TEIXEIRA, Anísio. O ensino brasileiro. Boletim da CBAI. v.7, n.10, 1953. p.1122-1124.

O ENSINO BRASILEIRO

Anísio Teixeira
Diretor do I.N.E.P.

Julgamos ainda muito a tempo e oportuno, apesar do atraso, o registro destas considerações do grande educador Anísio Teixeira sôbre o nosso ensino.

Examinemos, com efeito, embora ràpidamente, o panorama de nosso ensino.

O ensino brasileiro, por isto mesmo que era um ensino quase que só para a camada mais abastada da sociedade, sempre tendeu a ser ornamental e livresco. Não era um ensino para o trabalho, mas um ensino para o lazer.

Cultiva-se o homem, no melhor dos casos, para que se ilustrasse nas artes de falar e escrever . Não havia nisto grande êrro, pois a sociedade achava-se dividida entre os que trabalhavam e não precisavam educar-se e os que, se trabalhavam, era nos leves e finos trabalhos sociais e públicos, para o que apenas requeriam aquela educação.

Quando a educação, com a democracia desenvolver-se, passou a ser não apenas um instrumento de ilustração, mas um processo de preparação real para diversas modalidades de vida da sociedade moderna, deparamo-nos, sem precedentes nem tradições, com a implantação dos novos tipos de escola. Cumpria criar algo em oposição a tendências viscerais de uma sociedade semi-feudal e aristocrática, e para tal sempre nos revelamos pouco felizes, exatamente por um apêgo a falsas tradições, pois não creio que se possa falar em <<tradições>> coloniais, escravocratas, feudais num país que se fêz livre e democrático.

De qualquer modo, a nossa resistência aos métodos ativos e de trabalho sempre foi visível na escola primária, que, ou se fazia escola apenas de ler, escrever e contar, ou descambava para um ensino de letras, com os seus miúdos sucessos de crianças letradas. No ensino chamado profissional, entretanto, é que mais se revelava a nossa incapacidade para o ensino prático, real e efetivo. Êste ensino, porque não podia se confirmar ao livresco e verbalístico, não vingava e constituía um espetáculo penoso de instituições murchas e pêcas. Só no ensino secundário prosperava, porque aí as tendências nacionais julgavam poder expandir-se, sem a consciência penosa de uma frustração. O ensino superior, embora todo êle de objetivos profissionais, mascarava o seu real academicismo com umas fantasias experimentais menos concretas do que aparatosas.

Todo o ensino sofria, assim, dessa diátese de ensino ornamental: no melhor dos casos, de ilustração e, nos piores, de verbalismo ôco e inútil.

A luta contra êsse tipo de ensino sempre foi, entretanto, vigorosa, mesmo ainda no tempo da monarquia, recrudescendo vivamente na república. Uma parte culta e mais lúcida do país tinha perfeita consciência do fenômeno e, nos centros que mais se adiantavam, como em S. Paulo e no Rio, o esfôrço por uma verdadeira escola primária, por escolas profissionais autênticas e por escolas superiores eficientes e aparelhadas, chegou a alguns resultados apreciáveis. Não esqueço nunca a saudável impressão que me causou, em S. Paulo, ver ginásios decadentes e escolas profissionais vivas e próperas.

Nos fins da década de 20 e 30, parecia, assim, que estávamos preparados para a reconstrução de nossas escolas. A consciência dos erros se fazia cada vez mais palpitante e o ambiente de preparação revolucionária era propício à reorganização. O país iniciou a fornada de 30 com um verdadeiro programa de reforma educacional. Nas revoluções, como nas guerras, porém, sabe-se como elas começam, mas não se sabem como acabam.

A primeira fase daquela fornada caracterizou-se por ímpeto construtivo e por esfôrço singular pela recuperação da escola, sem perda da prudência, que uma longa consciência de nossa pobreza em recursos humanos nos havia inculcado. Menos do que expansão quantitativa, lutamos por melhorar a qualidade de nossas escolas. Todo movimento era pela reforma de métodos e pela implantação de novos tipos de educação. Surgiu a universidade. Ensaiou-se um ensino médio flexível, com a integração do ensino geral com o técnico no Distrito Federal. A escola primária recuperou prestígio e deu-se início à reforma dos seus objetivos e processos de ensino. A vinda de professôres estrangeiros para as novas escolas superiores, em S. Paulo e no Rio, era uma nota corajosa e promissora.

Em meio a tudo, o país crescia, aumentando as exigências em matéria de educação e tornando mais difícil a resistência às tendências improvisadoras, que se avolumavam em face da própria expansão nacional.

Numa segunda fase, a reação e um confuso tradicionalismo infiltram-se, com pertinácia e não sem êxito, trazendo para a educação resultados paradoxais. O estado de espírito defensivo, que se apoderou da sociedade brasileira, interrompeu aquele ímpeto renovador. Afrouxaram-se as suas resistências ao que, embora aparentemente tradicional, já se mostrava à melhor consciência do país prejudicial à sua formação e ao seu processo. Houve uma espécie de livre passe indiscriminado para tudo que fôsse ou se rotulasse de tradicional e uma vigorosa hostilidade a tudo que fôsse ou parecesse ser novo. E a educação - que fôra sempre o setor mais sensível para a luta entre o novo e o velho - constituiu-se o grande campo para a derrota do que já havia de melhor no país em resistência e espírito de reconstrução. Entramos em uma fase de condescendência para com os defeitos nacionais, que raiou pela inconsciência. Confundimos dissolução com expansão.

Na escola primária - que era a melhor escola brasileira, apesar de todos os pesares - a redução dos horários e a volta aos métodos tradicionais transformaram-na em má escola de ler e escrever, com perda sensível de prestígio social, eficiência e alcance, decorrente de não se haver articulado com o ensino médio e superior e de não mais satisfazer às necessidades mínimas de preparo para a vida.

A escola secundária multiplicou-se, quase diríamos, ao infinito. Como escola de passar de uma classe social para outra, fêz-se a <<escola>> brasileira. Aí é que a exacerbação de uma falsa filosofia de educação e, dados os velhos defeitos de nossa pedagogia, passaram a reinar discricionàriamente. Como a primária, organizou-se em turnos, reduzindo o período escolar a meio dia, e à noite, a um têrço de dia. Improvisou professôres. Sem sequer possuir a modesta pedagogia da escola primária, não inquietou nenhuma agulhada de consciência na prática dos métodos mais obsoletos de memorização, da simples imposição de conhecimentos inertes e do formalismo das notas e dos exames. Fêz crescer uma indústria de livros didáticos fáceis e fragmentados, <<de acôrdo com o programa>> e reentronizou o passar no exame como finalidade suprema e única da tortura, meio jocosa, meio trágica, que é o nosso atual ensino secundário. Num país em que a iniciativa privada foi sempre reticente ou apática, para tudo que custa esforços e não remunera amplamente, fêz-se o ensino secundário um dos campos prediletos dessa iniciativa.

Mas não fica aí a consciência da nossa perda de resistência aos imediatismos de povo sem verdadeiras e firmes tradições educacionais. Passamos agora a <<facilitar>> o ensino superior, estamos dissolvendo-o, que a tanto importa a multiplicação numérica irresponsável de escolas dêsse nível. Temos mais de 200 escolas superiores, mais de vinte faculdades de <<filosofia, ciências e letras>> e outras tantas faculdades de <<ciências econômicas>>, isto para sòmente citar escolas de que não possuímos nenhuma experiência até uns quinze anos passados. E os processos de <<concessão>> continuam, tudo levando a crer que o episódio do ensino secundário se vai repetir, no campo do ensino superior. O espírito é o mesmo que deu em resultado a inflação do ensino secundário: o espírito da educação para o exame e o diploma, do ensino oral, expositivo, com o material único dos apontamentos, nosso ridículo sucedâneo das sebentas coimbrãs.

Está claro que tal educação não instrui, não prepara, não habilita, não educa. Por que, então, triunfa e prospera? Porque lhe restam ainda duas saídas, sem esquecer a singular versatilidade brasileira que nos torna capazes de passar por cima de deficiências educacionais as mais espantosas.

As duas saídas têm sido e são ainda: a largada porta da função pública e as oportunidades também ampliadas da produção brasileira, uma a outras sem maiores exigências ou padrões de eficiência. Com êsse aumento quantitativo das chances de emprêgo, público e particular, e o baixo índice de produtividade brasileiro, em qualquer dos dois campos, pagamos a nossa eficiência, senão simulação educacional. É por aquêle preço - parasitismo do emprêgo público e baixa produtividade, isto é, alto custo de vida - que conseguimos fechar o ciclo e impedir, dêste modo, a rutura do equilíbrio. Enquanto o nosso crescimento quantitativo se fizer com a aceleração presente e a aceitação de elementos de qualquer ordem para o preenchimento das nossas necessidades impedir a exigência de melhores requisitos, os serviços educacionais brasileiros continuarão a ser o que são, ajudados pela válvula de segurança do emprêgo fácil para os seus produtos de segunda ordem.

Há, entretanto, sinais de que estamos chegando a um momento crítico. O número de pseudo-educados já está transbordando das possibilidades de absorção. Isto já se evidência, claramente, nos exames vestibulares das escolas superiores e nos concursos para cargos públicos e privados. Por outro lado, a produção, o comércio e as atividades técnicas superiores começam a dar mostras de inquietação. Há sintomas de uma mudança de atitude, que se revela, pelo menos, por três aspectos, a se refletirem na própria educação. No ensino secundário, pelo aperfeiçoamento voluntário e espontâneo de instituições que, escapando ao tipo corrente de competição, conseguem alunos e recursos suficientes para oferecer um dique ao desejo de educação fácil e formal. Tal não seria possível se também os pais não estivessem a sentir que já há vantagem numa educação de melhor qualidade. No ensino superior, por iniciativas sérias, tanto no ensino oficial quanto no particular, para a instauração de regimes novos, como em São Paulo e S. José dos Campos, de tempo integral para professôres e alunos, e o início de um verdadeiro ensino universitário. Nada disto seria possível, nos moldes da atual burocratização do ensino, se as necessidades nacionais não se estivessem fazendo a tal ponto gritantes, que só cumprir as exigências de uma fiscalização burocrática não basta, impondo-se tentames que em muito já as superam.

Do ponto de vista da indústria, assistimos a fenômenos dos mais impressionantes e esclarecedores. Está ela tomando a si o problema de formar o trabalhador qualificado e especializado, com um sistema de ensino paralelo ao oficial e isento dos seus defeitos maiores.

Mas não nos iludamos. Todo êsse mundo de candidatos reprovados nos vestibulares das escolas superiores e nos concursos de cargos públicos e de organismos paraestatais e privados constitui um mundo ludibriado pelas nossas escolas, que injeta na sociedade o veneno de suas decepções ou dos seus desajustamentos. São os frutos amargos do imenso sistema de frustração em que o ensino oficial e oficializado se vem constituindo.

Teremos, pois, de dar início a um movimento de reverificação e reavaliação de nossos esforços em educação.

(Do discurso de posse no cargo de Diretor do I.N.E.P.)

| Scientific Production | Technical & Administrative Production | Literature about the Educator |

| Journal articles | Chapter of book | Speeches | Pamphlets |
| Books | Prefaces and Postfaces | Text in book flaps |
| Unpublished papers | Conference papers | Translations |