TEIXEIRA, Anísio. Educação - problema da formação nacional. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.29, n.70, abr./jun. 1958. p.21-32.

EDUCAÇÃO - PROBLEMA DA FORMAÇÃO
NACIONAL

ANÍSIO S. TEIXEIRA
Diretor do I.N.E.P.

Na fase de desenvolvimento em que vem entrando o Brasil, a educação deixa de ser o tema sentimental de vagos idealistas, para se fazer uma das necessidades palpitantes do seu povo.

Nenhum programa de govêrno pode dar-se ao luxo de deixar o problema envôlto nas generalidades de um paternalismo já superado, anunciando-lhe a solução por meio de campanhas de caridade educacional, do mesmo modo por que já não se pode com a "sopa dos conventos" resolver o problema social. O processo de unificação do povo brasileiro vem-lhe dando plena consciência dos seus direitos e já sabe êle buscar na escola a justiça social que lhe era antes negada em face dos privilégios educacionais.

Não há necessidade de apóstolos para convencer o povo dos bens da educação. Há necessidade de políticos para arrancar os recursos de onde possam ser êles tirados e de organizadores para planejar e distribuir o mais complexo dos serviços sociais de uma democracia.

O nosso atraso histórico em resolver o problema escolar brasileiro trouxe-nos, pelo menos, essa vantagem de nos dispensar do imenso esfôrço que as nações civilizadas tiveram que empregar para antecipar a necessidade da escola.

A obrigatoriedade do ensino foi, com efeito, a grande conquista social do século XIX, entre as nações já desenvolvidas, o que lhes permite, hoje, entregarem-se dominantemente aos problemas dos reajustamentos econômicos e sociais. Não a tendo realizado nessa época, o Brasil se depara, frente a frente, com o problema da educação popular e com os da democracia econômica, o que aumenta, por certo, a complexidade de sua conjuntura, mas, por outro lado, lhe vai permitir tratar a escola com o salutar realismo de uma questão que já não é remota nem vaga, como em outras fases poderia parecer, mas urgente e prática.

As escolas brasileiras estão a ser buscadas pelo povo com ansiedade crescente, havendo filas para a matrícula da mesma natureza das filas para a carne. Os turnos se multiplicam, os prédios se congestionam; os candidatos aos concursos de admissão são em número muito superior aos das vagas e as limitações de matrícula constituem graves problemas sociais, às vêzes até de ordem pública.

A consciência da necessidade da escola, tão difícil de criar em outras épocas, chegou-nos, assim, de imprevisto, total e sôfrega, a exigir, a impor a ampliação das facilidades escolares. Não podemos ludibriar essa consciência. O dever do govêrno - dever democrático, dever constitucional, dever imprescritível - é o de oferecer ao brasileiro uma escola primária capaz de lhe dar a formação fundamental indispensável ao seu trabalho comum, uma escola média capaz de atender à variedade de suas aptidões e das ocupações diversificadas de nível médio e uma escola superior capaz de lhe dar a mais alta cultura e, ao mesmo tempo, a mais delicada especialização. Todos sabemos quanto estamos longe dessas metas, mas o desafio do desenvolvimento brasileiro é o de atingi-Ias, no mais curto prazo possível, sob pena de perecermos ao pêso do nosso próprio progresso.

Desçamos, com efeito, mais fundo na análise da situação educacional brasileira, para melhor elucidar a grave e imperdoável deficiência com que vimos atendendo, melhor diria desatendendo, a sêde de educação do povo brasileiro.

A educação primária já se distribui no País por mais de 75 000 unidades, com cêrca de 155 000 professôres, abrigando cêrca de 5 milhões de crianças, custando à nação cifra que não é inferior a cinco bilhões de cruzeiros. Êstes os números que, em si, parecerão significativos.

Mas, por trás dos números esconde-se uma realidade bem pouco animadora. Êstes alunos não se conservam na escola, em média, mais que 2 anos e pouco. Em todo o país, apenas 10% dêles chegam à quarta série primária. Com a matrícula, em muito, superior à sua capacidade, a escola se divide em turnos, oferecendo ao aluno meio dia escolar e, em muitos casos, um têrço de dia escolar, com a conseqüente redução de programa.

Com programa assim reduzido pela angústia de tempo, sofre ainda a escola uma administração centralizada e rígida, que lhe dificulta a adaptação condições cada vez mais difíceis de funcionamento. Por outro lado, o professor, integrado em quadro único pertencente a todo o Estado, desligou-se da escola, para pertencer às Secretarias de Educação, onde vive numa competição dolorosa por promoções, remoções e comissões, que se fazem os objetivos da profissão.

Com êsse professorado extremamente móvel senão fluido e as matrículas duplicadas ou triplicadas, a escola entra a funcionar por sessões, como os cinemas, e a se fazer cada vez menos educativa por isso mesmo que sem continuidade nem seqüência.

Com efeito, a instituição que, por excelência, deve ser estável a fim de contrabalançar a instabilidade moderna, faz-se ela própria incerta e instável, com administração e professorado em mudança permanente e os alunos na ronda dos turnos cada vez mais curtos.

Tais circunstâncias fazem com que a escola primária venha perdendo a função característica de ser a grande escola comum da nação, a escola de base, em que se educa a grande maioria dos seus filhos, para se constituir simples escola de acesso, preparatória ao ginásio, para onde se dirige a maior parte dos alunos que logram chegar à quarta série.

Êsse disvirtuamento da escola primária concorreu, junto com outras circunstâncias, para exacerbar o anseio pela escola secundária de tipo acadêmico, que entrou a ser improvisada de todos os modos, a fim de continuar a educação preparatória, que a escola primária iniciara nos seus fugazes turnos de ensino.

Tais escolas secundárias, como as primárias, funcionando em turnos, como as primárias, improvisadas, como as primárias, de puro ensino verbalístico, e ainda como as primárias, puramente preparatórias, prosseguem com os seus alunos num esfôrço, não de formação, mas de seleção, e acabam com apenas dezenove mil alunos na última série do colégio. Sobreviventes de um sistema escolar inadequado e frustro, não têm êstes poucos milhares de alunos outra coisa a fazer senão aspirar à escola superior, para cujo exame vestibular se precipitam em levas muito superiores ao número de vagas existentes... Aí os espera um concurso altamente seletivo, que se vem tornando suplício semelhante ao dos arcaicos exames chineses. No final de contas, dos cinco milhões de alunos primários, reduzidos a seiscentos mil de ensino secundário, emergem os oitenta mil alunos das escolas superiores que, mal ou bem, se vão diplomar para as carreiras do nível mais alto.

Tudo estaria, talvez, bem se, efetivamente, não visássemos à formação de todos os brasileiros para os diversos níveis de ocupações de uma democracia moderna, mas tão-sòmente à seleção de um mandarinato das letras, das ciências e as técnicas.

Nenhum país vive, porém, de um tal mandarinato, ainda que fôsse êle realmente capaz, o que não é o caso brasileiro, mas, dos quadros numerosos e eficazes, do trabalhador comum, formado na escola primária, dos quadros do trabalhador qualificado, treinado diretamente pela indústria e pelos cursos de continuação, dos quadros do especialista de nível médio preparado nos cursos médios, múltiplos e variados, e dos quadros de especialistas de nível alto, formados pela universidade e pelas escolas superiores.

Não esqueçamos que o Brasil não inventou essa educação escolar para o preparo de intelectuais. Assim foi a educação durante muito tempo, até que a aplicação da ciência à vida viesse tornar a educação escolar necessária não sòmente para compreender e gozar a vida como também para ganhá-la.

Desde então a educação escolar passou a ser indispensável para o próprio trabalho humano e, por isto mesmo, obrigatória e universal. Certo mínimo de educação escolar se fêz imprescindível ao homem e à mulher. A nossa Constituição considera êsse mínimo um direito do brasileiro. Sem êle, o cidadão não será plenamente um cidadão.

A escola primária que irá dar ao brasileiro êsse mínimo fundamental de educação não é, primàriamente, uma escola preparatória para os estudos ulteriores. A sua finalidade é, como diz o seu próprio nome, ministrar uma educação de base, capaz de habilitar o homem ao trabalho nas suas formas mais comuns. Ela é que forma o trabalhador nacional em sua grande massa. É pois uma escola, que é o seu próprio fim e que só indireta e secundàriamente prepara para o prosseguimento da educação ulterior à primária. Por isso mesmo, não pode ser uma escola de tempo parcial, nem uma escola sòmente de letras, nem uma escola de iniciação intelectual, mas uma escola prática, de iniciação ao trabalho, de formação de hábitos de pensar, hábitos de fazer, hábitos de trabalhar e hábitos de conviver e participar em uma sociedade democrática, cujo soberano é o próprio cidadão.

Não se pode conseguir essa formação em uma escola por sessões nem no curto período que passa o brasileiro pela atual escola.

Devemos restituir-lhe o dia integral, enriquecer-lhe o programa com atividades práticas, dar-lhe amplas oportunidades de formação de hábitos de vida real, com a organização da escola como miniatura da comunidade, com tôda a gama de suas atividades de trabalho, de estudo, de recreação e de arte.

Ler, escrever, contar e desenhar serão por certo técnicas a ser ensinadas mas como técnicas sociais, no seu contexto real, como habilidades sem as quais não se pode hoje viver. O programa da escola será a própria vida da comunidade, com o seu trabalho, as suas tradições, as suas características, devidamente selecionadas e harmonizadas.

A escola primária, por êsse motivo, tem de ser instituição essencialmente regional, enraizada no meio local, dirigida e servida por professôres da região, identificados com os seus mores, costumes e hábitos.

A regionalização da escola que, entre nós, se terá de caracterizar pela municipalização da escola, com administração local, programa local e professor local concorrerá em muito para dissipar os aspectos abstratos e irreais da escola imposta pelo centro, com programas determinados por autoridades remotas e distantes e servida por professôres impacientes e estranhos ao meio, sonhando perpètuamente com redentoras remoções.

Tal escola com horários amplos, integrada ao seu meio e com êle identificada, regida por professôres provindos das suas mais verdadeiras camadas populares, percebendo os salários dêsse meio, será uma escola reconciliada com a comunidade e já sem o caráter ora dominante de escola propedêutica aos estudos ulteriores ao primário. Esta será a escola fundamental de educação comum do brasileiro, regionalmente diversificada, comum não pela uniformidade, mas pela sua equivalência cultural.

Assim que os recursos permitirem, ela se irá ampliando em número de séries, entrando pelo nível das escolas de segundo grau, sem perder os característicos de escola mais prática do que intelectualista e os de integração regional tão perfeita quanto possível.

Está claro que essa escola, nacional por excelência, a escola da formação de brasileiro, não pode ser uma escola imposta pelo centro, mas o produto das condições locais e regionais, planejada, feita e realizada sob medida para a cultura da região, diversificada, assim, nos seus meios e recursos, embora una nos objetivos é aspirações comuns.

É tempo já de esquecermos o nosso hábito de pensar que os brasileiros residentes fora das metrópoles precisam das lições e das cautelas do centro para se fazerem brasileiros, ou nacionais, como é de certo gôsto totalitário afirmar. Todos os brasileiros são tão bons brasileiros quanto os funcionários federais, nada havendo que nos garanta serem tais funcionários mais seguros em definir o que seja nacional do que os servidores estaduais ou municipais.

O País é um só, com uma só língua, uma só religião, uma só cultura e em caminho para a unificação social em um só povo, distribuído por classes, mas classes abertas e de livre e fácil acesso. Além disso, ligado já por uma extensa e intensa rêde de comunicações, pelo avião e pelo rádio, que permitem a livre, ampla e rápida senão simultânea circulação de idéias e notícias. Nenhum motivo já existe para as cautelas centralistas e centralizantes, que se poderiam justificar em outras épocas, embora nem sempre com os mais puros propósitos.

A descentralização, assim, contingência de nossa extensão territorial e do nosso regime federativo e democrático, é hoje uma solução além de racional e inteligente - absolutamente segura. Tenhamos, pois, o elementar bom-senso de confiar no País e nos brasileiros, entregando-lhes a direção dos seus negócios e, sobretudo, da sua mais cara instituição - a escola, cuja administração e cujo programa deve ser de responsabilidade local, assistida e aconselhada tècnicamente pelos quadros estaduais e federais.

Organizados que sejam, assim, os sistemas municipais de educação e ensino, as escolas passarão a ser instituições nutridas pelo orgulho local, vivas e dinâmicas, a competir com os demais sistemas municipais e a encontrar nessa competição as suas fôrças de progresso e de gradual unificação, pois competir é emular e tôda emulação importa em reconhecer o caráter e as fôrças comuns que inspiram a instituição.

Presidindo a essa saudável e construtiva rivalidade regional local, o Estado e a União, equipados de corpos profissionais e técnicos de alta competência e liberados dos absorventes ônus administrativos, exercerão os seus deveres de assistência técnica não pela imposição mas pela liderança inteligente, tornada comum para todos, pela informação a experiência de cada um, facilitando o intercâmbio de valores e de progressos e orientando e coordenando os esforços para o avanço e a unidade, dentro, repetimos, das diversidades regionais e locais.

A assistência técnica dos centros não se exercerá sòmente pela atuação direta dos seus técnicos mas, sobretudo, pela formação de professôres, que lhes poderá ficar afeta, uma vez assegurado que Estado ou União respeitarão as características regionais das escolas a que se destinarão os mestres que, assim, irão preparar.

Não pensamos, pois, reformar a escola brasileira com a imposição de modelos a-priori formulados pelo centro, mas antes liberar as fôrças locais de iniciativa e responsabilidade e confiar-lhes a tarefa de construir a escola nacional, sob os auspícios de uma inteligente assistência técnica dos Estados e da União. Não somos nação a ser moldada napoleônicamente do centro para a periferia, mas um grande e diversificado império a ser assistido e, quando muito, coordenado pelo centro, a fim de poder prosseguir no seu destino de criar, nos trópicos, uma grande cultura, diversificada nas suas características regionais e una nos seus propósitos e aspirações democráticas e cristãs.

A descentralização educacional que, assim, propugnamos não representa apenas medida técnica que está, dia a dia, mais a se impor, por uma série de motivos de ordem prática, mas, também, um ato político de confiança na nação e de efetivação do princípio democrático de divisão do poder, a impedir os estrangulamentos da centralização e dificultar a concentração de fôrça que nos poderia levar a regimes totalitários.

Tôda unificação imposta e forçada é, nesse sentido, uma fragilidade e trabalha no sentido da ossificação de nossa cultura, dificultando-lhe a diversificação saudável e revitalizante.

A grande reforma da educação é, assim, uma reforma política, permanentemente descentralizante, pela qual se criem nos municípios os órgãos próprios para gerir os fundos municipais de educação e os seus modestos mas vigorosos, no sentido de implantação local, sistemas educacionais. Tais sistemas locais, em número equivalente ao dos municípios, constituirão, em cada Estado, o sistema estadual, o qual compreenderá, além das escolas pròpriamente locais, de administração municipal, as escolas médias e superiores, inclusive as de formação do magistério, de sua própria administração. Pela formação de magistério e pela vigorosa e ampla assistência financeira e técnica aos municípios, exercerá o Estado a ação supervisora, destinada a promover a unidade do ensino sem perda das condições revitalizantes e construtivas do genius-loci.

Em esfera ainda mais alta atuará a União, com a sua rêde de escolas médias, profissionais, superiores e de experimentação e demonstração, tôdas visando a mais alta qualidade e se destinando a agir nos sistemas estaduais e locais como exemplos de desenvolvimento, aperfeiçoamento e progresso. Êste sistema federal só por si já operaria como fôrça unificadora, mas terá ainda a União duas grandes fôrças de estímulo e coordenação: a assistência financeira e técnica às escolas e a atribuição de regulamentar o exercício das profissões. Com êstes dois instrumentos, o seu poder continuará, dentro do sistema descentralizado e vivo da educação nacional, tão forte e de tamanhas potencialidades, que antes será de recear a sua ação excessivamente uniformizante, suscetível de bloquear iniciativas felizes, locais e estaduais, do que qualquer imaginário perigo da liberdade que se dará ao Estado e ao Município, muito mais para lhes permitir assumir a responsabilidade do seu ensino e com ela a possibilidade de fazê-lo real e vivo do que, efetivamente, para organizá-lo à sua discrição.

Com efeito, embora as instituições escolares tenham seus objetivos próprios, tôdas elas se articulam em um sistema contínuo de educação, em que os graus mais altos influem na organização e sentido dos menos altos, determinando isto que o ensino médio condicione o primário e o superior condicione o médio.

É a unidade vital em oposição à desagregação mineralizada dos sistemas unitários e uniformes. O Município, com o seu sistema de escolas locais, primárias e médias, enraizadas no solo físico e cultural do Brasil, brasileiras como as que mais o sejam - o Estado, com as suas escolas médias, superiores e profissionais, exercendo e sofrendo a influência das escolas locais e detendo o poder de formar o magistério primário, - e a União, com o sistema federal supletivo de escolas superiores, escolas médias de demonstração, órgãos de pesquisa educacional e o poder de regulamentar as profissões, atuarão em diferentes ordens, independentes mas articuladas, constituindo a ação tripla mas convergente dos três poderes algo de sistemático e unificado. De tal modo sistemático e unificado, que sòmente não será excessivamente rígido porque o jôgo de influências dominantes das ordens superiores sôbre as inferiores só se exerceria pela assistência técnica - propulsionada pela assistência financeira - graças à qual o poder talvez ainda demasiado grande do Estado e da União se adoçará sob formas de ação mútua, em que o jôgo de influências não se faça sòmente no sentido descendente mas de maneira recíproca, recebendo a ordem superior o influxo da inferior para maior eficácia e fertilidade de sua própria atividade.

Muito do caráter mecânico, irreal e abstrato de nossas escolas desaparecerá em virtude dessas medidas políticas e administrativas, ressurgindo, em seu lugar, as virtudes tão brasileiras do seu gênio criador que, em outras esferas, vem produzindo as adaptações tão características de sua civilização em formação, em que se misturam traços tão complexos e delicados de influências tôda ordem, sobressaindo mais que todos os aspectos de um dinamismo criador e otimista, sem as durezas do competitivismo americano, mas, equilibrado, em sua febre por um grão de sal humanístico que nos vem da doçura essencial do nosso temperamento tropical e mestiço.

* * *

Instituídos que sejam os órgãos locais, estaduais e federais de propulsão, financiamento e administração do imenso empreendimento escolar para a formação e o preparo do brasileiro, cujas bases se encontram lançadas em nossa Constituição, com o reconhecimento das três ordens de atribuições - municipal, estadual e federal - e a separação compulsória do mínimo de dez por cento de tôda a tributação para os serviços educacionais, postos todos êles em funcionamento numa ação independente, mas sinérgica e harmônica, que perspectivas se abrirão para a escola brasileira e qual a segurança que terá o país de ver, afinal, a sua população servida das oportunidades educativas necessárias para a pIena eclosão de sua cultura e de sua civilização?

Assim como procuramos, numa visão do conjunto, encarar a presente situação educacional brasileira, em suas virtudes e suas deficiências, ensaiemos agora prever os novos desenvolvimentos que a descentralização e a liberdade de organização no plano aqui esboçado poderão trazer aos serviços escolares brasileiros.

Primeiro que tudo teremos criado com o novo plano cêrca de três mil sistemas escolares autônomos em todo o país, que tantos são os municípios, com os seus conselhos de administração escolar, representativos da comunidade, paralelos aos conselhos municipais, com poderes reais e não fictícios de gestão do fundo escolar municipal e direção das escolas locais.

Êstes conselhos disporão não sòmente dos recursos locais, equivalentes a dez por cento dos recursos tributários dos municípios, mas, também, dos recursos estaduais e federais que forem atribuídos ao município na proporção de sua população escolarizável. O total das três contribuições será administrado pelo conselho municipal escolar, obedecendo a dispositivos orgânicos, pelos quais se estabelecerá que êsse dinheiro pertence às crianças de sua comuna, não abstratamente consideradas, mas, a cada uma das crianças, segundo a quota-parte que lhe couber na divisão do monte por tôdas elas.

Êste princípio determinará que o sistema de escolas a ser organizado deverá condicionar-se financeiramente ao limite dessa quota-parte por aluno, ficando o salário do professor, as despesas de administração, de material didático e geral, e do prédio, contidas dentro dêsse limite, em proporções fixadas como as mais razoáveis.

As vantagens dêsse sistema são, sobretudo, as de sua progressividade. O município, com a responsabilidade de manter as escolas para a sua população escolar, terá, de ano para ano, maiores recursos, podendo traçar um plano de progresso orgânico e real. As três quotas que lhe alimentam o sistema serão cada ano maiores e por se distribuírem em percentagens definidas, para o pagamento ao magistério, à administração e ao material e prédio, passarão a oferecer as condições indispensáveis da viabilidade do plano. Confiado êsse plano à responsabilidade local e dêste modo ao natural entusiasmo da comunidade, a escola, cuja necessidade começa a ser tão vigorosamente sentida pela população brasileira, far-se-á não só a sua instituição mais cuidada e mais querida, como o verdadeiro orgulho da cidade ou do campo. Em outros tempos, quando a educação escolar era uma imposição de outra cultura, podia-se compreender a escola organizada e dirigida à distância pela metrópole "colonizadora". Hoje, a escola flui e decorre de nossa própria cultura, dinâmica e em transformação, mas comum e, embora em estágios diversos de desenvolvimento, tôda ela una e brasileira.

Restituídas, assim, as condições necessárias à vitalidade da instituição escolar, teremos restabelecido as condições que faltam ao progresso educacional. Isso, entretanto, não será tudo, pois, além daquelas condições, precisaremos de esfôrço e direção inteligente. O esfôrço decorrerá do interêsse local e a inteligência da direção, do espírito de estudo que dominará a assistência técnica que irão dar ao sistema o Estado e a União, assistência técnica fortalecida e motivada pela assistência financeira.

Ao sistema morto e mecânico de hoje, com escolas desenraizadas, organizadas à distância, com professôres vindos do centro e a êste centro ligados pelos vencimentos e pelas ordens que recebem, opor-se-á o sistema imperfeito, mas vivo, de escolas locais, dirigidas e mantidas por órgãos locais, ansiosas de assistência, mas conscientes de sua autonomia, prontas a colaborar com o Estado e a União, dos quais recebem os recursos suplementares para o seu progresso e a assistência técnica para o seu aperfeiçoamento.

Além disto, não esqueçamos de que o Estado, pela formação do magistério - mediante um sistema de bôlsas oferecidas a cada município para o suprimento, por elementos locais, do seu corpo docente - terá em cada um dos sistemas locais de ensino as mestras, suas representantes, não como parcelas do seu poder, mas como filhas da escola normal estadual, alma-mater de todo o magistério.

Há, portanto, indícios de que o plano aqui esboçado pode concorrer para a revitalização do movimento de expansão escolar, sem que a revolução de mecanismos administrativos que encerra traga outros resultados senão os de promover as insuspeitadas energias que a autonomia e descentralização irão, por certo, desencadear para o desenvolvimento dinâmico e harmonioso da escola primária brasileira.

* * *

Acima dessa educação fundamental e comum a mais importante sem dúvida das que irá proporcionar a nação aos seus filhos, se erguerá o sistema de escolas médias, destinadas a continuar a cultura geral da escola primária e a iniciar a especialização nos trabalhos práticos e industriais ou nos trabalhos intelectuais, todos êles equivalentes cultural e socialmente, pois os alunos se distribuirão, segundo os interêsses e aptidões, para a constituição dos quadros do trabalho de nível médio, sejam as ocupações de natureza intelectual ou de natureza prática.

O velho debate entre ensino de letras, de ciências ou de técnicas desfaz-se à luz das novas circunstâncias da vida moderna, pois todos êles são necessários, constituindo problema apenas o de saber quais e quantos alunos devem ter formação científica e teórica e quais e quantos alunos devem receber formação técnica e de ciência aplicada. Em cada um dêsses ramos, o currículo variará para a formação diversificada e variada, até mesmo no currículo clássico, em que se formarão helenistas, latinistas e especialistas de letras modernas, como já acontece nos cursos predominantemente científicos ou técnicos.

Tôdas essas escolas médias, que se organizarão com uma alta dose de liberdade, serão consideradas equivalentes o objeto de "equiparação" a modelos legais, mas, de "classificação" pelos órgãos técnicos do Govêrno, segundo o grau em que atinjam os objetivos a que se propõem.

A validade dos seus resultados será apurada por exames de estado, feitos em determinados períodos do curso, exames de estado, que se destinam, do ponto de vista legal, apenas à habilitação ao concurso vestibular para as escolas superiores e universidades.

Suprimindo o currículo rígido e uniforme, impôsto pela legislação federal, é de esperar que a ansiedade por educação pós-primária, que está a marcar a fase educacional presente, se oriente melhor buscando os diferentes caminhos do ensino médio e alargando a "escada educacional" com melhor e mais adequada distribuição dos adolescentes, segundo as suas reais aptidões e as maiores necessidades do trabalho nacional.

Chegamos, assim, ao ensino superior, também êle em expansão insofrida em face ao desenvolvimento brasileiro. Sobem hoje a mais de 350 os estabelecimentos do ensino superior, com cêrca de 700 cursos diferentes e mais de 60 000 alunos. Não parece fácil deter-lhe a expansão. A legislação deverá antes buscar controlar-lhe os efeitos, substituindo os processos de "equiparação" por processos de "classificação" das escolas, organizando um sistema paralelo de exames de estado de nível superior, para aprovação nas séries finais dos seus cursos básicos, e profissionais, permitindo e estimulando a variedade de currículos e de cursos profissionais, com o objetivo de permitir à escola superior e mais amplo uso de seus recursos humanos e materiais na formação dos quadros variados em nível e em especialização do seu trabalho de teor mais alto.

Uma lei feliz de regulamentação do exercício profissional, entregando, talvez, a licença definitiva para o exercício da profissão aos sindicatos e associações de classe, viria, possìvelmente, permitir a liberdade do ensino superior sem os perigos de uma inadequada inflação de diplomados. Os sindicatos e associações de classe, altamente conscientes dos interêsses econômicos dos grupos profissionais espontâneamente prevenidos contra a quebra de padrões de ensino e formação, atuariam como freios contra a improvisação de escolas superiores e a má distribuição de profissionais entre as diferentes especialidades.

O govêrno manteria os serviços de "classificação" das escolas superiores e os de levantamento e estatística em relação aos profissionais de nível superior, seu mercado de trabalho, sua distribuição pelo país, faltas e excessos e necessidades novas criadas pelo desenvolvimento nacional.

O espírito geral da legislação de ensino superior seria o mesmo que inspiraria a legislação geral da educação: fixação de objetivos e condições exteriores pela lei e determinação dos processos, currículos e condições internas do ensino pela consciência profissional dos professôres e especialistas de educação.

Com a divisão de atribuições proposta entre as três ordens de poderes públicos, teremos criado as condições, por meio das quais a nação irá manter um autêntico sistema escolar nacional, geral e público, para a infância, a juventude e os adultos brasileiros, sistema que, no seu jôgo de fôrças e contrôles múltiplos e indiretos, poderá indefinidamente desenvolver-se.

Será uma verdadeira readaptação institucional da escola, abrindo oportunidade para um período de ampla experimentação social, em que o país se descobrirá e se construirá para os seus destinos autônomos e próprios.

A educação para o desenvolvimento, a educação para o trabalho, a educação para produzir, substituirá a educação transplantada e obsoleta, a educação para a ilustração, para o ornamento e, no melhor dos casos, para o lazer.

Além disto, a educação ajustada às condições culturais brasileiras se fará autêntica e verdadeira, identificando-se com o país e ajudando a melhor descobri-lo, para cooperar, como lhe cabe, na grande tarefa de construção da cultura brasileira, flor mais alta da sua civilização.

A reconstrução educacional da nação se terá de fazer com essa liberdade e êsse respeito pelas suas condições, como afirmação suprema da nossa confiança no Brasil, a cujo povo, hoje unificado e enérgico, devemos entregar, com o máximo de autonomia local, a obra de sua própria formação.

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