TEIXEIRA, Anísio. Um educador: Abílio Cesar Borges. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.18, n.47, jul./dez. 1952. p.150-155.

UM EDUCADOR: ABÍLIO CÉSAR BORGES

À luz do conhecimento mais perfeito que temos hoje, do nosso país e do seu curso histórico, nada nos fere mais a atenção, ao examinarmos certas figuras do nosso passado, do que a sua desproporção com o meio e o tempo.

Abílio César Borges constitui um dêstes casos. Entre 1856 e 1880, período de sua atuação, o Barão de Macaúbas se alteia, no Brasil, como uma figura que nada tem a dever às dos grandes educadores, então dominantes no mundo. Pertencia, sem favor, à linhagem dos grandes diretores de escola, que, na época, iniciavam, tanto na Europa quanto na América, a revolução educacional que viria produzir, depois, a educação popular universal e o cultivo geral da ciência, de que nasceriam, ou que acompanhariam, as grandes transformações do nosso tempo.

Não há como não estranhar essa coincidência, quando o país, na realidade, não passava, então, de uma atrasada subnação americana, dividida entre senhores e escravos, com uma pequena classe livre, sem meios, nem recursos, nem progressos e desprovida de qualquer consciência do seu problema educacional.

A explicação parece encontrar-se no fato de sermos, então, na realidade, dois países, fase de que, sòmente nos últimos tempos, estamos emergindo, para a formação final da nação brasileira. O contraste entre o grande Brasil popular e mudo e o pequeno grupo de civilizados e falantes era, então, tão amplo e largo, que os dois países se perdiam de vista, só havendo real consciência do minúsculo Brasil semi-aristocrático, em que se movia a figura singular e um tanto fictícia do Barão de Macaúbas. Êste pequeno e lustroso Brasil mantinha, sob vários aspectos, a ilusão da civilização e podia, sem desdoiro, sofrer confrontos com o restante do mundo civilizado, sobretudo com os demais países americanos. Nêle é que atuava Abílio César Borges. Do seu colégio, podia o prof. Ch. Fred Hartt, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, dizer que, na sua opinião, <<se comparava favoràvelmente com as melhores instituições do mesmo grau nos Estados Unidos>>.

Com efeito, a vida e a obra de Abílio César Borges revela-nos um país sensível à cultura, penetrado de rigorosos padrões morais, embebido de vivas aspirações intelectuais e, o que é mais de admirar, com uma uniformidade tal de nível social e de condições de meio, que não se chega a perceber a diferença sensível entre as diversas áreas de sua atuação, que se estendem desde a cidade da Barra, no vale do S. Francisco, até Barbacena, em Minas, passando pela Bahia, e pelo Rio, como se todos êstes centros fôssem cidades de um país homogêneo e de igual civilização. Em todos êles, na verdade, fundou e dirigiu o singular educador os seus colégios, praticando uma educação revolucionária para o tempo, e em todos encontrando professôres para auxiliá-lo e ambiente para lhe aplaudir e estimular os esforços.

A fina e tênue camada de civilização parecia, assim, estender-se sôbre todo o país, oferecendo oportunidade a um educador sertanejo de ampliar a sua ação por tão diversas regiões, de certo modo, intercambiáveis, pois cumpre registrar que a sua experiência não se encerra no Rio, mas no interior de Minas, na cidade de Barbacena, de onde sai, afinal, para aposentar-se da vida ativa, acompanhado do louvor e do aplauso de pais e discípulos dessa cidade setaneja, como já deixara, antes, a Côrte, entre os mesmos aplausos e louvores.

Como, pois, explicar que essa atuação não se prolongue em uma grande tradição educacional e Abílio César Borges não seja, para nós, algo como foi Sarmiento, para a Argentina, Varela, para o Uruguai, e Horace Mann, para os Estados Unidos, senão pela sua identificação com a pequena casta dominante de um Brasil de cúpula, que as vicissitudes de nossa evolução histórica vem sistemàticamente destruindo?

Porque nada faltou a Abílio César Borges para se fazer o lider educacional de um jovem país, nesses meados promissores do século dezenove. Detinha, com efeito, como se suas fôssem, tôdas as grandes idéias da educação do seu tempo e alimentava tôdas as ambiciosas aspirações que, então, medravam no espírito dos homens em relação às possibilidades entre-sonhadas da educação, humanizada nos seus métodos, enriquecida no seu conteúdo, pela expansão da ciência e, afinal, estendida a todos.

Não se tratava de um simples diretor ocasional de educação, que suprisse com cultura e bom senso as deficiências do profissional, como costumavam ser os educadores da época e como deveria normalmente ter sido, com a sua formação de médico e cirurgião. ao contrário disto, revelou-se um pensador educacional, um formulador de métodos, com erros e acertos originais e brilhantes, e, sobretudo, um apaixonado formador de homens, dando tôda a sua vida à infância e adolescência no exercício mais completo que se pode conceber do magistério e da educação.

Ao lado de concepções, ainda hoje rigorosamente certas, da educação, como processo de desenvolvimento normal da criança, a ser guiada e não reprimida, e que inspiraram o novo espírito de que se embeberam os seus colégios, o que, no tempo, representava quase uma revolução, muitas das idéias de Abílio César Borges em relação a programa e currículo e métodos de ensino mostram uma penetração rara para o momento e, em alguns pontos, de grande avanço sôbre a sua época.

Batalhou por um ensino inteligente e prático, pelo ensino direto das línguas vivas, contra os programas excessivos e absurdos, contra o ensino direto de regras de moral e, no curso secundário, soube compreender que os estudos da língua nacional, da matemática e da história deviam constituir o seu núcleo fundamental. Não era fácil pensar, assim, nas alturas de 1875, quando ainda hoje não são poucos os que têm sôbre a matéria opiniões que só se coadunariam com o período do mágico do pensamento humano, pelas quais emprestam virtudes intrínsecas a determinados ensinos, mesmo que não passem de inúteis exercícios verbais.

Mais do que isto, porém, chegou a ver a educação como o processo de formação nacional e o meio, por excelência, de enriquecer o país, cujo maior capital é o homem, <<o primeiro dos instrumentos de riqueza>>, pois que, educado, é êle <<quem inventa e faz as máquinas>>.

Nem lhe faltou sequer a visão de que a liberdade e a democracia sòmente seriam possíveis <<com a verdadeira e geral instrução. Quem sinceramente quiser cimentar e assegurar a liberdade, há-de lhe dar por base elementar a instrução>>.

E, na prática dessas idéias, não ficou na administração do ensino, nem apenas na fundação e direção dos seus colégios, nem no magistério diário e permanente, mas passou a preparar o instrumental do seu ofício, escrevendo tôda uma admirável coleção de livros didáticos e chegando, até, à invenção de aparelhos escolares.

Tôda essa considerável obra do pensamento, de estudo e de ação se perde com a extinção dos seus colégios e ninguém, em sã consciência, pode encontrar a sua influência na evolução de nossas escolas e de nossa educação. Podem recordá-lo os seus alunos, mas não o recorda o país, cuja consciência nacional não logrou atingir, por não existir, ao seu tempo, essa consciência, ou por ter sido ela destruída posteriormente.

Para cúmulo de ironia ou de contradição, não sucede apenas isto ao grande educador. Não sòmente não lhe recorda o país a obra, efetivamente singular e renovadora, como ainda o fulmina com a memória - esta, sim, conservada viva e indelével - do retrato tristemente deformado que lhe traçou um discípulo infeliz e de gênio, em um romance imortal, "O Ateneu". A literatura imortalizou a figura de ficção, com que o representou o romancista, mas a sua obra e seu pensamento não saíram dos seus colégios e da admiração piedosa de colegas e raros estudiosos.

Há, assim, algo de irreal na ação dêste homem que viu, pregou e praticou muitas das mais significativas inovações do seu tempo, desde a simplificação dos métodos de ensino para a leitura e escrita até a compreensão da imensa riqueza de informação e cultura que a nova época abria para os homens. Viu, pregou e praticou tudo isto com eficácia sem igual, nem uma só vez se deixando levar pela confusão, tão fácil, de apaixonar-se pela beleza dos novos meios de educação, esquecendo os seus fins. A eficiência do seu ensino se demonstrava até espetacularmente, na exibição intencional dos seus alunos para comprovar a segurança dos seus métodos. Tinha, nos seus colégios, os mesmos altos padrões que se poderiam encontrar em um colégio inglês. A formação intelectual completava-se com a formação moral inflexível e rigorosa. Era, em pleno Brasil, um educador profissional de alto padrão, embebido de espírito científico e de zêlo cívico. Tinha as condições ideais para se fazer o guia educacional do país. Por que, repetimos, não o acompanhou a nação, e a sua obra, salvo a rápida passagem frustrada pela direção do ensino na Bahia, se limitou à obra dos seus colégios particulares.

Confesso a minha perplexidade ante êsse problema. Não faltaram ao Brasil nem as idéias nem as pessoas para que também acompanhássemos, nestes últimos cem anos, o progresso do resto do mundo. Nas alturas do século em que Abílio César Borges atuou, não faltara, também, os padrões morais e intelectuais que nos faziam iguais aos demais países, com as mesmas ambições de formar homens, cuja inteligência e cuja vontade nada tinham a dever aos que mais cultivadas as tivessem.

Não posso enxergar outra explicação para êsse fenômeno senão a da existência, já referida, dos dois Brasis, havendo a obra e o pensamento de Abílio César Borges se perdido com o desaparecimento do primeiro na voragem de nossa transformação social contemporânea.

Quando uma nação tem a infelicidade, como a nossa, de nascer sob a fatalidade de uma desigualdade social tão profunda, como a que nos dividiu, primeiro, entre brancos conquistadores e índios, depois, entre brancos senhores e pretos escravos, o que sucede na classe dominante só tem real importância para o país, se o regime de divisão social se mantém e as duas nações continuam a coexistir no estranho paralelismo de sua simbiose.

Ora, como no Brasil tal não se deu, operando-se, a despeito de tudo, um profundo e vigoroso processo de fusão social e de democratização da vida nacional, processo que ganha ímpeto com a Abolição, se acelera com a República e, a partir de 30, entra em fase que se diria convulsiva, a atuação das figuras da Monarquia, embora eminentes e interessantes, deixou de ter qualquer sentido e se fizeram irreais como se fôssem figuras de teatro.

O processo de democratização do país, da integração nacional, é, por isto mesmo, um processo muito mais revolucionário do que se pensa. Destruindo o dualismo tradicional da estrutura brasileira, êsse processo destrói a cultura da classe dominante e, dêste modo, a unidade da consciência histórica do país, que faz, por isto mesmo, mutável e tumultuária, como tulmultuária e mutável é a fase da formação e convulsão dos últimos tempos. É isto que faz do século XIX algo, de certo modo, muito mais remoto e distante para o brasileiro de hoje do que, na realidade, deveria ser. É que se romperam e quebraram os padrões de pensamento, de ação e de comportamento dos homens dêsse tempo, de que o Barão de Macaúbas era tão grande e alto expoente, e não se estabeleceram novos padrões, passando nós a um período de confusão em que, por um lado, parecemos descrer de nós mesmos e não admitir padrões, pois já sabemos que não somos Inglaterra nem Estados Unidos, e os padrões que nos oferecem são padrões para nós irreais dêsses países, por outro lado, buscamos padrões excessivamente baixos, como se o nosso problema, na escolha do que nos convém, não fôssem o de um difícil e delicado ajustamento dos altos padrões da civilização às nossas condições e peculiaridades, mas uma simples questão de redução e nivelamento pelo pior.

Na realidade, há, entretanto, mais do que isto. E o processo, em sua totalidade, é o da busca e do preparo dos nossos padrões tão próprios quanto possível. Começamos sòmente agora a nos conhecermos por inteiro. O <<palco>> do Império e ainda dos primeiros tempos da República foi invadido pela platéia, que, aliás, não acompanhava a <<representação>>. Ninguém mais sabe os <<papéis>> para representar a comédia da civilização de empréstimo. Há tulmulto e congestionamento no palco, que já não é palco, porque é tôda a nação, mas o que se faz deve ter a virtude de nos formar porque já não é <<representação>> mas a vida mesma do país, informe, incerta, confusa, mas real.

Entregues a nós mesmos, sem metrópole colonizadora nem côrte de padrões mais ou menos estrangeiros e dispersos os últimos representantes republicanos dêsses padrões, chegamos, por vêzes, na realidade, a parecer que descremos de nós mesmos. Duas fôrças atuam para essa desorientação momentânea.

Há os que, não compreendendo, pela formação que tiveram, o novo Brasil que se está formando, julgam-no um país perdido e, como tal, nada ou pouco merecendo, favorecendo, assim, um clima de desagregação e há êrro dos que acabam de chegar, no grande processo em marcha de incorporação de todos os brasileiros à sua nação, e, não trazendo padrões nem idéias, acrescentam à confusão o seu aparente cinismo, que é não cinismo, porque antes disto é pura, simples e inocente imaturidade. A situação, por isto mesmo, tem a sua gravidade. Há absoluta necessidade de impedir que essas duas forças se somem e levem o país à conclusão de algo como se fôsse a nossa inferioridade congênita. Já muita coisa vem fazendo o consórcio dessas duas atitudes.

Todo o cortejo de improvisações levianas, sobretudo em relação às nossas instituições de cultura e de ensino, com o desprêzo mais inacreditável pela sua eficiência, provém da união dessas duas correntes. Tomada de assombro pela grandeza dos nossos problemas, agravados pelo retardamento de nosso desenvolvimento, a nação como que perde a esperança de resolvê-los e vai-se deixando levar pela mistificação das soluções de fazer da conta, em que a envolvem aquêles dois grupos de desajustados, os que já não crêem no país por haverem conhecido apenas o pequenino teatro dos velhos tempos e os que ainda não crêem no Brasil, porque nêle estão a chegar e ainda não o conhecem. Há, porém, os outros, que já são muitos, que têm nítida e forte a consciência do período de transição em que se acha o país e que lutam pela implantação dos mais altos padrões para o seu crescimento e a sua formação. Podemos vê-los, por tôda parte, numa sadia ânsia de reforma e de revisão, lutando contra o espírito da complacência e ceticismo e desenvolvendo, cada vez mais, o ânimo da resistência às forças da desagregação e de derrotismo. A atuação dêsse grupo se fortalece ante o nascente sentimento de brio e orgulho nacional que se vem revelando no novo nacionalismo brasileiro. Estou longe de aprovar as suas manifestações, tantas vêzes desconcertantes e ineptas. Mas o seu desenvolvimento poderá conduzir-nos à consciência de nossa responsabilidade em face do país. Esta consciência de responsabilidade criará o sentimento de disciplina e de vontade, indispensáveis à recuperação dos nossos padrões de eficiência, de inteligência e de decência.

O brio nacional, assim despertado, criará o ímpeto necessário para tentarmos e fazermos o difícil, para aceitarmos os padrões de países civilizados e nos envergonharmos das nossas pequenas e grandes mistificações, desistindo de vez dêsse incrível propósito infantil de nos enganarmos a nós mesmos. Será, sobretudo, na educação que a modificação terá caráter revolucionário, por que nela é que, mais que em qualquer outro setor, temos incidido em nosso êrro de nos mistificarmos a nós mesmos.

O exemplo, então, de Abílio César Borges se erguerá, como um padrão do nosso orgulho, inspirando-nos a certeza e a segurança de podermos ter, como têm os países civilizados, escolas primárias que sejam escolas primárias, ginásios que sejam ginásios, escolas superiores que sejam escolas superiores e universidades que sejam universidades para todos os brasileiros, do mesmo modo por que êsse grande educador do Império pôde fazê-los para os poucos selecionados daqueles remotos tempos.

- ANÍSIO TEIXEIRA (Rio, Rio).

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