdade para ensaiar métodos e experimentar mais livremente em educação. Fora do contrôle público pode deparar-se menos sujeita a críticas e resistências da opinião menos esclarecida do país. Está sujeita a um grupo mais reduzido de pessoas e êsse grupo, ocasionalmente, pode ser mais esclarecido.

A escola pública reflete a sociedade em geral. Se essa sociedade é conservadora, o seu progresso será, naturalmente, limitado pelo grau de desenvolvimento social.

Não se esqueça, porém, que em sociedade, como a nossa, a escola pública é, naturalmente, um instrumento quase revolucionário de expansão educacional. Como não são muito fortes as nossas tradições escolares, temos grande possibilidade de instituir uma escola pública mais livre de preconceitos, da rotina, do dogma que a escola particular. A escola particular se faz, às vêzes, revolucionária ou progressiva, em países de velhas e estratificadas tradições pedagógicas.

- Por que o acusam de tentar fazer a laicização do ensino no Brasil? Como vê as acusações neste sentido?

- Sou apenas um republicano, que acredita na Constituição do seu país. A campanha que se faz contra mim é, sobretudo, uma campanha contra a Constituição e contra a República.

- Acredita caminhar o Legislativo, no momento, para a votação da Lei de Diretrizes e Bases que melhor solucione o problema?

- Acredito que a atual legislatura venha a votar a Lei de Diretrizes e Bases da educação. Muitas das perplexidades nacionais foram resolvidas pela experiência dos últimos doze anos. Se êsse último equívoco entre a escola pública e escola particular não toldar de novo o ambiente e desviar o país para uma polêmica anacrônica e pouco inteligente, será possível uma lei clara e direta, em que se distribuam podêres e recursos, para re-dirigirmos, com ímpeto e unidade de propósitos, o grande empreendimento comum e público da escola brasileira. Que o ensino particular, garantido pela Constituição, independente e livre, aceite o desafio do ensino público e se coloque à altura dêste, estimulando-o e sendo por êle estimulado.

- Dos substitutivos existentes qual o que melhor lhe parece?

- Não aprovo completamente nenhum dos substitutivos existentes. Se tivesse de escolher, escolheria o último apresentado à Comissão de Educação ou o próprio Substitutivo da Comissão.

- É pela descentralização do ensino ou pela manutenção da sua orientação centralizada no MEC?

Sou pela descentralização administrativa, a mais ampla, da escola e pela centralização, nos Estados, do contrôle pròpriamente profissional, exercido êste pela exclusividade (nos Estados) da formação do magistério, pela assistência técnica fundada na assistência financeira e pelo poder de classificar, a posteriori, as escolas, dando aos resultados escolares a validade correspondente a essa classificação. São êstes assuntos que exigiriam desenvolvimentos que esta entrevista não comporta.

- As universidades e os colégios religiosos (católicos, protestantes, etc.) podem oferecer um ensino verdadeiramente livre?

- As universidades e colégios confessionais do país não são livres, mas universidades e colégios de concessão pública, sujeitos ao contrôle público. Se fôssem independentes do poder público, poderiam ser livres nesse sentido apenas negativo de não estarem sob o contrôle da lei, ou seja, do público em geral.

Que possam ser livres, no sentido mais amplo e positivo, isto é, livres do preconceito, do dogma e do tradicionalismo cego, isto não o poderão ser por definição.

- As do Estado podem?

- As do Estado, teòricamente, podem, pois estão sujeitas exatamente a uma lei que, por princípio, defende o espírito de experimentação e de ciência, que se funda exatamente na independência da rotina, do preconceito, do dogma, do tradicionalismo cego, ou dos interêsses imediatos e egoísticos.

- A propósito, crê que as escolas oficiais, até então existentes, têm cumprido integralmente sua missão?

- As escolas oficiais são brasileiras e estão no Brasil. Refletem por isto mesmo as condições do país. Entre o que deviam ser e o que são há um grande caminho a percorrer. Melhorarão se melhorar todo o país. O importante é que constituem um reflexo do país, mas não são uma fôrça isolada que se possa opor ao país e impedir-lhe o progresso. As escolas oficiais são livres para progredir e melhorar.

- A missão básica da Igreja, a seu ver, é educativa ou evangélica?

- A missão básica da Igreja é evangélica e espiritual e, como tal, profundamente educativa. É preciso não se identificar escola e educação. Educação tem campo infinitamente mais amplo do que o da escola. Esta dá ao homem a sua educação formal para o trabalho, para a cidadania, para a sociedade. Não representa nem 10% da educação que recebe o homem. Já pensou o senhor no tempo que um brasileiro leva na escola, nos anos em que sua educação escolar se faz? Tomemos a escola primária: 150 dias letivos por ano, 4 horas no máximo, por dia letivo, logo 600 horas por ano. Nesse período êle viveu 8.760 horas, menos 2.290 de sono, teremos ainda 5.240 horas para a grande e profunda educação, que é a que nos dá a vida e tôdas as suas instituições.

- A direção do ensino cabe, bàsicamente, à família, ao Estado, à Igreja ou a quem?

- A direção do ensino formal cabe à sociedade em geral, pelos órgãos por ela constituídos para êsse fim. Isto não quer dizer educação em geral. A educação em geral se faz pela família, pela Igreja, pela rua, pelo clube, pelo trabalho, pela vida, enfim.

Há qualquer intenção de equívoco em se pôr família, Igreja e Estado, como coisas antagônicas. A República democrática é uma sociedade baseada em indivíduos, em pessoas humanas, nas quais o Estado assume a responsabilidade, como autoridade soberana, de manter tôdas as demais instituições humanas nas melhores condições de liberdade possível.

O Estado democrático não se funda nem na família, nem na Igreja, mas lhes assegura a liberdade. Precisamos reaprender essas noções elementares de direito público que estão sendo, talvez, propositadamente esquecidas.

- O direito ao ensino é natural ou adquirido pelo homem na sociedade ?

- A pergunta não faz sentido, a meu ver. O homem, dada a impotência física com que nasce, precisa de cuidados especiais para sobreviver. Essa impotência natural torna-o altamente suscetível à aprendizagem. Sob a guarda da família cresce e, depois, participando das instituições sociais, se educa, faz-se adulto e assegura a sobrevivência social. Educar-se e aprender são faculdades de sua natureza e por isto é que é um animal social e gregário. Não é social porque se educou para isto, mas é educável porque é social.

- Mensagem.

- A minha mensagem ao estudante superior do Brasil? É simples. Representais a vanguarda da juventude brasileira, uma vanguarda privilegiada com 15, 16 e até 17 anos de educação em um país em que 36 milhões não chegaram sequer à escola e os restantes, em sua maioria, foram apenas alfabetizados, cabendo aos demais alguns anos de ensino médio. Nenhum grupo de jovens brasileiros tem mais capacidade e mais obrigação de chegar a pensar com realismo, lucidez e gravidade, de pensar, tanto quanto possível, com espírito científico.

Quando, por conseguinte, quiserem arrastar-vos para movimentos de paixão, cegos e obscuros, tendes a obrigação de vos deter e considerar e refletir e discriminar para verificardes o que realmente está em jôgo e tomardes a vossa decisão.

O debate presente em tôrno da competência da família para dirigir o ensino formal é um caso específico de discriminação. Que família pode fazê-lo? A dos ricos? Sem dúvida, pois tais famílias podem custear a educação dos seus filhos nas escolas que quiserem e com a exclusividade que quiserem. E estas não irão permitir que seus filhos se misturem com as demais classes. A família da classe média? Temos, pelo menos, três níveis nessa classe: a média superior, a média e a inferior. A superior talvez possa ter a sua escola e querer dirigi-Ia e não a quererá muito misturada com os dois outros níveis.

E as famílias populares, as famílias dos 36 milhões de analfabetos, que poderão fazer, se não têm experiência de educação escolar, como irão dirigi-la?

É evidente que haverá um intermediário entre as famílias e a escola. Que intermediário será êste? Tudo leva a crer que se cogita da Igreja. E por que não se põe francamente o problema entre a Igreja e o Estado? Por que surge essa entidade no caso, nominal - a Família Brasileira - para obscurecer o problema? Resolvida tal obscuridade, estaremos em condições de ver claro o problema e de tomar a nossa decisão. E conforme seja esta, teremos, ou não, de reformar a Constituição. E o problema deixará de ser o de escola para ser o de reforma da Constituição. Êste, o desafio do anacronismo com que querem perturbar a solução do problema brasileiro do ensino - ANÍSIO TEIXEIRA - (Diário de Notícias, Rio).

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