TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.70, n.166, 1989. p.435-462.

SEGUNDA EDIÇÃO

Educação não é privilégio *

Anísio Teixeira * *

Educação para a formação "comum" do homem

Na análise da situação educacional brasileira, desejaria evitar toda tendenciosidade, e mostrar, tão imparcial e objetivamente quanto possível, o desenvolvimento da escola brasileira à luz dos conceitos e das forças que nela atuaram.

Tratando-se de instituição que corporifica idéias e aspirações sociais, é imprescindível certa precisão em caracterizar tais conceitos e ideais, a fim de evitar as inúteis e estéreis confusões, tão comuns em nossas controvérsias, nas quais diferenças de pontos de partida e diferenças de conceituação geralmente impedem qualquer entendimento comum do problema e, portanto, qualquer progresso útil no esclarecimento da solução aceitável pelos participantes do debate.

Preliminar indispensável à fixação de um ponto de partida comum é o exame da educação escolar antes de se estabelecerem as aspirações modernas da escola universal para todos, proclamadas, tão ruidosamente, na Convenção Revolucionária Francesa, como um novo estágio da humanidade. Antes desse período, toda educação escolar consistia na especialização de alguém, cuja formação já fora feita pela sociedade e em rigor pela "classe" a que pertencia, nas artes escolares, que mais não eram que tipos especiais de ofícios intelectuais e sociais.

A sociedade formava os homens nas próprias matrizes estáveis das "classes" senão "castas", instituições que incorporavam a família e a religião, com as suas forças modeladoras e adaptadoras. Formado assim o homem, as aprendizagens mais específicas, relacionadas com o trabalho, se faziam pela participação direta na vida comum, ou, no caso de artesanato, pelo regime do mestre e aprendiz no ateliers e oficinas da época.

A escola e a universidade eram, apenas, aspectos mais amplos dessa especialização do artesanato, com mestres e alunos vivendo em comum, nas corporações universitárias, em regime de aprendizagem associada das pequenas e grandes artes intelectuais.

Quando, na Convenção Francesa, se formulou o ideal de uma educação escolar para todos os cidadãos, não se pensava tanto em universalizar a escola existente, mas em uma nova concepção de sociedade, em que privilégios de classe, de dinheiro e de herança não existissem, e o indivíduo pudesse buscar, pela escola, a sua posição na vida social. Desde o começo, pois, a escola universal era algo de novo e, na realidade uma instituição independente da família, da classe e da religião, destinada a dar a cada indivíduo a oportunidade de ser, na sociedade, aquilo que seus dotes inatos, devidamente desenvolvidos, determinassem.

Desse modo, a educação escolar passou a visar - não a especialização de alguns indivíduos, mas a formação comum do homem e a sua posterior especialização para os diferentes quadros de ocupações, em uma sociedade moderna e democrática.

Há, antes de tudo, uma transformação radical com a criação da nova escola comum para todos, em que a criança de todas as posições sociais iria formar a sua inteligência, a sua vontade e o seu caráter, os hábitos de pensar, de agir e de conviver socialmente. Essa escola formava a inteligência, mas não formava o intelectual. O intelectual seria das especialidades de que a educação posterior iria cuidar, mas não constitui objeto dessa escola de formação comum a ser, então, inaugurada. Por outro lado, além dessa total inovação, que representava a escola para todos, a própria educação escolar tradicional e ainda existente teria de se transformar, para atender à multiplicidade de vocações, ofícios profissões em que a nascente sociedade liberal e progressiva começou a desdobrar-se.

Resistência do conceito de educação-seleção ou especialização

Esses novos conceitos e aspirações não se concretizaram imediatamente. Os moldes antigos eram resistentes e todo o século dezenove foi uma luta por técnicas e processos novos, que permitissem a plena realização dos ideais escolares da democracia. Só muito lentamente é a escola comum se emancipou dos modelos intelectualistas para dar lugar à escola moderna, prática e eficiente, com um programa de atividades e não de "matérias", iniciadora nas artes do trabalho e do pensamento reflexivo, ensinando o aluno a viver inteligentemente e a participar responsavelmente da sua sociedade.

A nova escola comum, antes de mais nada, teve de lutar para fugir aos métodos já consagrados da escola antiga, que, sendo especial e especializante, especializara os seus processos e fizera da cultura escolar uma cultura peculiar e segregada.

A escola antiga era, com efeito, a oficina que preparava os escolásticos, isto é, homens de escola, homens eruditos, intelectuais, críticos... Objetivos, métodos, processos tudo passou nela a ser algo de muito especializado e, portanto, remoto, alheio à vida quotidiana e indiferente às necessidades comuns dos homens. Daí a pedagogia, os pedagogos, os didatas, gente de ofícios rebardativos, que só eles entendiam e eles só cultivavam. Movendo-se num círculo vicioso, essa raça de pedagogos não se preocupava senão em passar adiante as mesmas coisas e os mesmos processos que, desse modo, repetidos noutras escolas, se conservavam em benefício da sociedade tradicional. Essa escola, enrodilhada em si mesma, ensinando e praticando artes escolares e produzindo sem cessar outras escolas, era a escola-corporação da Idade Média, destinada a formar "escolásticos", do mesmo modo pelo qual as oficinas das artes práticas formavam os seus "oficiais"; alfaiates, sapateiros etc.

Tal organização não poderia existir sem uma alta especialização de conceitos a respeito de artes práticas e artes escolares ou intelectuais. Na realidade, prevalecia o dualismo grego entre o conhecimento empírico ou prático e o conhecimento racional ou intelectual. Este não seria uma decorrência daquele, mas um outro mundo, em que o ato de conhecer valia como fim em si mesmo e se destinava a nos dignificar e dar-nos os deleites da vida espiritual.

A escola era a oficina do conhecimento racional. A oficina era a escola do conhecimento prático. Uma não conhecia a outra. Dois mundos à parte. Podiam se admirar ou se odiar, mas não se compreendiam nem podiam se compreender.

A aproximação entre esses dois mundos, com a transformação completa de um e outro, dá-se com o aparecimento da ciência experimental. A ciência experimental, com efeito, nasce quando o homem do conhecimento racional resolve utilizar-se dos meios e processos do homem da oficina, não para fazer outros aparelhos ou petrechos mas para elaborar "saber" para "produzir" outros conhecimentos.

Quando Galileu constrói o seu telescópio, para com ele confirmar Copérnico, estava revolucionando, além do mundo das crenças cosmológicas, os métodos do conhecimento racional. O encontro do conhecimento racional com o mundo das oficinas constituiu fato muito mais significativo do que a descoberta do movimento da terra em torno do sol.

Porque desse encontro entre o "intelecto" e a oficina é que partiu todo o sistema de conhecimento científico moderno, que nada mais é que o conhecimento racional tornado fértil e fecundo, pela sua ligação com a realidade concreta do mundo e da existência. Toda uma nova filosofia do conhecimento se estabeleceu em oposição à formula grega de dualismo entre o racional e o empírico. O racional foi submetido à comprovação da experiência e se fez, na realidade, empírico. Efetivamente, as diferenças entre o experimental e o empírico passaram a ser antes de precisão de métodos, segurança de observação e de controle na verificação, do que de objeto ou de natureza. Na realidade, a diferença passou a ser antes de grau de segurança no conhecimento do que da natureza do conhecimento.

Com efeito, o dualismo instituído pelos gregos criara entre o conhecimento racional e o conhecimento empírico um abismo intransponível. O velho conhecimento do senso comum, de natureza empírica, dominava o mundo das artes e o conhecimento racional, o mundo do espírito. Tínhamos, assim, um duplo sistema: o conhecimento empírico produzia as artes empíricas, com que resolvia o homem os seus problemas práticos; o conhecimento racional o conduzia ao mundo das essências, em que aplacava a sua sede de compreensão e coerência. Pelo conhecimento empírico, agia; pelo conhecimento racional, pacificava-se, deleitava-se. No fundo, o conhecimento racional viera para substituir o pensamento mítico e religioso. A "razão" dos gregos era uma forma avançada de teologia.

Quando os hábitos de especular racionalmente se transferiram, no século XVI, para as oficinas, cujos aparelhos e petrechos começavam a ser usados no laboratório, não para a arte de produzir, mas para a arte de conhecer, criou-se um novo tipo de conhecimento, o conhecimento experimental, destinado a substituir, não as crenças teológicas do homem, mas as suas crenças práticas. O conhecimento experimental, misto de especulação racional e experiência prática, iria tomar o lugar do conhecimento empírico e produzir as tecnologias experimentais que, por sua vez, iriam substituir as artes empíricas. Os dois sistemas de conhecimento se fundiram desse modo em um método comum de pensamento e ação, unificados e racionais. Em esquema, a mudança foi a seguinte:

Vida

e

mundo grego

  1. Observação de senso comum - conhecimento empírico - artes empíricas.

2. Especulação racional - conhecimento racional compreensão do mundo.

Vida

e

mundo moderno

Especulação racional - observação e experimentação - conhecimento teórico - artes ou tecnologias científicas.

As separações entre o prático e o racional ou o prático e o teórico desapareceram. Todo o conhecimento, em todas as suas fases, passou a ser prático, tanto nos seus objetivos quanto em seus métodos. Prática, com efeito, era e é a especulação racional, porque ela se tem de fazer fundada na mais cuidadosa observação, que é uma atividade material e prática; prática é a teoria que essa especulação elabora, porque tem de ser comprovada experimentalmente; e prática, por fim, é a aplicação dessa teoria nas artes e tecnologias científicas da produção. Assim, nem pelo método, nem pela natureza ou objetivo da investigação diferem as fases da busca do conhecimento, da sua elaboração teórica ou de sua aplicação, desaparecendo, assim também, toda diferença entre os homens que estejam pesquisando, ensinando ou aprendendo, ou aplicando o conhecimento, no que diz respeito às suas atividades, todas elas materiais e práticas.

São simples divisões de trabalhos, semelhantes às que se processam em todas as atividades seriadas ou complexas. Tanto é prática a fase de observação e descoberta, como prática a fase de formulação teórica, como prática, a da aplicação da teoria aos projetos práticos dos homens.

Em face dessa unificação, a escola teria de deixar de ser a instituição especial de preparo daqueles "homens racionais ou escolásticos", devotados às atividades do espírito, para se constituírem agência de educação do novo homem comum para uma sociedade de trabalho científico e não "empírico", no velho sentido deste termo. Esta sociedade, está claro, teria de preparar trabalhadores para as três fases do saber, isto é, a pesquisa, o ensino e a tecnologia, mas todos teriam tudo em comum, exceto o gosto diferenciado por essas fases diversas do conhecimento científico, de sua natureza unitária. Três campos de trabalho, diversos mas equivalentes, usando método geral comum e articulado em atividades que se completam mutuamente, desde a pesquisa até a aplicação do conhecimento ou a tecnologia.

A nova "escola pública" ou "escola comum"

Em face da aspiração de educação para todos e dessa profunda alteração da natureza do conhecimento e do saber (que deixou de ser a atividade de alguns para, em suas aplicações, se fazer a necessidade de todos), a escola não mais poderia ser a instituição segregada e especializada de preparo de intelectuais ou "escolásticos", e deveria transformar-se na agência de educação dos trabalhadores comuns, dos trabalhadores qualificados, dos trabalhadores especializados em técnicas de toda ordem, e dos trabalhadores da ciência nos seus aspectos de pesquisa, teoria e tecnologia.

Dada a identificação do novo trabalho agrícola ou fabril com o trabalho cientifico, pois agricultura e indústria mais não são do que campos de aplicação da ciência, todas as escolas, do nível primário ao universitário, passaram a ser dominantemente escolas de ciência, já ensinando as suas aplicações generalizadas, já as teorias e técnicas especializadas, já o próprio trabalho de pesquisa, seja no campo teórico, seja no campo da aplicação.

Em todas essas modalidades, em face do caráter novo do conhecimento científico, o ensino se tem de fazer pelo trabalho e pela ação, e não somente pela palavra e pela exposição, como outrora, quando o conhecimento racional era de natureza especulativa e destinado à pura contemplação do mundo.

Se tudo isso se teria de dar em face tão-somente da evolução da teoria do conhecimento científico, ainda novos esclarecimentos nos viria trazer o progresso dos estudos de psicologia. Tais estudos, com efeito, vieram demonstrar que a aprendizagem puramente verbal não era realmente aprendizagem e que, mesmo nos setores de pura compreensão ou de apreciação, somente através da experiência vivida e real é que a mente apreende e absorve o conhecimento e o integra em formas novas de comportamento.

Os velhos métodos da escola medieval, de exposição e pura memorização, já seriam inadequados, mesmo que só tivessem de formar sucessores dos antigos "escolásticos", ou homens de cultura intelectual ou estética, capazes de discretear com gosto e elegância sobre qualquer assunto e nada saberem fazer. Ainda, pois, que a escola conservasse os seus velhos objetivos, ainda assim se teria de fazer ativa, prática, de experiência e de trabalho.

O "arcaísmo" da escola brasileira

Sendo esta a escola adequada aos dias de hoje, até que ponto a escola brasileira dela se aproxima? Temos do novo método de trabalho escolar vários exemplos. O Instituto Técnico de Aeronáutica, em São José dos Campos, é uma das melhores ilustrações. Algumas escolas de medicina estão em cheio nesse espírito. Os institutos onde se faz, verdadeiramente, a pesquisa científica adotam os métodos novos. São assim os cursos do SENAI e alguns cursos profissionais de técnicos industriais. Os cursos intensivos ou pós-graduados assumem, por vezes, esses aspectos atuais e práticos.

Mas, tudo isso, é de certo modo, ainda marginal e extraordinário. Regulares e sistemáticas são as formas arcaicas do ensino pela "exposição oral" e "reprodução verbal" de conceitos e nomenclaturas, mais ou menos digeridos por simples "compreensão", as quais dominam esmagadoramente a escola primária, a escola média, sobretudo a secundária, e a maior parte das escolas superiores.

A atividade escolar consiste em "aulas", que os alunos "ouvem", algumas vezes tomando notas, e nos "exames", em que se verifica o que sabem, por meio de provas escritas e orais. Marcam-se alguns "trabalhos" para casa e na casa se supõe que o aluno "estuda", - o que corresponde a fixar de memória quanto lhe tenha sido oralmente ensinado nas aulas.

Esta pedagogia podia perfeitamente funcionar numa escola da Idade Média. A sua filosofia do conhecimento é a de que o conhecimento é um corpo de informações sistematizadas sobre as coisas, que se aprendem, compreendendo-as e decorando-as para a reprodução nos exames.

E chamamos a isso educação de "cultural geral" e, algumas vezes, educação humanística, - sendo que muitos pensam que, se a modificarmos, destruiremos a nossa civilização, humanista e cristã...

Ensinam-se, por esse método expositivo, conhecimentos teóricos sobre as línguas (latim, português, francês, inglês, espanhol), sobre a geografia e a história, sobre as ciências, e até sobre a música e o trabalho manual. Como a escola é de "cultura geral", nada tem caráter prático. Raramente se consegue ler ou escrever qualquer daquelas línguas, inclusive o português, mas sabe-se de cor uma porção, às vezes considerável, de noções gramaticais sobre essas línguas e alguns trechos familiares podem ser traduzidos ou vertidos pelos alunos, desde que os trechos tenham sido "dados" nas aulas.

Em matemática, aprende-se largamente a manipulação algébrica, sem nenhum cuidado com a sua aplicação. Trata-se de algo como matemática pura, sendo, de certo modo, a própria aritmética considerada talvez demasiado aplicada e portanto insuscetível de servir à cultura geral.

História, geografia e as próprias ciências físicas e naturais também são ensinadas por exposição oral e com particular ênfase nos conhecimentos informativos ou na terminologia científica. Nem a função, nem a aplicação do conhecimento tem aí o menor sentido. O conhecimento é algo de absoluto em si mesmo, a ser ensinado para ser repetido nas ocasiões determinadas pelos exames.

Está claro que tal ensino não é sequer o ensino das escolas da Idade Média, mas o importante é que ele é o que é em virtude de uma teoria medieval do conhecimento.

Entre os escolásticos, herdeiros do saber grego, o saber era um saber absoluto e completo. Na Idade Média, sabia-se tudo. O mundo havia ficado conhecido pela revelação divina e pela revelação aristotélica. O desenvolvimento acaso possível nesse saber não traria propriamente nada de novo, mas novas distinções, novas discriminações, novos comentários e refinamentos de classificação.

Aprender essa "cultura" consistiria em compreender e fixar suas categorias, suas classificações, suas distinções e habilitar-se alguém a poder falar sobre o mundo e nós mesmos, com erudição e elegância, e contemplar as belezas desse conhecimento, belezas que se encontravam nas obras dos grandes mestres. Todo esse saber se achava em livros definitivos, cuja leitura daria toda a cultura possível. O "lente" era o leitor. Os alunos ouviam e aprendiam.

Somente semelhante teoria do saber poderia produzir a escola brasileira, com seus curtos períodos de aulas, seus pobres livros esquemáticos e seus exames para reprodução do aprendido nas aulas. Acrescentamos uma novidade à teoria: na Idade Média o "lente" era um especialista desse tipo de saber, nada mais fazia do que lidar com os seus alfarrábios, era mestre de uma arte hermética, de que o aluno seria o aprendiz. Entre nós, o "professor" pode ser qualquer pessoa que saiba mais ou menos ler. Encurtamos o período de aulas, encurtamos os professores. Nessa escola brasileira, tudo pode ser dispensado: prédio, instalações, biblioteca, professores... Somente não pode ser dispensada a lista completa de matérias. Qualquer daquelas disciplinas tem de existir no currículo. Uma só que retiremos, porá abaixo todo o edifício da nossa cultura! Ai de quem pensar em tirar uma só daquelas línguas, ou fundir uma disciplina na outra!...

Seria talvez exagerado pensarmos que, nesse caso brasileiro, ainda estamos lidando apenas com a velha noção do "conhecimento completo", total, da Idade Média, porque a verdade é que os currículos enciclopédicos decorrem, em grande parte, do medo dos professores de "perderem" aulas, que são o seu ganha-pão, com a simplificação dos currículos... Mas, abaixo ou acima dessa razão "prática", está a racionalização de que a cultura é algo de completo e que nada pode ser ignorado, sem grave defeito para a cultura.

Se nada pode ser ignorado é porque o saber é algo de "completo". Seria, então, loucura não o dar todo em nossos famosos cursos de "cultura geral", eufemismo em que escondemos a nossa concepção medieval de cultura como Suma Cultural.

Longe de mim pensar que não exista cultura geral, mesmo em nossos dias. Mas cultura geral não é cultura superficial, e sim exatamente o contrário. Cultura geral seria o último grau de generalização do conhecimento. Todo conhecimento é especial. Quando tomo esse conhecimento especial no seu último grau de generalização, tenho o conhecimento filosófico, que me daria uma cultura geral. É evidente que me terei de especializar nesse conhecimento geral...

Poder-se-ia também considerar cultura geral a cultura comum a todos, mas essa cultura seria uma cultura de uso comum e não, propriamente, uma cultura especializadamente intelectual. Seria uma tradução popular e geral das culturas especializadas, que constituem hoje o mundo sem fim e em eterno crescimento do saber. Salvo pelos livros chamados de popularização da ciência e da cultura, não vejo outro modo de se poder buscar esse tipo de cultura na escola.

Na realidade, ou teremos cultura geral como a mais alta expressão da cultura, como a praticam os filósofos, e só longos anos de estudos, altamente especializados, nos levarão a ela, ou teremos uma cultura geral popularizada, a ser dada pelos chamados vulgarizadores das ciências, das artes e das filosofias.

No primeiro caso, poderemos, com determinados alunos de alta capacidade, treiná-los no uso das idéias, familiarizá-los com o jogo dos conceitos matemáticos, científicos, literários e artísticos, e habilitá-los a ser especialistas nas idéias fundamentais com que a mente humana vem elaborando os seus extensíssimos conhecimentos experimentais, em todos os setores do saber humano. Estes seriam os estudiosos de cultura geral, e na realidade, filósofos das ciências, das artes, das letras e da religião.

Aos demais alunos, a cultura geral só poderá ser ministrada pelos livros de popularização da cultura. As nossas escolas não são uma coisa nem outra. Arcaicas nos seus métodos e seletivas nos currículos, não são de preparo verdadeiramente intelectual, não são práticas, não são técnico-profissionais, nem são de cultura geral, seja lá em que sentido tomarmos o termo.

Mas são, por força da tradição, escolas que "selecionam", que "classificam" os seus alunos. Passar pela escola, entre nós, corresponde a especializar-nos para a classe média ou superior. E aí está a sua grande atração. Ser educado escolarmente significa, no Brasil, não ser operário, não ser membro das classes trabalhadoras.

A escola como formação do "privilegiado"

Mesmo no ensino primário vamos encontrar a nossa tendência visceral para considerar a educação um processo de preparo de alguns indivíduos para uma vida mais fácil e, em rigor, privilegiada. Como esse ensino não chega a formar o "privilegiado", aquela tendência provoca a deterioração progressiva deste ensino, sobretudo depois que passou ele a contar realmente com esmagadora freqüência popular.

Para isto demonstrar não preciso mais do que apresentar algumas cifras.

Tínhamos, em 1900, 9.750.000 habitantes de mais de 15 anos, dos quais 3.380.000 eram alfabetizados e 6.370.000 analfabetos. Em 1950, 14.900.000 eram alfabetizados e 15.350.000, analfabetos. Diminuímos a percentagem de analfabetos de 65% para 51%, em cinqüenta anos, mas em números absolutos, passamos a ter bem mais do dobro de analfabetos.

Se considerarmos o analfabeto, como seria lícito considerar, um elemento mais negativo do que positivo na população, a situação brasileira, do ponto de vista da educação comum, tornou-se em 1950 pior do que em 1900. Mas, se tomarmos o ponto de vista de que o processo educativo é um processo seletivo, destinado a retirar da massa alguns privilegiados para uma vida melhor, que se fará possível exatamente porque muitos ficarão na massa a serviço dos "educados", então o sistema funciona, exatamente, porque não educa todos, mas somente uma parte.

Bendito seja o nosso crescimento demográfico que anula o nosso pequeno esforço em aumentar as oportunidades de educação primária, sem lhe tirar, por isto mesmo, o caráter de educação seletiva!

Tomemos, porém, apenas a população de menos de 15 anos, isto é, a população em processo de alfabetização e vejamos se a escola vem dando conta da tarefa em relação a esses futuros adultos.

QUADRO 1 - DISTRIBUIÇÃO, POR IDADE, DA POPULAÇÃO DE MENOS DE 15 ANOS

IDADE

 

TOTAL

ALFABETIZADOS

ANALFABETOS E SEM DECLARAÇÃO

8 anos

9 anos

10 anos

11 anos

12 anos

13 anos

14 anos

 

TOTAL

 

1 389 175

1 259 533

1 436 438

1 189 571

1 351 233

1 157 404

1 173 921

 

8 957 275

281 832

388 735

487 541

520 075

583 930

574 225

592 954

 

3 429 392

1 107 243

870 798

948 897

669 496

767 303

583 179

580 967

 

5 227 883

% de alfabetizados s/total - 38,2%

Numa população por alfabetizar de 8.950.000, conseguimos alfabetizar 3.400.000, isto é, 38%, conservando analfabetos, para engrossar a grande fileira dos que vão nos ajudar a sermos "privilegiados", 5.500.000 brasileiros. Estamos, com efeito, a aumentar o analfabetismo no Brasil e não a reduzi-lo a despeito do aparente crescimento vegetativo das escolas. Digo aparente, porque esse próprio crescimento vegetativo, na realidade, não chega a ser crescimento. Em face do crescimento da população, estamos a congestionar as escolas e não a aumentá-las, estamos a reduzir o ensino e não a aumentá-lo.

Todos os índices confirmam essa minha severidade. Tomemos, por exemplo, a matrícula efetiva das escolas primárias em relação com as conclusões do curso, em 20 anos, de 1933 a 1953:

Quadro 2 - Conclusões de curso no ensino primário
(cursos de 3 e 4 séries)
 

1933

1940

1950

1953

 

Matrícula efetiva

Conclusões de curso

% s/matrícula na 1ª série

 

1 794 335

124 208

± 7%

2 555 191

202 603

± 8%

3 709 887

283 874

± 7%

4 142 318

316 986

± 7%

Se isso não basta para provar a estagnação do ensino primário, tomemos a percentagem do corpo docente, diplomado por escolas normais: tínhamos, em 1933, 53.000 docentes com 57,8% de diplomados. Há três anos, em 1953, 134.000 eram estes docentes, dos quais apenas 53% diplomados.

Se não bastar o número crescente de analfabetos, se não bastar o aumento da percentagem de professores não diplomados, tomemos o progresso dos alunos através das séries, em dez anos, entre 1944 e 1953:

Quadro 3 - Percentagem dos alunos pelas cinco séries

Anos

 

Matrícula

geral

1ª série

2ª série

3ª série

4ª série

5ª série

1944

1945

1946

1947

1948

1949

1950

1951

1952

1953

 

100.0

100.0

100.0

100.0

100.0

100.0

100.0

100.0

100.0

100.0

53,4

53,9

54,9

54,7

56,6

56,4

56,3

56,5

56,9

56,9

21,9

21,8

21,2

21,6

21,1

21,2

21,1

20,8

20,6

20,6

14,9

14,5

14,5

14,4

14,0

14,0

14,1

14,1

14,0

14,0

 

8,3

8,3

7,9

8,2

7,8

8,0

8,0

8,0

8,1

8,1

1,5

1,5

1,5

1,1

0,5

0,4

0,5

0,5

0,4

0,4

Como se vê, a situação é dolorosamente estacionária, como estacionária e até decrescente, na última série, também é a taxa de aprovação por série:

Quadro 4 - Aprovações pelas séries

Anos

 

Matrícula

geral

1ª série

2ª série

3ª série

4ª série

5ª série

1944

1945

1946

1947

1948

1949

1950

1951

1952

1953

 

1 477 192

1 503 118

1 604 481

1 691 231

1 824 034

1 903 650

2 027 944

2 152 375

2 258 004

2 357 207

610 767

628 333

684 395

730 157

790 580

852 077

913 478

989 023

1 039 199

1 098 017

379 291

393 528

407 857

434 969

471 722

475 942

513 382

526 991

557 680

570 012

282 439

275 837

299 751

309 212

339 783

347 914

360 543

382 540

390 995

412 138

174 543

175 846

180 662

193 889

209 328

217 124

225 606

239 508

253 797

262 844

30 152

29 574

31 816

23 004

12 621

10 593

14 935

14 313

16 333

14 196

Diante disto, já não tem a mesma eloqüência o crescimento em números absolutos. Não exageramos, pois, quando afirmamos a franca deterioração do ensino primário, com a exarcebação do caráter seletivo da educação, no seu vezo de preparar alguns privilegiados para o gozo das vantagens de classe e não o homem comum para a sua emancipação pelo trabalho produtivo.

Com efeito, se deixarmos o ensino primário e passarmos a analisar o ensino médio e o superior, já a expansão é perfeitamente acentuada. E em relação ao ensino mais acentuadamente de classe - que é o secundário - essa expansão chega a ser espetacular.

Antes, porém, de passarmos à análise da situação do ensino secundário, tomemos o quadro abaixo, relativo à matrícula e distribuição por séries dos alunos do curso primário entre 1944 e 1953:

Quadro 5 - Distribuição por série dos alunos na escola primária

Anos

 

Matrícula

total

1ª série

2ª série

3ª série

4ª série

Conclusão

de curso

1944

1945

1946

1947

1948

1949

1950

1951

1952

1953

 

2 631 451

2 741 725

2 887 960

3 063 775

3 301 084

3 479 056

3 709 887

3 860 593

3 964 905

4 142 318

1 402 647

1 478 113

1 583 585

1 675 887

1 864 987

1 960 732

2 087 964

2 180 131

2 239 859

2 352 093

577 130

597 384

613 349

662 148

698 408

736 666

784 546

805 060

833 329

854 480

391 610

398 180

419 779

440 372

462 459

487 585

519 911

545 737

549 096

581 476

 

219 674

226 577

228 365

151 137

258 534

279 903

299 009

310 615

322 010

336 196

127 468

127 151

133 591

149 725

185 251

193 822

206 380

219 241

236 089

243 652

Dos alunos de 4ª série, concluem-na com êxito os constantes da última coluna. Por conseguinte, todo o ensino primário brasileiro frutifica, afinal, nos 243.652 doutorezinhos aprovados na 4ª série. A proporção de alunos que passam em cada ano para a série seguinte pode ser vista no Quadro 3. Estão na 1ª série 57% dos alunos matriculados no ensino primário, na 2ª série - 20%, na 3ª - 14% e na 4ª - apenas 8%. Que sucede a esses 8%? Longe de conservarem a tendência à redução na série seguinte, encontram-se quase todos no ensino médio, pois, com efeito, a matrícula à 1ª série do ginasial é de 180.000, que somados a 24.000 do comercial e 6.000 do industrial, elevam a freqüência à 1ª série do ensino médio a 210.000 alunos, sem contar os do curso normal. Enquanto entre a 3ª série primária e da 4ª, a queda é brusca de 580.000 para 330.000, ou da 4ª série primária para a 1ª série secundária, tomados os aprovados naquela série, temos que dos 243.000 chegam ao secundário 210.000 alunos.

Bem sabemos que, não havendo articulação entre o ensino primário e o médio, aqueles 210.000 alunos não são rigorosamente os mesmos que terminam o primário. Isto, porém, torna ainda mais significativo o fato. Na realidade, se atentarmos em que o ensino secundário e médio só existe nas capitais e em 1/3 dos municípios do interior e apesar disto logra essa matrícula, é que a escola secundária é muito mais desejada do que a escola primária. E por que? Porque "classifica" o aluno e o lança entre os previlegiados e semiprevilegiados da nação.

A transigência ou compromisso do dualismo escolar

Dir-se-á que, assim, deve realmente ser. As escolas não foram afinal criadas para renovar as sociedades, mas para perpetuá-las e, por isso mesmo, a sua relação com as estruturas sociais de classe havia de ser a mais estrita. Nenhum sistema de escolas foi jamais criado com o propósito de subverter a estratificação social reinante.

A realidade, porém, é que a idéia da escola comum ou pública, nascida com a revolução francesa - a maior invenção social de todos os tempos, no dizer de Horace Mann - importa exatamente em sobrepor-se ao conceito de classe e prover uma educação destinada a todos os indivíduos, sem a intenção ou o propósito de prepará-los para quaisquer das classes existentes.

Na própria França, entretanto, tal escola só se estabeleceu, mediante uma transação. Criou-se, é certo, um sistema popular de educação, mas conservou-se, ao lado, o sistema de educação de classe. A escola primária, a escola primária superior, as escolas normais e as profissionais constituíam o sistema "popular". As classes préparatoires, o liceu, as "grandes escolas" e a universidade, o sistema de educação de classe, ou para elite. O dualismo era perfeito, não havendo possibilidade sequer de comunicação. O espírito "primário" dominava o sistema popular, o espírito "secundário" dominava o segundo.

Apesar de havermos copiado as instituições políticas à América do Norte, não lhe copiamos as instituições educativas. Fomos antes buscar inspiração na França. A escola primária, a escola complementar, a escola normal e as escolas "profissionais" constituíam o nosso sistema popular de educação. O "ginásio" e a "academia", o nosso sistema de educação de classe ou de elite.

Tal dualismo, graças ao qual, recusávamos a nossa adesão à escola comum, à coammom school americana ou a école unique francesa - a que também a França recusou a adesão, a despeito das maiores campanhas - impediu sempre, entre nós, o florescimento da "escola pública comum". Esta escola - fosse a primária ou a "média-profissional", em que pese a certo empenho do Governo, jamais gozou de verdadeiro prestígio social.

A sociedade brasileira que contava, isto é, a sociedade de "classe", no sentido de classe dominante, dela não precisava. Em alguns casos, freqüentava a "escola primária", mas, quando o fazia, transformava também essa escola em escola de classe, exigindo condições econômicas satisfatórias para que se pudesse freqüentá-la: o uniforme e os sapatos, às vezes, bastavam para delas afastar o povo.

As escolas refletiram, assim, de acordo com o velho estilo, o dualismo social brasileiro, entre os "favorecidos" e os "desfavorecidos". Por isso mesmo, a escola comum, a escola para todos, nunca chegou, entre nós, a se caracterizar, ou a ser de fato para todos. A escola era para a chamada elite. O seu programa, o seu currículo, mesmo na escola pública, era um programa e um currículo para "privilegiados". Toda a democracia da escola pública consistiu em permitir ao "pobre" uma educação pela qual pudesse ele participar da elite.

Ora, a idéia de "educação comum", da escola pública americana ou da école unique francesa, não era nada disso. Não se cogitava de dar ao pobre a educação conveniente ao rico, mas, antes, de dar ao rico a educação conveniente ao pobre - pois, a nova sociedade democrática não deveria distinguir - entre os indivíduos, os que precisavam dos que não precisavam de trabalhar, mas a todos queria educar para o trabalho, distribuindo-os pelas ocupações, conforme o mérito de cada um e não segundo a sua posição social ou riqueza.

Não se tratava, com efeito, de generalizar a educação para os "privilégios", mas de acabar com tais "privilégios", em uma sociedade hierarquizada nas ocupações, mas desierarquizada socialmente.

Entre nós, porém, apesar de havermos tido o cuidado de criar o sistema de educação "popular", distinto do sistema de educação da elite, a classe dominante, mais dominante do que rica, ocupou até muito recentemente a própria "escola primária pública", dando-lhe a ela própria o caráter de escola de classe, no que muito a ajudou, sobretudo nas grandes cidades, o recrutamento do magistério primário na classe média e, às vezes, até na superior.

Fora as "escolas profissionais", nenhuma outra escola brasileira escapou a espírito de educação de "elite", profundamente arraigado em nossa sociedade e agravado ainda pelo preconceito contra o trabalho manual, que nos deixou a escravidão.

O dualismo escolar entra em crise

Tudo isso funcionou, entretanto, sem maior gravidade, enquanto perdurou na vida brasileira o dualismo pacífico entre os "favorecidos" ou "privilegiados" e os desfavorecidos ou desprivilegiados.

Com a formação de uma consciência comum de direitos em todo o povo brasileiro, cuja emancipação veio afinal a se processar, nos últimos vinte e cinco anos, deparamo-nos com um sistema escolar de todo inadequado para lidar com o verdadeiro problema educativo de um povo já agora uno e indiviso.

O nosso sistema arcaico de educação, - destinado ao preparo das nossas diminutas classes de lazer e de mando, mando muito mais decorrente do "prestígio" social dessas classes do que de sua competência, e por isto mesmo fácil de ser exercido - podia ser puramente "decorativo" e, ainda assim, atingir os seus objetivos.

Já agora, porém, não lhe basta isto. É o povo brasileiro que tem ele de educar. Este povo não pode viver do "prestígio", que lhe dê o fato de haver alisado os bancos escolares, mesmo porque "prestígio" se goza contra alguém ou à custa de alguém e já não há esse alguém contra o qual se possa exercê-lo.

O primeiro movimento do povo brasileiro está sendo o de conquista dessa educação decorativa, antes destinada à elite. A chamada expansão educacional brasileira nada mais é do que a generalização para todos da educação da elite. Como todos, que a estão buscando, não podem ter padrões mais lúcidos do que os da própria elite, eles ainda a aceitam mais decorativa, mas simulada do que a própria elite.

Já vimos como o ensino primário nos confirma, pela sua perda crescente de prestígio social, a falta de interesse pela educação comum e a preferência pelo ensino seletivo. Mas o ensino médio e o superior, por sua própria natureza seletivos, é que nos revelam o grau de exacerbação a que chega a nossa busca de "prestígio" e não de eficiência pela educação.

A expansão desses dois níveis de ensino é, de algum tempo para cá, absolutamente incoercível. Existem 2.363 escolas de nível médio, sendo que 1.887 mantêm o curso secundário, 628, o comercial, 873, o normal, 86, os cursos industriais e 17, o curso agrícola. A matrícula geral é de 780.639, sendo 579.781 no secundário, 114.000 no comercial, 67.000 no normal, 19.000 no industrial e 1.200 no agrícola. Na primeira série encontram-se 180.000 no secundário, 24.000 no comercial, 24.000 no normal e 6.200 no industrial, ao todo 234.000, número equivalente aos dos que terminam o curso primário.

Todas as cifras são reveladoras da preferência manifesta pelo tipo de educação verbal, decorativa, destinada a permitir a vida que não seja a comum do brasileiro e sobretudo em que não haja esforço manual. Os cursos industriais lá estão com menos de 3% da matrícula geral, o agrícola com 1,1% e o comercial com pouco mais de 14%. O que todos procuram é o curso secundário acadêmico, preparatório para o ensino superior.

A energia improvisadora posta a serviço dessa expansão do ensino propedêutico ao superior pode ser verificada na constituição do seu magistério. Apenas 16% dos seus professores são licenciados das escolas de filosofia, embora estas tenham já mais de 20 anos de existência. As demais escolas superiores forneceram 24% do corpo docente. Com diplomas de escolas médias - metade normalistas - há 41% dos professores. Os restantes 19% não têm diploma algum. O professorado do ensino médio já atinge a mais de 47.000 docentes, número superior em quase o dobro ao de qualquer outra profissão liberal tomada isoladamente.

Tal expansão - como audácia educacional - só é superada pela do ensino superior, onde estamos hoje com 73.000 alunos e 12.672 professores, quando tínhamos em 1929 apenas 13.239 alunos e 2.116 professores.

O sistema de ensino primário somente existe para abastecer de alunos esses dois sistemas seletivos, em que estamos a formar quadros de nível superior muito acima, - não de nossas necessidades, mas da nossa capacidade de utilizá-los e remunerá-los. Porque, tais quadros só se devem expandir legitimamente, quando a produtividade individual chega a tal ponto que os quadros de serviços se fazem maiores do que os da produção propriamente dita.

Na América do Norte, para um quadro de 13 milhões de operários, há quadros de serviços da ordem de 50 milhões. Mas isto, porque o operário chegou a uma produtividade que se mede pelo salário mínimo de um dólar por hora.

Entre nós, porém, com o operário mais ou menos bisonho, pois somente continua operário quem não consegue "educar-se", onde iremos buscar recursos para pagar a todos que, "educados", apenas se poderão dedicar aos "serviços" intermediários da civilização?

Se a isto acrescentarmos que a educação ministrada por essa inflação de escolas não tem qualquer grau de eficiência, veremos que considerar essa educação como a educação para os serviços de uma civilização, é apenas força de expressão. Na realidade, a educação, como se vem fazendo entre nós, dá direitos, graças ao diploma oficial, mas não prepara nem habilita para coisa alguma. O diplomado é um candidato à pensão do Estado ou dos particulares. Alguns se farão, depois, profissionais, por tirocínio e prática, não pela escola, salvo as exceções conhecidas das melhores escolas de medicina, engenharia e direito.

Necessidade de uma nova política educacional

Outra seria a situação, se houvéssemos conseguido criar realmente um autêntico sistema de educação pública, destinado à "educação "comum". Como nos Estados Unidos, onde foi mais vigoroso e correto o desenvolvimento da common school, veríamos a ascensão do povo brasileiro, graças à sua unificação, para níveis econômicos cada vez mais altos, sem perda, porém, das suas condições de ocupação e trabalho.

As escolas brasileiras estão, com efeito, a ser buscadas pelo povo com ansiedade crescente, havendo filas para a matrícula da mesma natureza das filas para a carne. Os turnos se multiplicam, os prédios se congestionam, os candidatos aos concursos de admissão são em número muito superior aos das vagas e as limitações de matrícula constituem graves problemas sociais, às vezes até de ordem pública.

A consciência da necessidade da escola, tão difícil de criar em outras épocas, chegou-nos, assim, de imprevisto, total e sôfrega, a exigir, a impor a ampliação das facilidades escolares. Não podemos ludibriar essa consciência. O dever do governo - dever democrático, dever constitucional, dever imprescritível - é o de oferecer ao brasileiro uma escola primária capaz de lhe dar a formação fundamental indispensável ao seu trabalho comum, uma escola média capaz de atender à variedade de suas aptidões e das ocupações diversificadas de nível médio e uma escola superior capaz de lhe dar a mais alta cultura e, ao mesmo tempo, a mais delicada especialização. Todos sabemos quanto estamos longe dessas metas, mas o desafio do desenvolvimento brasileiro é o de atingi-las, no mais curto prazo possível, sob pena de perecermos ao peso do nosso próprio progresso.

A educação primária já se distribui no país por mais de 70.000 unidades, com cerca de 140.000 professores, abrigando cerca de 4 milhões de crianças, custando à nação cifra que não é inferior a três bilhões de cruzeiros. Estes os números que, em si, parecerão significativos.

Mas, por trás dos números esconde-se, como vimos, uma realidade bem pouco animadora. Estes alunos não se conservam na escola, em média, mais que 2 anos e pouco. Em todo o país, apenas 8 a 10% deles chegam à quarta série primária. Com a matrícula em muito superior à sua capacidade, a escola se divide em turnos, oferecendo ao aluno meio dia escolar e, em muitos casos, um terço do dia escolar, com a conseqüente redução de programa.

Com programa assim reduzido pela angústia de tempo, sofre ainda a escola uma administração centralizada e rígida, que lhe dificulta a adaptação a condições cada vez mais difíceis de funcionamento. Por outro lado, o professor, integrado em quadro único pertencente a todo o Estado, desligou-se da escola, para pertencer às secretarias de educação, onde vive numa competição dolorosa por promoções, remoções e comissões, que se fazem os objetivos da profissão.

Com esse professorado extremamente móvel senão fluido e as matrículas duplicadas ou triplicadas, a escola entra a funcionar por sessões, como os cinemas, e a se fazer cada vez menos educativa, por isso mesmo que sem continuidade nem seqüência.

Com efeito, a instituição que, por excelência, deve ser estável a fim de contrabalançar a instabilidade moderna, faz-se ela própria incerta e instável, com administração e professorado em mudança permanente e os alunos na ronda dos turnos cada vez mais curtos.

Tais circunstâncias fazem com que a escola primária venha perdendo a função característica de ser a grande escola comum da nação, a escola de base, em que se educa a grande maioria de seus filhos, para se constituir simples escola de acesso, preparatória ao ginásio, para onde se dirige a maior parte dos alunos que logram chegar à quarta série.

Este desvirtuamento da escola primária concorreu, junto com outras circunstâncias, para exacerbar o anseio pela escola secundária de tipo acadêmico, que entrou a ser improvisada de todos os modos, a fim de continuar a educação preparatória, que a escola primária iniciara nos seus fugidios turnos de ensino.

Tais escolas secundárias, como as primárias funcionando em turnos, como as primárias, improvisadas, como as primárias, de puro ensino verbalístico, e, ainda, como as primárias, puramente preparatórias prosseguem com os seus alunos num esforço, não de formação, mas de seleção e acabam com apenas dezessete mil alunos na última série de colégio. Sobreviventes de um sistema escolar inadequado e frustro, não têm estes poucos milhares de alunos outra coisa a fazer senão aspirar à escola superior, para cujo exame vestibular se precipitem em levas muito superiores ao número de vagas existentes... Aí os espera um concurso altamente seletivo, que se vem tornando suplício semelhante a dos arcaicos exames chineses. No final de contas, dos quatro milhões de alunos primários, reduzidos a setecentos mil de ensino secundário, emergem os sessenta mil alunos das escolas superiores que, mal ou bem, se vão diplomar para as carreiras de nível mais alto.

Tudo estaria, talvez, bem se efetivamente não visássemos à formação de todos os brasileiros para os diversos níveis de ocupações de uma democracia moderna, mas tão-somente à seleção de um mandarinato de letras, das ciências e das técnicas.

Nenhum país vive, porém, de um tal mandarinato intelectual, ainda que realmente capaz, o que não é o caso brasileiro, mas dos quadros numerosos e eficazes do trabalhador comum, formado na escola primária, dos quadros do trabalhador qualificado, treinado diretamente pela indústria e pelos cursos de continuação, dos quadros do especialista de nível médio preparado nos cursos médios, múltiplos e variados, e dos quadros de especialistas de nível alto, formados pela universidade e pelas escolas superiores.

A escola primária que irá dar ao brasileiro esse mínimo fundamental de educação não é, precipuamente, uma escola preparatória para estudos ulteriores. A sua finalidade é, como diz o seu próprio nome, ministrar uma educação de base, capaz de habilitar o homem do trabalho nas suas formas mais comuns. Ela é que forma o trabalhador nacional em sua grande massa. É, pois, uma escola, que é o seu próprio fim e que só indireta e secundariamente prepara para o prosseguimento da educação ulterior à primária. Por isto mesmo, não pode ser uma escola de tempo parcial, nem uma escola somente de letras, nem uma escola de iniciação intelectual, mas uma escola sobretudo prática, de iniciação ao trabalho, de formação de hábitos de pensar, hábitos de fazer, hábitos de trabalhar e hábitos de conviver e participar em uma sociedade democrática, cujo soberano é o próprio cidadão.

Não se pode conseguir essa formação em uma escola por sessões, com os curtos períodos letivos que hoje tem a escola brasileira. Precisamos restituir-lhe o dia integral, enriquecer-lhe o programa com atividades práticas, dar-lhe amplas oportunidades de formação de hábitos de vida real, organizando a escola como miniatura da comunidade, com toda a gama de suas atividades de trabalho, de estudo, de recreação e de arte.

Ler, escrever, contar e desenhar serão por certo técnicas a ser ensinadas, mas como técnicas sociais, no seu contexto real, como habilidades, sem as quais não se pode hoje viver. O programa da escola será a própria vida da comunidade, com o seu trabalho, as suas tradições, as suas características, devidamente selecionadas e harmonizadas.

A escola primária, por este motivo, tem de ser instituição essencialmente regional, enraizada no meio local, dirigida e servida por professores da região, identificados com os seus mores, costumes.

A regionalização da escola que, entre nós, se terá de caracterizar pela municipalização da escola, com administração local, programa local e professor local, concorrerá em muito para dissipar os aspectos abstratos e irreais da escola imposta pelo centro, com programas determinados por autoridades remotas e distantes e servida por professores impacientes e estranhos ao meio, sonhando perpetuamente com redentoras remoções.

Tal escola com horários amplos, integrada no seu meio e com ele identificada, regida por professores provindos das suas mais verdadeiras camadas populares, percebendo os salários desse meio, será uma escola reconciliada com a comunidade e já sem o caráter ora dominante de escola propedêutica aos estudos ulteriores ao primário. Esta será a escola fundamental de educação comum do brasileiro, regionalmente diversificada, comum não pela uniformidade, mas pela sua equivalência cultural.

Assim que os recursos permitirem, ela se irá ampliando em número de séries e entrando pelo nível das escolas de segundo grau, sem perder os característicos de escola mais prática do que intelectualista e os de integração regional tão perfeita quanto possível.

Está claro que essa escola, nacional por excelência, a escola da formação do brasileiro, não pode ser uma escola imposta pelo centro, mas o produto das condições locais e regionais, planejada, feita e realizada sob medida para a cultura da região, diversificada, assim, nos seus meios e recursos, embora uma nos objetivos e aspirações comuns.

É tempo já de esquecermos o nosso hábito de pensar que os brasileiros residentes fora das metrópoles precisam das lições e das cautelas do centro para se fazerem brasileiros, ou nacionais, como é de certo gosto totalitário afirmar. Todos os brasileiros são tão bons brasileiros quanto os funcionários federais, nada havendo que nos garanta serem tais funcionários mais seguros em definir o que seja nacional do que os servidores estaduais ou municipais.

O país é um só, com uma só língua, uma só religião dominante ou majoritária, uma só cultura, embora com diversas subculturas, e em caminho para a unificação social em um só povo, distribuído por classes, mas classes abertas e de livre e fácil acesso. Além disto, ligado já por uma extensa e intensa rede de comunicação, pelo avião e pelo rádio, que permita a livre, ampla e rápida senão simultânea circulação de idéias e notícias. Nenhum motivo já existe para as cautelas centralistas e centralizantes, que se poderiam justificar em outras épocas, embora nem sempre com os mais puros propósitos.

A descentralização, assim, contingência da nossa extensão territorial e de nosso regime federativo e democrático, é hoje uma solução - além de racional e inteligente - absolutamente segura. Tenhamos, pois, o elementar bom senso de confiar no país e nos brasileiros, entregando-lhes a direção dos seus negócios e, sobretudo, da sua mais cara instituição - a escola, cuja administração e cujo programa deve ser de responsabilidade local, assistida e aconselhada tecnicamente pelos quadros estaduais e federais.

Organizados que sejam, assim, os sistemas municipais de educação e ensino, as escolas passarão a ser instituições nutridas pelo orgulho local, vivas e dinâmicas, a competir com os demais sistemas municipais e a encontrar nessa competição as suas forças de progresso e de gradual unificação, pois competir é emular e toda emulação importa em reconhecer o caráter e as forças comuns que inspiram a instituição.

Presidindo a essa saudável e construtiva rivalidade regional e local, o Estado e a União, equipados de corpos profissionais e técnicos de alta competência e liberados de absorventes ônus administrativos, exercerão os seus deveres de assistência supervisora, não pela imposição, mas pela liderança inteligente, tornando comum para todos, pela informação, a experiência de cada um, facilitando o intercâmbio de valores e de progressos e orientando e coordenando os esforços para o avanço e a unidade, dentro, repetimos, das diversidades regionais e locais.

A assistência dos centros não se exercerá somente pela atuação direta dos seus técnicos, mas, sobretudo, pela formação dos professores, que lhes poderá ficar afeta, uma vez assegurado que Estado ou União respeitarão as características regionais das escolas a que se destinarão os mestres que, assim, irão preparar.

Não pensamos, pois, reformar a escola brasileira com a imposição de modelos a priori formulados por um centro ou por alguns poucos centros dirigentes, mas antes liberar as forças locais de iniciativa e responsabilidade e confiar-lhes a tarefa de construir a escola nacional, sob os auspícios de uma inteligente assistência técnica dos Estados e da União. Não somos nação a ser moldada napoleônicamente do centro para a periferia, mas um grande e variado império a ser assistido e, quando muito coordenado pelo centro, a fim de poder prosseguir no seu destino de criar, nos trópicos, uma grande cultura, diversificada nas suas características regionais e una nos seus propósitos e aspirações de civilização e democracia.

A descentralização educacional que, assim, propugnamos não representa apenas medida técnica que está, dia-a-dia, mais a se impor, por uma série de motivos de ordem prática, mas também um ato político de confiança na nação e de efetivação do princípio democrático de divisão do poder, a impedir os estrangulamentos da centralização e dificultar a concentração de força que nos poderia levar a regimes totalitários.

Toda unificação imposta e forçada é, nesse sentido, uma fragilidade e trabalho no sentido da ossificação de nossa cultura, dificultando-lhe a diversificação saudável e revitalizante.

A grande reforma da educação é, assim, uma reforma política permanentemente descentralizante, pela qual se criem nos municípios os órgãos próprios para gerir os fundos municipais de educação e os seus modestos mas vigorosos, no sentido de implantação local, sistemas educacionais. Tais sistemas locais, em número equivalente ao dos municípios, constituirão, em cada Estado, o sistema estadual, o qual compreenderá, além das escolas propriamente locais, de administração municipal, as escolas médias e superiores, inclusive as de formação do magistério, de sua própria administração. Pela formação do magistério e pela vigorosa e ampla assistência financeira e técnica aos municípios, exercerá o Estado a ação supervisora, destinada a promover a unidade do ensino sem perda das condições revitalizantes e construtivas do genius-loci.

Em esfera ainda mais ampla atuará a União, com a sua rede de escolas médias, profissionais, superiores, de experimentação e demonstração, todas visando a mais alta qualidade e se destinando a agir nos sistemas estaduais e locais como exemplos de desenvolvimento e aperfeiçoamento. Este sistema federal só por si já operaria como força unificadora, mas terá ainda a União duas grandes forças de estímulo e coordenação: a assistência financeira e técnica às escolas e a atribuição de regulamentar o exercício das profissões. Com estes dois instrumentos, o seu poder continuará, dentro do sistema descentralizado e vivo da educação nacional, tão forte e de tamanhas potencialidades, que antes será de recear a sua ação excessivamente uniformizante, suscetível de bloquear iniciativas felizes, locais e estaduais, do que qualquer imaginário perigo da liberdade que se dará ao Estado e ao Município, muito mais para lhes permitir assumir a responsabilidade do seu ensino e com ela a possibilidade de fazê-lo real e vivo, do que, efetivamente, para organizá-lo à sua discrição.

Com efeito, embora as instituições escolares tenham objetivos próprios, todas elas se articulam em um sistema contínuo de educação, em que os graus mais altos influem na organização e sentido dos menos altos, determinando isto que o ensino médio condicione o primário e o superior condicione o médio.

É a unidade vital, em oposição à desagregação mineralizada dos sistemas unitários e uniformes. O Município, com o seu sistema de escolas locais, primárias e médias, enraizadas no solo físico e cultural do Brasil, brasileiras como as que mais o sejam, o Estado, com as suas escolas médias, superiores e profissionais, exercendo e sofrendo a influência das escolas locais e detendo o poder de formar o magistério primário, e a União, com o sistema federal supletivo de escolas superiores, escolas primárias e médias de demonstração, órgãos de pesquisa educacional e o poder de regulamentar as profissões, - atuarão em diferentes ordens, independentes mas articuladas, constituindo a ação tríplice, mas convergente, dos três poderes, algo de dinâmicamente sistemático e unificado. De tal modo sistemático e unificado, que somente não será excessivamente rígido, porque o jogo de influências dominantes das ordens superiores sobre as inferiores só se exerceria continuamente pela assistência técnica - propulsionada pela assistência financeira - graças à qual o poder talvez ainda demasiado grande do Estado e da União se adoçará sob formas de ação mútua, em que o jogo de influência não se faça somente no sentido descendente, mas de maneira recíproca, recebendo a ordem superior o influxo da inferior para maior eficácia e fertilidade de sua própria atividade.

Muito do caráter mecânico, irreal e abstrato de nossas escolas desaparecerá em virtude dessas altas medidas políticas e administrativas, ressurgindo, em seu lugar, as virtudes tão brasileiras do seu gênio criador que, em outras esferas, vem produzindo as adaptações tão características de sua civilização em formação, em que se misturam traços tão complexos e delicados de influências de toda ordem, sobressaindo mais que todos os aspectos de um dinamismo criador e otimista, sem as durezas do competivismo americano, mas equilibrado, em sua febre, por um grão de sal humanístico que nos vêm da doçura essencial do nosso temperamento tropical e mestiço.

Instituídos que sejam os órgãos locais, estaduais e federais de propulsão, financiamento e administração do imenso empreendimento escolar para a formação e o preparo do brasileiro, cujas bases se encontram lançadas em nossa Constituição, com o reconhecimento expresso das três ordens de atribuições - municipal, estadual e federal - e a separação compulsória do mínimo de dez por cento de toda a tributação para os serviços educacionais, postos todos eles em funcionamento numa ação independente, mas sinérgica e harmônica - que perspectivas não se abrirão para a escola brasileira e que segurança não terá o país de ver, afinal, a sua população servida das oportunidades educativas necessárias para a plena eclosão de sua cultura e de sua civilização?

Aspectos administrativos dessa nova política

Assim como procuramos, numa visão de conjunto, encarar apresente situação educacional brasileira, em suas deficiências, ensaiemos agora prever os novos desenvolvimentos que a descentralização e a liberdade de organização, pelo plano aqui esboçado, poderão trazer aos serviços escolares brasileiros.

Primeiro que tudo teremos criado com o novo plano cerca de três mil unidades administrativas escolares em todo o país, que tanto são os municípios, com os seus conselhos de administração escolar representativos da comunidade, paralelos aos conselhos municipais ou câmaras de vereadores, com poderes reais e não-fictícios de gestão autônoma do fundo escolar municipal e direção das escolas locais.

Tais conselhos disporão não somente dos recursos locais, equivalentes a vinte por cento dos recursos tributários dos municípios, mas também, dos recursos estaduais e federais que forem atribuídos ao município na proporção de sua população escolarizável. O total das três contribuições será administrado pelo conselho municipal escolar obedecendo a dispositivos orgânicos, pelos quais se estabelecerá que esse dinheiro pertence às crianças de sua comuna, não abstratamente consideradas, mas a cada uma das crianças, segundo a quota-parte que lhe couber na divisão do monte por todas elas. Este princípio determinará que o sistema de escolas a ser organizado deverá condicionar-se financeiramente ao limite dessa quota-parte por aluno, ficando o salário do professor, as despesas de administração, de material didático e geral, e do prédio, contidas dentro desse limite, em proporções fixadas como as mais razoáveis.

As vantagens dessa organização são, sobretudo, as de sua progressividade. O município, com a responsabilidade de manter as escolas para a sua população escolar, terá, de ano para ano maiores recursos, podendo traçar um plano de progresso orgânico e real. As três quotas que lhe alimentam o sistema serão cada ano maiores e por se distribuírem em percentagens definidas, para o pagamento do magistério, à administração e ao material e prédio, passarão a oferecer as condições indispensáveis da viabilidade do plano. Confiado esse plano à responsabilidade local e deste modo ao natural entusiasmo da comunidade, a escola, cuja necessidade começa a ser tão vigorosamente sentida pela população brasileira, far-se-á não só a sua instituição mais cuidada e mais querida, como o verdadeiro orgulho da cidade ou do campo. Em outros tempos, quando a educação escolar era uma imposição de outra cultura, podia-se compreender a escola organizada e dirigida à distância pela metrópole "colonizadora". Hoje, a escola flui e decorre de nossa própria cultura, dinâmica e em transformação, mas comum e, embora em estágios diversos de desenvolvimento, toda ela una e brasileira.

Restituídas, assim, as condições necessárias à vitalidade da instituição escolar, teremos estabelecido as condições que faltam ao progresso educacional. Isto, entretanto, não será tudo, pois, além daquelas condições, precisaremos de esforços e direção inteligente. O esforço deverá decorrer do interesse local e a inteligência, da direção, do espírito de estudo, que dominará a assistência técnica a ser dada ao sistema pelo Estado e a União, assistência técnica fortalecida e motivada pela assistência financeira.

Ao sistema estático mecânico de hoje, com escolas desenraizadas, organizadas à distância, com professores vindos do centro e a este centro ligados pelos vencimentos e pelas ordens que recebem, opor-se-á o sistema imperfeito, mas vivo, de escolas locais, dirigidas e mantidas por órgãos locais, ansiosas de assistência, mas conscientes de sua autonomia, prontas a colaborar com o Estado e a União, dos quais recebem os recursos suplementares para o seu progresso e a assistência técnica para o seu aperfeiçoamento.

Além disto, não esqueçamos de que o Estado, pela formação do magistério - mediante um sistema de bolsas oferecidas a cada município para o suprimento, por elementos locais, do seu corpo docente - terá em cada um dos sistemas locais de ensino as mestras, suas representantes, não como parcelas do seu poder, mas como filhas da escola normal estadual, alma-mater de todo o magistério.

Há, portanto, motivos para acreditar que o plano aqui esboçado pode concorrer para a revitalização do movimento de expansão escolar, sem que a revolução de mecanismos administrativos que encerra traga outros resultados senão os de promover as insuspeitadas energias que a autonomia e descentralização irão, por certo, desencadear, para o desenvolvimento dinâmico e harmonioso da escola primária brasileira.

Acima ou à base de uma tal educação fundamental e comum, a mais importante sem dúvida das que irá proporcionar a nação aos seus filhos, se erguerá o sistema de escolas médias, destinadas a continuar nos trabalhos práticos e industriais ou nos trabalhos intelectuais, todos eles equivalentes cultural e socialmente, pois os alunos se distribuirão, segundo os interesses e aptidões, para a constituição dos quadros do trabalho de nível médio, sejam as ocupações de natureza intelectual ou de natureza prática.

O velho debate entre ensino de letras, de ciências ou de técnicas desfaz-se à luz da novas circunstâncias na vida moderna, pois todos eles são necessários, constituindo problema apenas o de saber quais e quantos alunos devem ter formação científica e teórica e quais e quantos alunos devem receber formação técnica e de ciência aplicada. Em cada um desses ramos, o currículo variará para a formação diversificada e variada, até mesmo no currículo clássico, em que se formarão helenistas, latinistas e especialistas de letras modernas, como já acontece nos cursos predominantemente científicos ou técnicos.

Todas as escolas médias, que se organizarão com uma alta dose de liberdade, serão consideradas equivalentes e objeto não de "equiparação’" a modelos legais, mas de "classificação" pelos órgãos técnicos do Governo, segundo o grau em que atinjam os objetivos a que se propõe.

A validade dos seus resultados será apurada por exames de estado, feitos em determinados períodos do curso, exames de estado que se destinam, do ponto de vista legal, apenas à habilitação ao concurso vestibular para as escolas superiores e universidades.

Suprimido o currículo rígido e uniforme, imposto pela legislação federal, é de esperar que a ansiedade por educação pós-primária, que está a marcar a fase educacional presente, se oriente melhor, buscando os diferentes caminhos de ensino médio e alargando a "escada educacional" com melhor e mais adequada distribuição dos adolescentes, segundo as suas reais aptidões e as maiores necessidades do trabalho nacional.

Chegamos, assim, ao ensino superior, também ele em expansão insofrida, em função mais ou menos do desenvolvimento brasileiro. Sobem hoje a mais de 360 os estabelecimentos do ensino superior, com cerca de 700 cursos diferentes e mais de 70 mil alunos. Não parece fácil deter-lhe a expansão. A legislação deverá antes buscar controlar-lhe os efeitos, substituindo os processos de "equiparação" por processos de "classificação" das escolas, organizando um sistema paralelo de exames de estado de nível superior, para aprovação nas séries finais dos seus cursos básicos e profissionais, permitindo e estimulando a variedade de currículos e de cursos profissionais, com o objetivo de permitir à escola superior o mais amplo uso de seus recursos humanos e materiais, na formação dos quadros variados em nível e em especialização do seu trabalho de teor mais alto.

Uma lei feliz de regulamentação do exercício profissional, entregando, talvez, a licença definitiva para o exercício da profissão, aos sindicatos e associações de classe, viria, possivelmente, permitir a liberdade do ensino superior sem os perigos de uma inadequada inflação de diplomados. Os sindicatos e associações de classe, altamente conscientes dos interesses econômicos dos grupos profissionais e espontaneamente prevenidos contra a quebra de padrões de ensino e formação, atuariam como freios contra a improvisação de escolas superiores e a má distribuição de profissionais pelas diferentes especialidades.

O Governo manteria os serviços de "classificação" das escolas superiores e os de levantamento e estatística em relação aos profissionais de nível superior, seu mercado de trabalho, sua distribuição pelo país, faltas e excessos, e necessidades novas criadas pelo desenvolvimento nacional.

O espírito geral da legislação de ensino superior seria o mesmo que inspiraria a legislação geral da educação: fixação de objetivos e condições exteriores, pela lei, e determinação dos processos, currículos e condições internas do ensino, pela consciência profissional dos professores e especialistas de educação.

Com a divisão de atribuições proposta entre as três ordens de poderes públicos, teremos criado as condições, por meio das quais a nação irá manter um autêntico sistema escolar nacional, geral e público, para a infância, a juventude e os adultos brasileiros, sistema que, no seu jogo de forças e controles múltiplos e indiretos, poderá indefinidamente desenvolver-se.

Será um verdadeiro reajustamento institucional da escola, abrindo oportunidade para um período de ampla experimentação social, em que o país se descobrirá e se construirá para os seus destinos soberanos e próprios.

A educação para o desenvolvimento, a educação para o trabalho, a educação para produzir, substituirá a educação transplantada e obsoleta, a educação para a ilustração, para o ornamento e, no melhor dos casos, para o lazer.

Além disto, a educação ajustada às condições culturais brasileiras se fará autêntica e verdadeira, identificando-se com o país e ajudando a melhor descobri-lo, para cooperar, como lhe cabe, na grande tarefa de construção da cultura brasileira, flor mais alta da sua civilização.

A reconstrução educacional da nação se terá de fazer com essa liberdade a esse respeito pelas suas condições, como afirmação suprema da nossa confiança no Brasil, a cujo povo, hoje unificado e enérgico, devemos entregar, com o máximo de autonomia local, a obra de sua própria formação.

Sumário

Procuramos analisar a situação educacional brasileira à luz dos conceitos de "educação seletiva", para a formação de elites, e "educação comum", para a formação do cidadão comum da democracia.

Mostramos como essa "educação comum" não é só um postulado democrático, mas um postulado do novo conceito de conhecimento científico, que tornou comuns as atividades intelectuais e de trabalho, ou sejam de saber e de fazer, que se distinguem como divisões, equivalentes, do mesmo esforço sempre inteligente e especializado ou técnico.

Salientamos, entretanto, que entre nós, a despeito dessa evolução do conhecimento e das sociedades, as resistências aristocráticas da nossa história não permitiram que a escola pública, de educação comum, jamais se caracterizasse integralmente. Toda nossa educação se conservou seletiva e de elite.

A expansão educacional brasileira participa desse vício, quase diria, congênito. Indicamos, entretanto, o que nos parece deveria ser a nova política educacional para o Brasil e, a fim de promovê-la, bosquejamos um sistema de administração em que se casem as vantagens da descentralização e autonomia com a da integração e unidade dos três poderes - federal, estadual e municipal - do país.

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