TEIXEIRA, Anísio. Editorial. Educação e Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.8, n.15, set. 1960. p.3-8.

EDUCAÇÃO E
CIÊNCIAS SOCIAIS

ANO V - VOL. 8 - Nº 15 - SETEMBRO - DE 1960

Editorial

Dediquei tôda a vida ao problema da chamada educação geral, e o professor Faria Góis dedicou a maior parte da sua atividade educacional ao problema específico da formação industrial e da formação profissional. Hoje nos encontramos ambos juntos nas mesmas conclusões: reputo, cada vez mais, que a educação geral é também profissional, e êle reputa, cada vez mais, que tôda educação profissional é também geral. Permitam-me que esboce algumas idéias, talvez demasiado gerais mas que ajudam, a meu ver, a compreender êsse encontro entre a educação chamada geral e a educação chamada profissional.

Desde que a humanidade iniciou sua luta de ajustamento às condições do mundo, foram sempre raros os períodos criadores e merece ser observado que tais períodos não coincidiram com os períodos de "civilização". Tanto quanto sabemos, quando nos deparamos com a humanidade chamada "civilizada", encontramos o homem como criatura extremamente conservadora, mais ciosa de guardar os conhecimentos do que de desenvolvê-los. Entretanto, antes dessa fase, fôra a humanidade altamente criadora, havendo conseguido a domesticação dos animais e tôdas as invenções fundamentais de ajustamento à vida, sem falar na linguagem, cuja descoberta gradual se perdia no tempo. É com a civilização que se mergulha na grande estagnação. A grande criação que tornou possível a civilização - mesmo essa criação, de certo modo, anterior a ela, civilização, - foi a da escrita. Mas é curioso que mesmo a descoberta da escrita não tenha aumentado a capacidade de descobrimento da humanidade. Pelo contrário, assim que foi descoberta a escrita, o trabalho dos escribas, com a utilização do novo instrumento revolucionário, se fêz um trabalho ultra-especial, é certo, mas de conservação e não de renovação. O escriba se fêz não um dos elementos de criação da civilização, mas o do registro do que existia na civilização, constituindo-se o trabalhador especialíssimo de sua conservação. O período entre 400 ou 300 antes de Cristo e o século XVI, de nossa era, não registra nenhuma invenção, nenhuma revolucionária invenção. A civilização se faz suntuária, espetacular mesmo, desenvolve grandes confortos materiais, certas atividades artezanais se expandem e se aperfeiçoam, certo número de pessoas chega à riqueza, mas nenhuma grande descoberta revolucionária ocorreu durante êsse longo período de civilização, que, entretanto, se inicia com a maior de tôdas as descobertas, a descoberta pròpriamente do pensamento humano, da arte de pensar racionalmente, que nos trouxeram os gregos. Mas a arte de pensar não nos deslumbrou com a invenção, senão com a revelação, a contemplação e quiçá a compreensão do que já o senso comum nos trouxera. A arte de pensar, a princípio, foi mais apologia do que descoberta, buscando, como já disse, antes a compreensão do mundo e o prazer de sua contemplação do que descobrir as molas de sua transformação. Desta sorte, as escolas nunca foram feitas para ensinar siquer a descobrir o conhecimento mas para conservá-lo, pelo ensino fiel e exato. É preciso ter isto sempre presente para compreendermos quanto, desde o início, a escola se fêz uma instituição particular e especializada, destinada a formar um grupo particular e especializado, a que se confiasse a guarda e conservação da cultura humana. Sòmente no século XVI, quando se renova o método e a arte de pensar, é que passamos dêsse estrito conservar e guardar da cultura para a descoberta, primeiro do que outros tinham pensado e acabara por se perder e, finalmente, para a descoberta do conhecimento novo pròpriamente dito. O método experimental de pensar abria, com efeito, uma era nova no pensamento humano. A escola, já agora, ensinaria apenas o sabido mas ensinaria a pesquisar e, pela pesquisa, a descoberta do novo. Se o progresso humano fôsse algo de fácil e sincrônico, tôdas as escolas teriam, desde então, de se transformar. Mas assim não aconteceu.

Tomadas do deslumbramento da redescoberta do saber clássico, as escolas se fizeram, a despeito da nova atitude científica, zelosas transmissoras daquele saber. Até o século XIX, e neste, ainda em sua segunda metade, mal podemos falar da ciência experimental nas universidades e nas escolas. Até então a Universidade guarda o saber mas não o renova nem o descobre. Nenhuma grande descoberta científica se registra, entre as atividades da escola ou da universidade até o nosso século. A escola é por excelência a guardiã, a conservadora, a estabilizadora, a consolidadora da cultura. O método experimental, entretanto, criado no século XVI, fêz-se um transformador da cultura. Esta se fêz mutável e dinâmica. E dentro de algum tempo alterou as próprias formas da trabalho humano.

Introduziu a máquina e com a máquina a divisão do trabalho. Com a divisão do trabalho, a organização do mesmo em forma cada vez mais complexa e mais impessoal, daí sobrevindo duas mudanças fundamentais, a que tão bem se referiu o professor Faria Góis: a primeira, a necessidade de inteligência altamente treinada para organizar o trabalho; e a segunda, a relativa simplicidade de treino para o operário. A civilização anterior operava na base de um artezão altamente qualificado. Os primórdios da civilização industrial operavam na base de alta organização e do operário reduzido a "mão-de-obra". É evidente que tal processo produziu mecanização excessiva do esfôrço humano. O professor Dannemann insistiu, com razão, na consciência nova, que tem hoje a sociedade, dos aspectos desagregadores, digamos assim, do fracionadíssimo trabalho humano. Há pouco me segredava aqui, na mesa, o professor Victor Nunes Leal, nosso presidente, a palavra orquestração para caracterizar o trabalho moderno. Tudo, com efeito, estaria em que o trabalho em série pudesse realmente corresponder ao trabalho de uma orquestra. Também na orquestra a divisão do trabalho é extrema e a ordem dêsse trabalho uma imposição suprema. Mas como são todos felizes! Feliz é o maestro, o responsável maior. Felizes todos os músicos, do mais ao menos importante. . . E por quê? Porque a ordem é compreendida e, mais do que isto, sentida. Todos integrados realizam o milagre do trabalho extremamente parcelado, fracionado, dividido e, ainda assim, inteiriço, harmonioso, perfeito.

No dia em que percebermos tôdas as virtualidades da divisão do trabalho, faremos da indústria algo que lembrará o trabalho musical. Para isto é que será necessário treino maior. Para isto é que teremos de dar a cada um educação tão longa quanto a que sempre reservamos para aquêles a quem caberia não sòmente fazer, como compreender.

Nos dias de hoje, há, pela primeira vez, possibilidade para isto. A automação virá acabar com o operário antigo, com a chamada "mão-de-obra". Com as máquinas inteligentes e complexas de hoje, o operário não é "mão-de-obra", mas "cabeça", "mente" de obra. Serão em menor número, mas muito mais educados. Trabalharão sòzinhos como o antigo artezão no seu atelier. Mas não terão, como êste, o prazer de fazer e pegar em seu trabalho e, por isto mesmo, precisarão de ser muito mais educados, mais educados do que o artezão da Idade Média. Precisam ter aquela rara educação que fazia com que alguns raros pedreiros, na Idade Média, ao britar a pedra, sentissem que não estavam apenas britando pedras mas construindo uma igreja. Nesse dia é que o sentido e o espírito de orquestra se poderão firmar no trabalho dividido, complexo e organizado do mundo de hoje.

Até que ponto a escola acompanhou todos êsse fatos? Até que ponto atende a escola a essas novas condições do trabalho humano? Recordemos que a escola, originàriamente, sempre visou preparar ou o trabalhador intelectual, ou o homem de lazer. No princípio, era só a profissional da inteligência, ainda que o chamássemos de sacerdote. Sua missão era a de aprender e conservar a cultura. O trabalho produtivo humano, êste era aprendido diretamente pela vida ou pelo tirocínio, nos casos de ofício que exigisse aprendizagem individual. Surge, depois, a escola primária, como escola comum destinada a ensinar as artes de ler, escrever e contar para uma sociedade, em que tais artes se fizeram imprescindíveis para o próprio trabalho. Neste sentido, a escola primária constituiu-se a maior escola profissional do mundo moderno. Êste compreendia, então, escolas de cultura geral para formar as elites de lazer ou de govêrno, escolas especiais superiores para os profissionais liberais, e escolas primárias para o preparo inicial do operário e daqueles que iriam continuar, prosseguir com a sua educação escolar. As escolas médias, chamadas profissionais ou técnicas, constituíram sempre um hibridismo. Eram escolas que pretendiam formar o artífice, no que falhavam, pois êste sòmente se forma pelo aprendizado pessoal, seguido de tirocínio, ou formar o técnico de nível médio, no que sucediam, por vêzes, em virtude dos fundamentos teóricos da formação dêsse verdadeiro tecnologista. A situação presente se me afigura como exigindo uma revisão geral. Cada vez precisa mais o homem para viver na sociedade artificial e complexa, em que se acha inserido, de uma boa educação intelectual, que à falta de outro nome chamaríamos de geral, seguida ou complementada de aprendizagens, de natureza ocupacional, destinadas a lhe dar emprêgo ou trabalho. Graças à boa quantidade de educação geral, a sua posição de trabalho ou emprêgo se fará muito flexível, habilitando-o a melhorar, aperfeiçoar-se e mudar mesmo de setor profissional. Isto, quanto à educação comum. Quanto à especial, precisamos de preparar, como nunca, a esquipe dos que irão não tanto guardar mas aumentar o conhecimento humano, os pesquisadores; depois organizadores, administradores e diretores - os verdadeiros maestros, mestres das grandes orquestrações do trabalho moderno; finalmente, em substituição da antiga classe de lazer, preparar os poetas e os artistas, isto é, os profissionais destinados a interpretar, a dar significação, a nos dizer do sentido e do valor da vida e do esfôrço humano ... Como a sociedade será extremamente organizada, o trabalho tremendamente fracionado, e o conhecimento que a explica muitíssimo elaborado e espantosamente remoto, a função dos poetas e dos artistas, entre os quais porei os grandes mestres do que se chama tão inadequadamente de vulgarização e que chamo, num esfôrço de valorização, de popularização, será da mais extrema importância. São êles que darão o toque humano ao imenso formigueiro humano.

Assim seria o sistema escolar moderno: uma escola comum, prolongando-se até o chamado nível médio, destinada a oferecer à criança e ao adolescente o preparo técnico nas artes de uma sociedade fundada no conhecimento intelectual, por meio do qual poderia ir de logo trabalhar ou prosseguir nos estudos para níveis mais altos dêsse mesmo trabalho. Tal escola teria uma grande unidade. Tôdas as antigas discriminações desapareceriam. À educação seria um grande esfôrço de tôda a vida, com um período de escola mais curto ou mais longo, conforme o indivíduo, pela sua vontade ou pela sua capacidade, se dispusesse a um patamar ou outro do grande esfôrço coletivo, todo êle técnico e exigente de preparo especial e escolar. Nesse grande sistema contínuo e gradual de educação, o que seja educação geral e o que seja educação profissional ou especial de certo modo se confundem, a educação geral sendo sempre necessária e a especial correspondendo a um esgalhar-se dessa educação geral, conforme o nível e o ramo de ocupação a que desejasse o homem se devotar. Penso haver desta forma e na rapidez dêstes comentários, que agora encerro, haver demonstrado quanto o Prof. Faria Góis tem razão em identificar, hoje, os objetivos da educação, seja ela geral e comum ou especial e profissional, em um objetivo maior que é o do preparo do homem novo para a sociedade nova em que vivemos... ( * )

ANÍSIO S. TEIXEIRA

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